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sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Linhas de fuga na canção brasileira do século XXI

Negro Leo


O panorama da canção brasileira contemporânea impõe ao crítico a adoção de outras perspectivas de abordagem e compreensão. Diante da profusão de tendências que se desdobram para além das fronteiras nacionais, percebe-se imediatamente a impossibilidade de uma sistematização mais rígida, orientada por critérios habituais, como os que balizam a pesquisa musical no Brasil: a história antiquária (o folclore), a história monumental (a bossa nova como epicentro), a manutenção da “identidade cultural” (e dos valores identitários), a relação da cultura com a dimensão do popular e do nacional, os movimentos teóricos que operam a partir de grandes marcos.

Alguns dos compositores mais singulares da canção brasileira da primeira década do XXI se abriram para transformações políticas e culturais que modificaram a sociedade brasileira nos últimos 25 anos. Como uma resposta a esse ambiente marcado pelo movimento, pelo deslocamento e pelo conflito, enunciam algumas modulações cancionais cuja principal característica é a criação de linhas de fuga: fuga das sobrecodificações e generalizações impostas pelo mercado, pelo gosto médio vigente, pelas tendências midiáticas, e sobretudo por duas das principais vertentes ideológicas da música brasileira, consolidadas a partir dos anos 70: o nacionalismo (cepecismo) e o discurso antropofágico (tropicalismo). Não que não haja na canção contemporânea elementos do nacionalismo (a presença de Baden Powell na obra de Kiko Dinucci) e do tropicalismo (a presença da primeira fase do tropicalismo nas canções de Negro Leo), mas não há o menor traço de compromisso com as pautas e tendências geralmente a eles vinculadas. Observa-se que a matéria cancional se desprende de seu referencial histórico e de alguns perfis ideológicos.

A canção brasileira no século XXI se modificou pela força multidirecional dos múltiplos deslocamentos que marcaram este período. Transformações sociais, culturais, tecnológicas, mutações do trabalho e das formas de vida, que implicaram na redistribuição dos papéis simbólicos que determinadas vertentes da canção ocupavam no passado recente. Por exemplo, o reconhecimento dos cantores dos anos 70, rebatizados como “bregas” (Reginaldo Rossi, Odair José), do rap da periferia de SP (sobretudo, dos Racionais), e mais recentemente, de gêneros ignorados como a guitarrada e o funk carioca, testemunham que a paleta de sons, cores e perspectivas da música brasileira se ampliou consideravelmente. A realidade tecnológica também contribuiu para o alargamento não só da informação, mas da capacidade de ação, produção e divulgação, resultando em uma fragmentação mais complexa do que as antigas classificações poderiam nos levar a circunscrever.

Pode-se afirmar que a canção contemporânea se faz sobre outras bases e materias, sendo, portanto, uma outra canção. Mas isso se poderia dizer também dos Novos Baianos e de Luiz Melodia, e, mais tarde, de João Bosco e Djavan, Arrigo e Itamar Assumpção, abordagens cancionais mais ou menos derivadas do díptico nacionalismo/tropicalismo. O que caracteriza esta canção mais recente é o fato de que abriu mão de se situar em relação às tensões consolidadas pelo pensamento brasileiro do século XX (nacional/popular, nacional/estrangeiro, popular/erudito, alta cultura/baixa cultura) e reivindica as fronteiras de um complexo de cultura em acelerado processo de fragmentação e miscigenação.

Passo Torto


























Em ultima instância, esse contexto indica uma situação de perigo crescente. O perigo no ambiente musical brasileiro é não ser passível de uma classificação consolidada, legitimada, plausível. O perigo é não corresponder ao que se espera, seja do ponto de vista do mercado, seja do ponto de vista da cultura e do raio médio de tolerância da escuta. Alguns foram classificados como “malditos”, outros como “experimentais”, justamente porque não comungavam ou não se adequavam às expectativas do mercado e do jet set artístico e político-cultural. A palavra chave, neste caso, me parece “experiência”: do latim experior, experire: pôr à prova, experimentar, correr o risco. Não me refiro somente à experimentação sonora, que determina a expressão “música experimental”, mas a uma dimensão pedestre da canção contemporânea, que, em conexão com a rua, busca contrair e assimilar as expressões que emanam de conflitos urbanos, suburbanos e até mesmo rurais. É assim que nas mãos de alguns autores, a canção contemporânea se recusa a ser decodificada no interior de quaisquer generalizações. Tornando-se pedestre, longe das estruturas institucionais e corporativas, das grandes gravadoras e da grande mídia, ela ganha o mundo, se confunde com o mundo e, assim, com sua constituição múltipla e atribulada.

Em diversas manifestações musicais contemporâneas, percebe-se que a melodia bem acabada ou medíocre, a harmonia tosca ou complexa, o mito do balanço (e do suingue), elementos comuns às dinâmicas cancionais brasileiras, não constituem seu maior fundamento. A canção deixa de se constituir como objeto integrado a um acompanhamento instrumental, e passa a ser adaptada a uma ecologia sonora acidentada, com a qual procura travar diálogos. A ideia de "mistura", por exemplo,conceito celebrado como uma força da música brasileira, sempre se manteve restrita a determinados códigos. Mistura protagonizada por Paul Simon com o Olodum, mas também presente na música de Chico Science (maracatu com hip hop e metal), revelam uma expectativa mais ou menos pré-determinada do que se considera por "mistura" em termos de música no Brasil. Deste modo, acreditou-se que o samba pôde ser "reabilitado" pelo hip hop; e que a batucada sagaz e futurista do Olodum teria sido legitimada pelo country defasado de Paul Simon. Essa geopolítica sonora e oficial da "mistura", na qual um elemento estrangeiro reifica a cultura "folclórica", é hoje substituído por outros tipos de combinações. Operações mais complexas, porque não dizem respeito a características superficiais, mas a estruturas, ambiências, modos de gravação, timbre, revalorização de ritmos esquecidos e suas sonoridades particulares. Por exemplo, o conceito “afrosamba”, elaborado e desenvolvido por Vinícius de Moraes e Baden Powell, retorna pelas mãos do Metá Metá, não necessariamente acompanhado pela legitimação de alguma manifestação estrangeira, mas retrabalhado através de uma forma determinada de execução e performance — no caso, uma forma mais solta, decisivamente mais pesada e robusta, capaz de produzir outros timbres, frequências e estratégicas de composicão e arranjo. 

O eixo produtivo se deslocou do sudeste para privilegiar outros mercados e aportes culturais, configurando o que pode ser chamado de período “pós-industrial” da música brasileira. Nesse contexto, destaco não somente três ou quatro desses autores (Kiko Dinucci, Negro Leo, Rodrigo Campos, Romulo Fróes), mas sobretudo alguns dos procedimentos que eles utilizam em suas canções. Meu esforço a seguir não será o de demonstrar que representam uma “nova canção”, nem de forçar alguma equivalência entre eles. Pelo contrário, tratam-se de compositores com abordagens da canção completamente distintas, mas que mantém algumas preocupações semelhantes. Uma visada panorâmica parece indicar algo para além de uma suposta “nova fase da canção”, mas uma consciência radical do presente e, por isso, fragmentária. Uma recusa positiva a qualquer perspectiva identitária (gênero, nacionalidade, formas consolidadas, convenções) ou representativa (“brasileiro”, “sambista”, “roqueiro”). E o fazem através de alguns procedimentos particulares que me parecem inéditos na canção brasileira, muitos deles ocorrendo de forma cruzada. 

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1. Amálgama: A preeminência da voz sobre a instrumentação é substituída por um amálgama de sonoridades. A voz é mais do que expressão da voz de alguém, isto é, de um meio particular pelo qual o universal da canção se apresenta. A voz integra a instrumentação, a forma da canção se dissolve e se confunde nos materiais sonoros.

Exemplo: As canções do Passo Torto e do disco de Juçara Marçal (Encarnado) estão ancoradas em um tipo de arranjo todo baseado em um plano de permeado por contrapontos, encaixes, ressonâncias, no qual a voz é instrumento para além da representação comum. A harmonia em dedilhados sobreposta a linhas de melódicas que se repetem (ostinatos). As guitarras e cavaquinhos processados por pedais, ruídos que operam não como detalhe, mas como estrutura. Há também um alto grau de percussividade nos instrumentos de corda. Os acordes não são tocados como “base” para a voz, nem há uma integração entre voz e harmonia (ou instrumentação). O que ocorre é uma arena de conflitos programados entre frequências, entre notas, acordes e ruídos, que não se desprendem da forma cancional. Como em “Velho Amarelo”, canção do último disco de Juçara Marçal, ou “Homem só”, música de Romulo Fróes, letra de Rodrigo Campos.








2. Simultaneidade: Uma certa canção contemporânea adere à interpretação instrumental, ao imprevisível da instrumentação, formando com ela um todo mais complexo. O arranjo da canção não é acessório, mas é simultâneo à própria canção, ao procedimento instrumental e performático. A canção não é mais uma forma que o arranjo interpreta, mas é criada na própria instrumentação, na própria performance.

Exemplo: No álbum Ilhas de Calor, Negro Leo gravou toda a instrumentação em sessões de improviso. Após a gravação, selecionou trechos sobre os quais poderia escrever suas letras. Estas por sua vez, acomodadas ao improviso instrumental, converteram-se em canção. "Black Negro" carece de um ambiente que é definido não pela “instrumentação” (porque assim, manteríamos a distinção forma/conteúdo), mas por um complexo de sons que partem dos instrumentos, da voz e de uma certa atitude dos músicos. A marca do acontecimento (a marca da improvisação) permanece e se cristaliza na canção como um dado fundamental de incompletude.





Ocorre algo semelhante na canção “Jovem Tirano Príncipe Besta”: a forma da canção nascendo conforme se desenvolve a performance.




3. Máscara: Em “Black Negro”, percebe-se que a “voz cancional”, a voz do cantor, desliza em meio à instrumentação sob a forma de um instrumento de solo. Leo costura uma espécie de lamento, enquanto troca ideias com os instrumentos de forma espontâneas, integrado ao improviso. A ideia de máscara indica outros registros da voz cancional. A voz troca de máscaras com a instrumentação, o arranjo, a performance. A altura, a intensidade, a duração e, sobretudo o timbre conferem expressão ao som. Um ataque de timbre pode significar mais do que uma nota. A voz é timbre, para soar em justaposição com outros timbres: timbres da guitarra, saxofone, percussão, estes também recodificados por obra da aplicação de efeitos e processamentos. Mais do que exprimir-se enquanto “voz” (uma determinada representação da “voz”), a voz é redistribuída de muitas formas diferentes: a voz pode soar como guitarra, como saxofone, às vezes como navalha, pássaro, chaleira e até mesmo (como na maioria dos casos) a voz em seu devir-voz.

Exemplo: “Black Negro” e “Tepco” são canções onde essa técnica é utilizada. Mas já antes, em “Imposto Robin Hood” do álbum Tara (2013), Leo usa esse método em favor de uma abordagem “mascarada”, “instrumentalizada” da voz.



“Imposto Robin Hood” (Negro Leo/Marcos Lacerda)
Brics Brics Brics
Jasmim Jasmin Jasmin
Outonodocidente Outonodocidente Outonodocidente
Lótus Lótus Lótus Lótus Lótus Lótus Lótus Lótus

4. Lirismo bruto, lirismo punk: o tropicalismo reivindicou um curto-circuito no lirismo tradicional, com a inclusão de vocábulos extraídos das propagandas, temas “kitsch” e sangrentos, abertura aos experimentos poéticos dos concretistas, abertura ao acaso, ao happening. Mais recentemente, este lirismo se deixou permear por artifícios como a descrição técnica, a exposição de temas não-líricos, as frases de efeito, o sexo sem meias palavras (desprovido dos eufemismos bossanovistas), e, essencialmente por uma urbanidade caótica onde tudo se relaciona com tudo. Os temas escolhidos por esses autores os aproximam de linhagens musicais e sonoras que não compartilham de um estatuto no panteão da grande canção brasileira, sobretudo o punk paulistano, o hip hop de periferia, as experiências do pós-punk inglês e norte-americano (a NoWave, p ex), etc. Há também uma visão micropolítica, fragmentária, incrédula de inserção em um todo coerente (os rótulos, a MPB). Presença do desconforto: temas, ruídos, palavrões, estranhamento, mulheres que se transformam em prédios, colégios internos travestidos em grandes centros de sodomização infantil.

Como em “Ilhas de Calor”, mas também em “Helena”, canção de Kiko Dinucci e Rodrigo Campos:  os versos sacanas e românticos são intercalados por prédios que contraem micose, bronquite.

 
Letra: “Ilhas de calor” (Negro Leo) 
“As madres observam à distância o esquema de compensação psíquica desenvolvido pelas crianças pra suportar a catequese. Naqueles tempos uma madre confessou-me angustiada que assistiu Calígula de hollywood, que as outras madres acudiram em reparar, eram virtuosas na correção. Certo dia essa mesma madre cismou comigo, não entendi a barra dela, quis obstruir o acesso à minha ilha: pau pau pau...”


“Helena” (Kiko Dinucci/Rodrigo Campos)  
Helena
Não vem dizer Helena
Que a vida é só pra nós
Que a vida é só pra nós
Helena
Tem só nós dois Helena
A vida é só pra nós
A vida é só pra nós
Helena,
os prédios tem micose
Helena, os prédios tem varizes
Helena, os prédios tem bronquite
E a cidade é um rádio por dentro
(…)
Helena,
os prédios também morrem
Helena, prédios também transpiram
Helena, prédios também escarram
E a cidade é o centro do cerco.

Negro Leo se apropria de forma particular de uma técnica desenvolvida por Guérasim Luca, poeta surrealista franco-romeno nascido em 1913-1994. Luca investiu no tensionamento da língua através de uma diversidade de técnicas literárias que desproviam a palavra de suas funções correntes e sublinhava ritmo, tessitura, voz, performance. Leo realiza um procedimento semelhante em diversas canções, utilizando as palavras como elemento rítmico em sintonia com as modulações instrumentais, emitindo formas sonoras assemânticas em um registro jazzístico-improvisado. Como em "Tepco":




Por fim, o niilismo debochado e violento da canção “Rá Rá Rá”, novamente assinada por Dinucci e Campos, de imagens alusivas à sanguinolência splatter dos filmes de terror norte-americanos, à ultraviolência, e, no refrão, o pedido nonsense: “deixa eu gozar enquanto morro de tanto rir”. Este conteúdo provoca contraste radical em um samba de feições tradicionais. Choque, confronto.


"RáRáRá" (Kiko Dinucci/Rodrigo Campos) 
Quero sentir seus ossos
Quebrando entre os dentes
Seus entes pedindo socorro
Quero ouvir o esporro
Dos olhos pulando da cara
Coisa rara
Em terra de cego de olho de vidro
Quero honrar teu amigo
Antes da ceia
Um só tiro no umbigo
Fecundar sua filha
No mais
Amar tudo que ama
Enfim, brincar no seu autorama
Desculpe a dignidade
De lhe dizer atrocidades
Mas essa é a minha maior qualidade
Deixa eu gozar
Enquanto eu morro
De tanto rir 
Rá rá rá

(Obs.: Notas apresentadas no evento "Para ouvir uma canção: Voz e Tecnologia", 17/10/2014)

quinta-feira, 20 de março de 2014

Juçara Marçal – Encarnado (2014; s/g, Brasil)

























1. Cantar é vibrar cordas vocais, escreveu Tom Zé em “Multiplicar-se única”, sublinhando a íntima conexão entre voz particular e canção comunitária, entre sopro e comunhão: “simples prazer de ressoar no ar o som da voz. Canta por nós cordas vocais sem cais, cordas ou nós.” Cantar, gesto impuro de talhada e precisa contenção, que não vem do coração, nem da pureza da natureza. A fumaça irrita a garganta, os copos tilintam no salão, desviando a atenção do cantor. Às vezes, a voz aparece e somos como que tomados por uma imprevista sensação de captura. O canto encarnado de Aracy de Almeida, Elizeth Cardoso, Elza Soares, Clementina de Jesus, Jovelina Pérola Negra e, mais recentemente, Juçara Marçal.

2. Encarnado não é um disco sobre a morte, nem sobre a morte que habita um fenômeno maior, que é a vida. Encarnada é a condição de tudo o que vive, suas qualidades instáveis, seus atropelos, variações e desgastes. O encarnado, sobretudo, resiste. Resiste com as marcas de navalha que sua própria mulher, por ciúmes, rabiscou em sua cara. Ressucita e retorna para “bater até cansar” nos covardes que o assassinaram. “Passa na carne a navalha, se banha de sangue” e roga aos deuses para atravessar momentos excruciantes de um aborto ritualizado. Encarnado, o primeiro disco solo de Juçara Marçal, é, portanto, um disco sobre o ato e o efeito de resistir.























3. Povoado por personagens reais e imaginários, Encarnado narra as desventuras de seres que resistem. Seres que se encontram isolados no mundo, atormentados por fantasmas e memórias de “três guerras no peito”, tomados pelo ódio e pelo medo, errando pelas ruas se perguntando “que vida é essa?” Seres “sem ombro amigo, com febre e confusos em um precipício.” Ou seres que conversam consigo mesmos, projetando-se anos depois, envelhecidos. Do outro lado, assistindo ao tenebroso espetáculo da existência, a Morte desabafa: “quero me aposentar pra ganhar tranquilidade, deixando a humanidade matando no meu lugar.”

4. E, no entanto, o disco abre com uma declaração não propriamente “otimista”, mas afirmativa: “Não diga que estamos morrendo. Hoje não.” O texto de Romulo Fróes para o release do disco tem a manifesta perspicácia de pinçar esta frase como o sintoma, o sentido, o norte de Encarnado. Apesar de todo o turbilhão de forças externas que o fazem perecer, o corpo pode mais do que resistir. Pode recursar-se a morrer, bradando: “hoje não!” Metáforas são possíveis na perspectiva de um corpo que resiste, mas não me ocorre nenhum meio mais poderoso de resistência do que através da capacidade de experimentação e invenção. Em arte, particularmente.



5. Tal como os projetos habituais de uma certa turma de São Paulo, Encarnado exprime o resultado de um apurado trabalho de (re)invenção sobre a matéria da canção e das manifestações multifárias da “música popular brasileira”. Responsáveis pelo que de mais interessante surgiu nesta seara nos últimos trinta e poucos anos — desde os primeiros álbuns de João Bosco e Djavan? — a turma vem infundindo outros materiais sobre a canção brasileira através de grupos como Metá Metá e Passo Torto e autores como Romulo Fróes e Rodrigo Campos, entre outros. Em termos de concepção temática e sonora, Encarnado talvez seja, em relação a este núcleo de artistas, o disco mais rico e, ao mesmo tempo, divergente do cancioneiro brasileiro recente.

6. O canto de Juçara Marçal reúne muitas informações com as quais podemos determinar uma espécie de procedência. A rigor, é possível vinculá-la ao rol das cantoras suaves, como Alaíde Costa com seu soprano versátil. Sua voz é tecnicamente admirável, mas o assunto aqui não se resume à técnica. Também não me refiro somente à ausência de floreios e clichês com os quais podemos identificar uma larga porcentagem das cantoras contemporâneas. Um dos trunfos desta que me parece ser a maior cantora surgida no Brasil desde Alcione, é a capacidade de adequar seu canto à composição com uma certa humildade, respeitando-a. Quando sua voz cruza o salão, porém, Juçara é capaz de revestir esta mesma canção por uma qualidade enérgica, exprimindo bom-humor sem afetações, ímpeto e tensão dramática. Deflagra-se, então, todo um cortejo de possibilidades, do sussurro rouco ao grito lancinante. Juçara faz parte daquele rol restrito de cantoras que, ao interpretar, compõem e recompõem a canção.























7. O repertório é quase que integralmente contemporâneo. Todos os compositores estão vivos e operantes, com exceção de Itamar Assumpção — cuja presença, no entanto, permanece forte entre nós. Mesmo o jovem veterano Tom Zé comparece com “Não Tenha Ódio no Verão”, canção proveniente de seu último álbum, Tropicália Lixo Lógico. Pela ordem de aparição, é possível elencar um manancial de compositores capazes de enterrar de vez a ladainha da “crise cultural” ou da “crise da canção brasileira”: Rodrigo Campos, Douglas Germano, Everaldo Ferreira da Silva, Romulo Fróes, Alice Coutinho, Gui Amabis, Régis Damasceno, Kiko Dinucci, Siba Veloso, Thiago França e a própria Juçara Marçal. Compositores diferentes entre si, mas que, através de um recorte preciso, reúnem-se ao redor do conceito do álbum.

8. A instrumentação é econômica, calcada no diálogo entre as guitarras de Kiko Dinucci e Rodrigo Campos, que fornecem a espinha dorsal da grande maioria dos arranjos. Thomas Rohrer na rabeca e Campos alternando-se no cavaquinho com e sem efeitos, completam o time, que também conta com Thiago França com seu saxofone percussivo em “Damião” e pocket piano em “E o Quico?”. Uma profusão de efeitos dramáticos e climáticos são obtidos a partir de guitarras e cavaquinhos que distribuem-se e justapõem-se em bordados sonoros compostos por acordes soltos, solos, arpeggios, ruídos, ostinatos — observem, por exemplo, a reviravolta rítmica de “Queimando a Língua” (aos dois minutos), a chegada do disco voador em “E o Quico?”, o cavaquinho agudo de Campos intervindo brutalmente sobre os versos dolorosos do refrão de “Ciranda do Aborto”, os efeitos que pontuam “Canção para Ninar Oxum”, etc.

9. Rodrigo Campos comparece com “Velho Amarelo”, o abre-alas, a canção que ostenta o “grito” primordial que permeará todo o disco: “Hoje não!” Já o grito de Douglas Germano e Everaldo Ferreira ensaia a ressurreição triunfante de Damião Ximenes Lopes, assassinado em 1999 por funcionários de um manicômio em Sobral, Ceará. Juçara sobe o tom, disponibilizando-se para surrar os que mataram Damião: “Dá neles Damião! E quando cansar me chama!” Seguem-se duas composições que subvertem o amor lírico com sagacidade. Em “Queimando a Língua”, Romulo Fróes e Alice Coutinho interpretam o transe amoroso através de versos oblíquos, enquanto “Pena Mais que Perfeita”, valsa de Amabis e Damasceno, versa sobre a pena que “na pele moura ferve numa contradança”. O amor incide de forma impiedosa sobre o corpo que resiste, queimando, fervendo.

10. “Odoya”, composição de Juçara, serve como prece para uma travessia dolorosa. Me refiro à “Ciranda do Aborto”, que, novamente nas palavras de Romulo Fróes, destoa do amor romântico com o qual se identifica a poética amena da MPB. Este “bem querer” a que se refere a letra é um ser morto, “despedaçado” por um aborto ritualizado. Afora a roupagem sonora, composta por rabeca, guitarra e cavaquinhos distorcidos, em nada semelhante à roupagem condescendente da MPB contemporânea, observa-se a subversão de alguns dos clichês mais caros aos artistas que se abrigam sob esta sigla. A performance fenomenal de Juçara, a entrega evidente com que entoa cada um dos versos, faz sobressair a tensão entre o corpo retalhado e a presença de um aspecto sobrenatural. À maneira funérea de Nelson Cavaquinho em “Depois da Vida”, Dinucci encena a luta da mãe por conservar seu rebento neste mundo, carregando o ambiente com elementos trágicos — “Mas o chão te engoliu, toda lida findou, pra você descansar no meu braço.”



11. Os versos e melodias precisos de Germano reaparecem em “Canção para ninar Oxum”, levantando o astral para a sequência de canções cômicas. “E o Quico?”, de Itamar Assumpção, além da óbvia alusão involuntária ao guitarrista e compositor do disco, retrata uma conversa delirante sobre questões existenciais entre o próprio Itamar, uma assombração e seres extraterrestres. Depois, a recomendação impagável de Tom Zé, sugerindo ao ouvinte que não tenha ódio durante a referida estação, concluindo com versos de um patriotismo irônico: “isto arrebenta uma nação!” Por fim, a poesia de Siba Veloso, precisa, terrível e satírica a um só tempo, em “A Velha da Capa Preta”: “E a vida é como um cigarro que o tempo amassa e machuca, e a morte fuma a bituca e apaga a brasa no barro.”

12. Finalmente, a voz é o tema de “Presente de Casamento”: Juçara canta um tom acima para desenhar a melodia bluesy e a letra reminiscente, fruto da parceria entre Romulo Fróes e Thiago França. O disco se encerra com “João Carranca”, interpretação da canção registrada em 2007 por Kiko Dinucci e Bando Afromacarrônico. Acompanhada apenas pelo cavaquinho, Juçara narra a história de Guaracy, rainha da Boca do Lixo, que vê o tempo passar e envelhece. Quando seu jovem amado João se torna um rapaz desejado pelas moças, a mulher com ciúmes retalha o rosto do rapaz, transformando-o em João Carranca.



13. A voz que canta pretende resistir ao tempo e até mesmo ao espaço que possibilita sua propagação no ar. Mas também se dispõe a transformá-lo, como a navalha transforma João em João Carranca. A arte, a música em particular, resiste como as cicatrizes na face de João Carranca, como o ciclo de vida e morte que anda por toda a parte, como as múltiplas possibilidades da canção, depósito da economia afetiva da multidão. A voz é navalha no ar, no ânimo, no corpo, na carne, alvos constantes dos ataques impiedosos do acaso e das causas externas. Por esta razão, cantar é mais do que lembrar, mais do que viver. Cantar é também refazer, resistir. O canto “encarnado” de Juçara Marçal, resiste.

Bernardo Oliveira

quarta-feira, 24 de julho de 2013

Um Passo à Frente: Entrevista com Passo Torto





















Ao contrário da maioria dos grupos que tem um compositor galvanizando o processo criativo, vocês são quatro cabeças com ideias e com poéticas próprias. Como foi o processo para encontrar o ponto de convergência entre interesses diversos?

Romulo: Nós quatro temos personalidade artística estabelecida e diversa, possível de se perceber nos trabalhos de cada um. E não só nós do Passo Torto, mas também os outros integrantes dos outros projetos, dos quais fazemos parte. Acho que o que nos une e que movimenta o nosso trabalho, vem justamente do interesse e da admiração que temos um pelo outro. Mesmo em trabalhos solo, como o meu e o do Rodrigo, deixamos que as ideias de todos impregnem nossas composições. E vem daí a confusão que provocamos em muita gente, da nossa força de produção e da variedade de possibilidades de interpretação que nossos trabalhos permitem e que é para mim, sua grande força.

Quais as principais diferenças conceituais e sonoras entre o primeiro e o segundo disco?

Romulo: A mudança mais perceptível já vem estampada no título do disco, Passo Elétrico. Eletrificamos nosso som. Saem os violões e entram as guitarras do Kiko e Rodrigo e mesmo o baixo acústico do Cabral vem envenenado por pedais de efeito, assim como o cavaquinho do Rodrigo. Dessa eletrificação, nasceram novas possibilidades de composição, influenciando até mesmo as letras, que me parecem um pouco mais nervosas que as do primeiro disco.

Basta escutar Passo Elétrico para chegar à conclusão de que a canção está longe de morrer. O que de fato morreu e o que vive na canção brasileira contemporânea? O que vocês percebem hoje no Brasil nesse sentido?

Romulo: O que nos uniu no início, foi justamente nosso interesse por canção. Essa interpretação mal feita da frase do Chico Buarque é que já devia ter morrido. Entendo perfeitamente o que ele diz. Não foi a canção que morreu, foi a ideia de canção que construímos no século XX que passou a não fazer mais muito sentido neste século e que o Chico, na época de sua célebre entrevista, via mais sentido e novidade no que o rap vinha produzindo. Só acho que deveríamos atualizar essa percepção. Existe toda uma geração surgida nesse século que vem abrindo novos caminhos para a canção e que passa justamente pela experiência sonora e sua familiaridade com o processo de gravação. E que já influenciou o trabalho de nomes sagrados da nossa música como Caetano Veloso e Gal Costa. E influenciou até mesmo o rap, caso do Criolo, cujo disco foi produzido pelo Cabral juntamente com o Daniel Ganjaman.

"O que nos uniu no início, foi justamente nosso interesse por canção. Essa interpretação mal feita da frase do Chico Buarque é que já devia ter morrido."



A música do Passo Torto combina subversão da tradição da canção brasileira, inclinação ao ruído, sujeira, opacidade. É possível traçar linhas com o som que vocês ouvem e gostam? O que vocês gostam de escutar hoje, de ontem e de hoje?

Romulo: Mas é claro que sim! A gente é o que a gente ouve. A nossa particularidade é que a gente desconfia muito do que ouve, hahaha. É muito frequente em todos os nossos trabalhos, não acreditarmos fielmente na vocação de cada canção. Se ela se apresenta como uma bossa nova, sua harmonia será inteiramente destruída até não deixar vestígios da influência que a originou. Se a melodia aponta pra uma certa docilidade, a letra seguirá o caminho oposto, a fim de anular a vocação natural da canção. Dessa constante negação é que nasce o que tem de mais original em nossos trabalhos. Da negação nosso trabalho se afirma. Como compositor, é preciso muita maturidade e confiança para lidar com esse processo de desconstrução do seu trabalho.

O release deixa bem clara a tendência sonora exploratória, substituindo a clareza harmônica por texturas rítmicas, ruídos e sonoridades dramáticas. Por favor, falem um pouco a respeito dos arranjos.

Kiko: De alguma maneira o som do disco traduz o que sentimos pela cidade, a São Paulo de hoje está no disco com certeza. Os ruídos, a polifonia, o ritmo vertiginoso, beleza e feiura aparecendo paralelas. Mas isso não foi uma meta nossa, foi apenas uma consequência estética fruto da nossa própria vivência urbana. Acredito que se morássemos em uma cidade bonita, preservada e com qualidade de vida, a nossa música seria outra.


Em relação à poética, a diferença entre o primeiro disco e o Passo Elétrico me parece evidente. Antes, vocês cantavam a estranheza de São Paulo com um travo meio amargo, meio sombrio. Mas agora há uma irreverência, uma ironia sacana, ainda um clima sombrio, mas irônico…

Kiko: Engraçado, embora o primeiro trabalho fosse melancólico, ao mesmo tempo ele era mais solar, existia mais lirismo, era uma estranheza diurna da cidade. O Passo Elétrico é um diagnostico da cidade doente, não há espaço para esperança, ele canta a morte de SP. É nessa falta de esperança que surge o olhar mais malicioso e sarcástico. Uma espécie de "foda-se", como alguém que sorri pra própria morte, com desprezo.

O Passo Elétrico é um diagnostico da cidade doente, não há espaço para esperança, ele canta a morte de SP. (...) Uma espécie de "foda-se", como alguém que sorri pra própria morte, com desprezo.























Em relação ao trabalho de arte do Kiko, na capa, nas filipetas do Passo: a arte parece fazer parte do som, da ideia transmitida pelo som. Qual a intenção em manter a unidade visual do Passo?

Kiko: Sempre tivemos um compromisso estético, visual, nos preocupamos muito com isso. O Romulo tem muita vivência em artes plásticas. O Rodrigo adora cinema. Tentamos refletir isso nas capas e nos cartazes. Gostaríamos de ampliar mais essas experiências, com arte, vídeo, cinema.

Escutando “Rárárá” me toquei que um samba assim meio de vanguarda é algo que não se faz no Brasil desde algumas experiências de Paulinho da Viola, Candeia e Elton Medeiros (com Tom Zé). Pelo menos dois de vocês (Rodrigo e Romulo) surgiram dentro de um contexto de samba. Como percebem o conservadorismo que perdura hoje nesse gênero que é tipo uma instituição nacional?

Kiko: A idéia do “Rárára” era fazer uma estrutura bem tradicional, lírica. Tenho muita vivência no samba. Conheci o Rodrigo tocando com ele numa roda. A estranheza dessa música é a letra, extremamente sarcástica e violenta. Pensamos muito na maneira de como as pessoas tocam samba hoje. Enxergo um caminho evolutivo entre os grandes sambistas da história: Sinhô, Donga, Bide e Marçal, Ismael, Noel, o Cacique de Ramos e por aí vai. Hoje a juventude que se diz sambista pega esse bastão e joga lá pro passado novamente, como se engessando uma cultura fosse o melhor jeito de conservá-la. Acredito que a tradição vem da invenção e se adapta ao tempo atual para sobreviver. Nenhum jovem vai conseguir imitar o Candeia, nem o Bob Dylan, tem que ser honesto consigo mesmo e assumir o "hoje" no seu trabalho. Ao mesmo tempo falamos sobre samba porque temos vivência nesse gênero, temos muito respeito, embora pareça que não.

"Nenhum jovem vai conseguir imitar o Candeia, nem o Bob Dylan, tem que ser honesto consigo mesmo e assumir o "hoje" no seu trabalho."



Por favor, falem um pouco sobre como tem sido as apresentações de vocês, e se planejam algo para o Quintavant, nos próximos dias 28 e 29?

Romulo: As apresentações tem sido especialmente prazerosas pra nós todos. Passo Elétrico é um disco complexo de se fazer ao vivo, por conta da polifonia rítmica dos arranjos, das muitas mudanças de efeitos numa mesma música e da junção de todas essa vozes produzidas por cada instrumento, uma espécie de maquininha que só se realizam plenamente quando está em perfeito estado de funcionamento. E é o que tem acontecido nos últimos shows, a ponto de já nos sentirmos a vontade de mudar o funcionamento dessa máquina, levando os arranjos pra caminhos ainda mais inesperados. É o que pretendemos fazer no Rio de Janeiro e se nos divertirmos como nos últimos shows, tenho certeza que a diversão se espalhará pela platéia.

Depois do “passo torto” e do “passo elétrico”, pra onde está caminhando o interesse de vocês? Qual é o próximo passo?

Romulo: O próximo passo será sempre o passo adiante. O passo que mudará o passo anterior. Diferente, mas sempre torto!























Perguntas elaboradas por Mariana Mansur, Fred Coelho, Juliano Gomes e Bernardo Oliveira

Passo Torto – Passo Elétrico (2013; YB, Brasil)

























O novo trabalho do grupo Passo Torto é escuro. Brilha de forma intensa, mas se mostra um brilho opaco, que rompe a noite mas faz parte dela. Passo Elétrico é um disco em que o frio que cruza as cidades nesses dias de julho fazem sentido sonoro. Escrevo esse texto por acaso de São Paulo e ao andar pela Avenida Paulista todo o som desses dias se encaixam na cornucópia de riffs, distorções e cordas percussivas que atravessam suas composições. As quedas em buracos, os silêncios, as tempestades, os desencontros dos narradores de cada composição (“eu vim determinado a lhe dizer adeus”) ganha massa sonora e poética que incendeia, taca fogo. Mas, mesmo assim, faz escuro nesse novo passo.

Os prédios dessa cidade-mundo que é o centro do cerco morrem, escarram, têm varizes. A cidade te engole, devora o que você tem. Não há meio termo e, em “O Buraco”, o tom profético sobre nosso tempos de convulsão é certeiro: “te avisei, nada vai parar”. A São Paulo pujante do progresso sem fim ganha o contra-discurso tenso, duro e malicioso da banda. Composta por quatro nomes ativos da atual cena musical paulista, Rodrigo Campos, Romulo Fróes, Kiko Dinucci e Marcelo Cabral se desdobram em diversos projetos solos (Rodrigo e Romulo) e trabalhos paralelos que expandem uma rede intensa de produção. Uma rede que vai do rap de Criolo ao experimentalismo dos MarginalS, incluindo no percurso a pedrada musical do Metá Metá. 

É importante notar que o samba, algo central nas carreiras de Rodrigo, Romulo e Kiko, principalmente, tem um lugar discreto porém fundamental na sonoridade tensa do Passo Elétrico. Se nos discos dos três a percussão é elemento fundamental para um novo caminho do velho estilo tradicional brasileiro, aqui são as guitarras, contrabaixos e violões que dão o tom percussivo. Faixas com duas três guitarras, em polifonias de efeitos e riscos, reinventam o instrumento dentro da nossa música recente. Apenas na sensacional “Rárárá” é que temos a escola mais clássica do samba. Mesmo assim, é um samba sinistro, em que a pegada sagaz do cavaco em contraponto à guitarra rascante são amarrados por uma melodia sinuosa e uma história de sexo, morte e gargalhada. Malandragem pura na beira do desbunde cachaceiro e da marofa impregnando o ar. Um samba que nos leva a outra dimensão.

Mas a escuridão do Passo Elétrico é também uma escuridão do segredo, da conversa muda pós-sexo, como em “O símbolo”, diálogo interno do amante sobre o x da questão, parte feminina que nos encara logo de manhã e põe em um plano surreal essa conversa que todos nós já tivemos. Se bato de frente, provoca fadiga. Como o som deles, o símbolo é raivoso, é faminto, é incisivo. São esses pontos escuros de nossa existência que, faixa a faixa, vão constituindo um mosaico de insanidades, de agonias, seguindo uma escola lírica rara entre nós. Não há concessões nem quando se declara amor, como em “Helena”, “A não se que me ame” ou “Isaurinha. São canções que transtornam lugares-comuns do amor no cancioneiro brasileiro. Em “Isaurinha”(que me lembra “Isaura”, composição de Herivelto Martins e Roberto Roberti, gravada por João Gilberto), chega-se a cantar que “tenho vergonha do amor”. Quem tem coragem de afirmar isso nesses tempos? São quatro homens/quatro vozes/quatro narradores que se colocam em um espaço de desconfiança, de putaria, de dissimulação do amor. Caso raro que dá beleza — e desconforto — ao disco. 

Já foram muitas as ótimas resenhas sobre Passo Elétrico. Essa aqui é apenas um convite ao show deles que acontecerá no Rio nos dias 28 e 29 de julho, para deleite dos cariocas. As cordas elétricas e acústicas que eles cruzarão no palco da Audio Rebel precisam ser vistas ao vivo, em ação, para que suas sutilezas e seus arranjos minimalistas, complexos e belíssimos sejam confirmados por nossos olhos. 

Escolho para fechar esse texto um faixa em especial do disco. É “Passarinho Esquisito”.  Subvertendo um tema clássico da MPB, esse passarinho é estuprador. Ele não é o “Sabiá” que me levará de volta do exílio, como a ave que só gorjeia “lá”. Nem será o “Passarim” que quis pousar, não deu, voou. Esse “passarinho esquisito” é um animal transtornado, que tenta se enfiar na vida do narrador da canção, come pelos do nariz, finge que é o outro. Tenta ser irmão, pai, mãe, espírito santo, mas, segundo a frase genial “não é bastante estrangeiro” para tanto. Não ser bastante estrangeiro resume bem o sentimento que surge das minhas audições do Passo Elétrico.  Que lugar é esse que a banda se instalou para olhar para todos nós? Que cidades, que pessoas são essas que caem no buraco do mundo para, através do escuro, acharem a luz? Somos todos passarinhos esquisitos, em pleno vôo, sem saber onde iremos parar. Para os tempos atuais, Passo Elétrico é a trilha sonora essencial. 

Fred Coelho



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Passo Torto: antes de tudo, trata-se de um modo. Antes de qualquer ruído, um aviso de rota, uma indicação de maneira, um sinal de forma: o caminho aqui não é reto, é irregular. Ao mesmo tempo em que o passo é a unidade e a medida é compartilhada (tradição da canção), a qualificação aponta para um modo desviante. Uma postura crítica a priori, nessa nomeação que narra uma espécie de conceito, de marca de nascença. Passo Torto nasce dessa doce condenação: atuar dentro de um espaço excessivamente marcado e dentro dele seguir um caminho próprio. Em Passo Elétrico, se não há a aguda contradição do disco anterior entre uma estética sonora do “bom gosto acústico” e uma abordagem violenta desse material, assim como a constituição de seu imaginário poético, há agora um aprofundamento na criação de um espaço absolutamente próprio e novo, gravando à força seu nome na acidentada calçada da canção brasileira.

Essa “autoconsciência” não ameaça a construção de um universo estanque na medida em que cada canção exala a energia necessária para tal, mas por dentro. O caminho não é, no corpo das canções, da teoria, ou melhor, do exterior, caso fossem canções limpas, estáveis, que são envenenadas por ruídos, distorções e dissonâncias. Não. Talvez seja justamente o contrário: o coração das faixas é impuro. Pode ser um grito, um respiro, uma quase sirene, uma conversa de guitarra. Mesmo a voz sendo o único elemento que parece conseguir se safar da torrente sonora que arrasta e debate as cordas, é difícil localizar-lhes um centro (apesar da recorrente circularidade): o refrão de "Isaurinha", o “ê” de "Tempestade", os nomes próprios. São canções que constituem uma massa. Matéria essa que cultiva os contornos e os estende, investigando-lhe os limites. Não raro há uma espécie de sensação de combate (marcadamente nos duelos das cordas em estéreo). Cada timbre ameaça. A morte toma várias formas: sumir, adeus, cair, definhar, naufragar,  entre muitas outras. E o som é também todo esse flerte com um desparecimento, por subtração (a maior, da percussão, abrindo uma espécie de “deficiência” fundadora e também libertadora) e excesso ou confusão (no final de "Banquete", ou mesmo de "Helena"). O flerte é com esse ponto onde a forma se desfaz: seja no universo poético atipicamente sólido para um grupo de compositores (dificilmente se adivinha de quem é a letra ou música) ou nos arranjos e (des)organização de sons.

"Tempestade" começa: “Quem ouve essa voz/ diante dessa voz/ parada entre nós/ reconhece/ o som/ Permanece/ som/afogado/antes de virar/felicidade/prende todo ar”. Esse recado direto que dá início a que me parece a faixa central de Passo Elétrico, revela uma segurança incomum que marca todo o trabalho, no sentido de um saber sobre onde se está pisando (ou caindo) e que efeitos isso tem. Essa manobra que poderia cair facilmente num pedantismo, na verdade revela uma postura aberta com a qual esse conjunto de canções nos encara. Por mais que a opacidade esteja sempre rondando, que os anteparos se coloquem nas ligações entre os materiais e os personagens (explorando os limites de um reconhecimento de um campo comum), não há segredos, não há truques. Se não abundam adjetivos ou digressões sonoras é porque o universo aqui é claramente da ordem do concreto. Cada elemento significa ele mesmo.

Nos momentos de representação ou mesmo de “encenação”, onde letra e música convergem numa imagem única (a explosão de "Banquete", o tic tac de "O Buraco") essa inventividade da paisagem sonora torna essa passagem de operação de sentido fluida. A máquina não para pra fazer uma imagem. Cada nascimento de um movimento novo nas canções, amparadas pelo notável  trabalho de sustentação e propulsão de Marcelo Cabral, parece vir dessa magma, desse borbulhar de cimento ainda quente, ainda em movimento,  como na segunda parte de "Passarinho Esquisito" e nas cordas que dividem "A Não ser que Ame" no meio. O peso conceitual não se transforma em arbitrariedade afinal.

Dois lugares inescapáveis são traçados em Passo Elétrico. Primeiro: a circularidade, a impressão de uma dificuldade de progressão. O tempo é então de suspensão, de rodear um centro, de variar sobre uma área específica, e à cada volta, adicionar ou subtrair. A linha evolutiva, mesmo com as eventuais variações e divisões clássicas de A e B, parte maior, parte menor, a sensação é sempre de permanência (não por acaso o signo da sirene me é sugerido diversas vezes). Um desvio no tempo afinal, que dá solidez a esse universo igualmente coerente e fugidio, violento e suave. Tudo se impõe com a mesma força de infiltração, como quando desaparece . Essa "deslocalização" hipnótica da forma circular, essa insistência gera isso.

Em segundo lugar, o ausência de percussão. Por todo o disco, o incômodo permanece, pulsa o tempo todo uma falta, na medida em que o ritmo está ali, ensejado, os pulsos aceleram, mas o ponto do passo, a marca, é uma ausência, um corte mesmo. De alguma maneira esse fantasma nos acompanha durante toda a audição. É como que a forma dessa figura de morte tanto perseguida, como que um rock que perdeu a perna, manco e desfalecido, mas obstinado. Esse vazio abre espaço pro protagonismo das cordas, e pra sua função rítmica. Mas é algo que nunca se naturaliza. Aliás, se o primeiro disco dava entender que o horizonte era dessa ordem, o possível equívoco se soterra completamente no Elétrico. O domínio aqui é o do artifício, do inorgânico, que por final se mistura, se dilui, e constitui essa nova ordem, essa matéria rara que constitui esse capítulo decisivo na música brasileira hoje, esse doce impasse. 

Se a “canção morreu” é precisa habitar o mundo dos mortos. E nesse mundo, Kiko Dinucci, Marcelo Cabral, Rodrigo Campos e Romulo Fróes, parecem completamente à vontade. Ficamos então à espera de sua volta de lá. Ansiosos.

Juliano Gomes