Em Lacuna (2012), primeiro longa metragem do diretor carioca André Lavaquial, há o registro de alguns diálogos entre os membros do grupo carioca Chinese Cookie Poets. Trata-se aparentemente de um momento em que o trio se esforça para encontrar estratégias de composição e arranjo — a bem da verdade, isto eu pude presumir, pois eles conversavam utilizando uma linguagem hermética o suficiente para que algumas frases se fizessem absolutamente incompreensíveis. É possível distinguir cada palavra dessas estranhas conversas, mas o sentido de cada uma delas parece interditado.
Sobre o que falavam? Provavelmente sobre notas, acordes, timbres, dinâmicas. Será que estão em busca de uma correspondência secreta, forçando a palavra a exprimir-se tanto no plano da comunicação verbal, como na expressão sonora? Restou, enfim, a certeza de que, para além da vocação para o improviso e das habilidades evidentes de cada um dos instrumentistas, o método e os procedimentos de composição e arranjo, constituem o centro nervoso da música do Chinese Cookie Poets.
Em seus trabalhos anteriores, destacava-se a combinação prodigiosa de improviso livre com a gana tribal e dissonante da no-wave — tendo o DNA de Arto Lindsay como referência —, além de ecos evidentes da combinação de jazz, rock e funk destilado por Miles Davis em On The Corner e em outros discos da fase setenta. Porém, a cada novo trabalho esses elementos são recombinados sob a influência de procedimentos específicos, comportando inclusive contribuições de tendências abstratas, como o noise e o minimalismo. Uma mescla de improvisação livre e temas compostos filtrados por severas edições digitais, no primeiro EP, 2010;Dragonfly Catchers and Yellow Dog, em 2011, registro de uma apresentação na Audio Rebel; Worm Love, de 2012, combinação de improvisação livre e edição criativa a posteriori, resultando nas dinâmicas nervosas de “En La Mano del Payaso” e da suíte “Three Worms”; e no último single, Viva La Raza, composição rigorosa, com baixos teores de improvisação. Em se tratando de Chinese Cookie Poets, sempre há que se perguntar pelo que virá em termos estéticos, técnicos e até mesmo visuais — a julgar pelo clipe prodigioso de “En La Mano del Payaso”.
Gravado em 2011, Danza Cava registra uma sessão com o trumpetista brasiliense Nicolau Lafetá, radicado em Amsterdã. Sob a influência do sopro lírico e preciso de Bill Dixon, Lafetá trouxe um outro temperamento para a sonoridade do Chinese. Abrindo mão de habituais tendências próximas à estridência do punk e da radicalidade do free jazz, o quarteto investiu dessa vez em estruturas concentradas nos baixos volumes, o que favoreceu a composição de ambientes permeados por pausas e silêncios. Como se observa logo nos primeiros minutos, com “Ojos de ceniza”: viradas discretas da bateria pontuam os acordes soltos do baixo e da guitarra, pavimentando o caminho para a melodia melancólica desenvolvida por Lafetá. O diálogo da bateria com o timbre rouco do trumpete abre “Lapetus l’uccello”, até que a linha de baixo se impõe como o guia do andamento. Em crescendo, o quarteto desemboca nos segundos finais em uma investida agressiva em síncopes características do p-funk.
A brevidade da vinheta “Il semi-affetto degli argonauti” tensiona a sequência, conduzindo o ouvinte para a faixa seguinte, “Tiao Yue”, talvez a mais complexa do álbum. Em uma dinâmica de "pergunta e resposta", as intervenções do baixo e da guitarra adquirem intensidade conforme uma certa dialética do improviso: de um lado, os músicos demonstram ter plena consciência de algum método prévio, mas, justamente por terem essa consciência, se permitem produzir pequenas mudanças, fraturas sonoras sobre a textura pré-combinada. “Chang’e III” retoma a pegada nervosa, apostando novamente na conversa entre trumpete e bateria: microfonia, ruídos percussivos do baixo e o trumpete “arranhado”, contribuem para formar um amálgama de timbres. “Passo torvo” encerra o disco de forma silenciosa, com os sons eletrônicos contribuindo para criar um clima de melancolia e desolação.
A capa, assinada pelo pianista e artista plástico Luís Augusto, exibe uma figura soterrada por uma cornucópia de rabiscos negros. “Excesso” talvez seja a qualidade mais evidente na pintura, mas convém observar mais atentamente. O rosto da figura parece propositadamente inexpressivo, como se pouco lhe importasse toda aquela atividade que se desenrola à sua volta. E, no entanto, ele se mantém sério, postura reta, indiferente. Somente a audição do disco pôde atestar se, na música do Chinese, as qualidades abstratas do silêncio poderiam substituir, ainda que provisoriamente, as evidências contundentes do excesso. Contrapondo-se à noção de ritmo e regularidade, a “dança oca” a que se refere o título, remete à geografia acidentada e detalhista das composições, contrária à vivacidade quase brutal dos trabalhos anteriores. Sim, o ambiente de Danza Cava é sombrio, por vezes melancólico. Com Lafetá, Felipe Zenícola no baixo, Renato Godoy na bateria e Marcos Campello nas guitarras, o Chinese mostrou que também é capaz de se expressar através de um alto nível de controle, e, ainda assim, com sua habitual espontaneidade.
Considerado como uma espécie de modo automático e espontâneo, no qual os músicos procuram extrair o máximo de seus instrumentos, o conceito de improviso livre é explorado de muitas formas ao longo de cada um dos trabalhos editados pela Mansarda Records. A diversidade sugere que duas frentes principais operam nas práticas do coletivo: o improviso corre solto, determinado porém pelo conceito previamente definido. Nem tudo se define no “aqui e agora” do improviso, ao contrário. Pode-se observar que boa parte do sucesso da empreitada advém de uma concepção forte que, aliada à espontaneidade e o vigor da execução, constituem as chaves para os lançamentos da Mansarda. Este é, sem dúvida, o caso de Honorável Harakiri, último lançamento do selo.
A cargo do trio Diego Dias (sax alto, tenor e clarinete), Marcio Moraes (guitarra) e Michel Munhoz (bateria), Honorável Harakiri é distribuído em três momentos. Primeiro, as seis partes com os “honoráveis harakiris”, nas quais o trio procura extrair o máximo de volume e inflexões de seus instrumentos. Alternando-se com os “harakiris”, os duos nos quais dois instrumentistas do trio travam conversações ao sabor do improviso. Por fim, os dois takes de “Amanhecer em Shibuya”, que são identificados no release como “a única faixa previamente concebida”. As intervenções ensurdecedoras de Diego Dias, tateando os limites agudos do seu sax alto e do clarinete, especialmente nos “harakiris” I e IV, confluem com o senso rítmico errante de Munhoz e os devaneios harmônicos de Moraes. Mas o resultado parece convergir para uma intenção comum, mesmo quando um deles toma a dianteira e conduz os parceiros. Ou seja, o foco no improviso não prejudica a diversidade de possibilidades e conceitos exploradas pelos músicos envolvidos.
Observam-se, assim, duas vertentes básicas em Honorável Harakiri: de um lado, o improviso coletivo desenfreado, característico do gênio militante de Peter Brötzmann; de outro, o cortejo eloquente de ruídos a partir dos quais os instrumentos se individualizam e partem para uma situação que pode ser descrita como algo entre o diálogo e o duelo. Este ambiente propiciou as condições para a elaboração de uma peça coesa e vigorosa, uma arena impregnada pelo conflito, mas que traduz uma decisão coletiva de manter em alentado desequilíbrio duas tendências sonoras aparentemente antagônicas.
Bernardo Oliveira
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Leia aqui a entrevista com os membros da Mansarda Records.
Que o ouvinte não se deixe enganar pela aparência mais convencional deste trabalho intitulado Pagodi, lançado no final do ano passado pela Mansarda. Nanã Parú no baixo, Peter Gossweiler na bateria e Diego Dias no saxofone tenor, soprano e no clarinete, obtém êxito na criação de climas e ambientes dentro um vocabulário próximo às aventuras modais de Anthony Braxton e Ornette Coleman. Em alguns momentos, dois instrumentos se calam e escutam o outro. Em outros, dois dialogam, enquanto o terceiro observa. E assim sucessivamente, em uma ciranda rica em monólogos e variações convulsivas. A segunda parte, intitulada Pagodi 2, foi editada três meses depois e tambem saiu pela Mansarda.
O Hexagotrópicos é um projeto de improvisação eletroacústica, realizado segundo duas modalidades de colaboração. Em primeiro lugar, trata-se de um trabalho a quatro mãos: de um lado, o improvisador, multi-instrumentista e owner da Mansarda Gustavo Bode; de outro, Leonardo Estevão, artista de Joinville que comanda o Boolean Records e participou do Projeto BERROS. Em segundo lugar, a dupla se reúne geralmente como uma colaboração remota, a partir do encontro virtual de materiais produzidos por dois lap tops. Contudo, neste último trabalho, Bode e Estêvão se encontraram em Porto Alegre e gravaram todo o trabalho junto, o que resultou em uma improvisação orgânica, cujo processo de criação conseguiu manter o compromisso com a improvisação livre e a composição instantânea.
Um quinteto munido de objetos diversos e eletrodomésticos busca extrair sonoridades estranhas de cada um deles. O procedimento é manual, "experimental" em um sentido amplo, não há máquinas digitais envolvidas, apenas furadeiras e liquidificadores. Mas a prerrogativa equipara-se com o que há de mais caro nas pesquisas sonoras que se valem da eletrônica: a instauração de um território sonoro onde o som natural e o som “musical” — ou, pelo menos, os sons consagrados como tal — perdem espaço para outros planos sonoros, um plano virtual no qual a matéria sonora, longe de ser limitada, adquire contornos inusitados, monstruosos. Durante pouco mais de uma hora de improvisação, o quinteto formado por André Castro, Diego Dias, Guilherme Darisbo, LBR e Sabrina López se vale de técnicas diversas, arranhando, percutindo, batucando em ferros, madeiras, engrenagens e demais objetos, para criar um panorama sonoro surpreendente.
Gravado em 2011, Danza Cava registra uma sessão do trio carioca Chinese Cookie Poets com Nicolau Lafetá, trumpetista brasiliense radicado em Amsterdã. Sob a influência do sopro lírico e preciso de Bill Dixon, Lafetá trouxe um outro temperamento para a sonoridade do CCP. Abrindo mão de habituais tendências próximas à estridência radical da no wave, o quarteto investiu em estruturas concentradas nos baixos volumes, o que favoreceu a composição de ambientes permeados por pausas e silêncios. Contrapondo-se à noção de ritmo e regularidade, a “dança oca” a que se refere o título remete à geografia acidentada e detalhista das composições, contrária à vivacidade quase brutal dos trabalhos anteriores.
Música de Diegeses Sugeridas foi o primeiro trabalho que escutei para valer da Mansarda. Por acaso, conta com três artistas próximos aos dois “capos” do selo. Ao lado de Gustavo Bode (trompete) e Diego Dias (saxofones, percussão), Guilherme Darisbo (objetos, violino, sintetizador), Marcio Moraes (guitarra) e Renato Rieger (baixo) perseguem intervenções conjuntas com estilo e senso de direção. Talvez seja este o elemento que mais me chamou a atenção nos trabalhos do grupo: para além do vigor com que tocam seus instrumentos, o voluntarismo e a força de realização, demonstram uma prolífera capacidade de manter o sentido do improviso em uma pluralidade de direções. Ora, se não é esta a característica que deve nortear a prática do improviso, qual seja, um controle inegociável do tempo e do conceito.
O trio carioca Chinese Cookie Poets lança hoje o single En La Mano Del Payaso, como prelúdio para Worm Love, primeiro álbum do grupo. Junto ao single (que você pode escutar no player abaixo), o CCP também disponibiliza o clipe hilário da faixa “En La Mano Del Payaso”. É motivo de júbilo para todos aqueles que admiram o noise-rock-nu-funk-free-improv-no-wave-out-choro-free-jazz-latin-punk-proto-samba com o qual o grupo vem angariando fãs não somente pelas bandas de cá. Além do Rio de Janeiro (capital e Região dos Lagos), São Paulo (capital e inteiror) e Vitória, o CCP fez 5 shows em 3 cidades do Chile. Nada mal para um grupo de música experimental, que iniciou os trabalhos a menos de dois anos em uma cidade inóspita para este tipo de atividade.
Formado por Renato Godoy (bateria), Felipe Zenícola (baixo) e Marcos Campello (guitarra), o Chinese Cookie Poets lançou dois trabalhos até o momento: o EP homônimo de 2010 e o bootleg Dragonfly Catchers and Yellow Dog. Porém, em 2012, o grupo promete pelo menos mais 3 lançamentos até o meio do ano, entre trabalhos de carreira e parcerias. Quem estiver interessado em conferir o som do grupo ao vivo, terá a oportunidade no próximo fim de semana, dia 21 de janeiro, quando o CCP se apresentará na Casa do Mancha, em São Paulo, ao lado de outra boa surpresa carioca de 2011, o Sobre a Máquina – em ambas as apresentações, a participação do saxofonista Alexander Zhemchuzhnikov. Abaixo, um bate papo virtual que tivemos com os integrantes do grupo.
Bernardo Oliveira
Ps.: Na próxima quarta-feira, Thiago Miazzo entrevista o Sobre a Máquina.
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Apesar de ter iniciado os trabalhos em 2010, o grupo apresenta um som maduro. Comecemos, então, pelo começo: como surgiu o Chinese Cookie Poets? O que vocês faziam antes de formar a banda?
Renato: Foi um processo de maturação bem natural e lento. Eu e Felipe tocamos desde o colégio, 1998. Tivemos dois projetos com uma direção puxada pro improviso, o Bossal (2000-2005) e o Muwei (2005-2009). O Felipe já conhecia o Marcos (que na época tocava no Fanfarra, depois no Farta Cecília) do estúdio de ensaio onde trabalhava e sempre esbarrávamos os três pelo Plano B na Lapa por volta de 2008. Após o fim do Muwei em 2009, eu e Felipe conversávamos sobre testar umas formações mais enxutas, duos, trios, abordando mais o free jazz, numa onda de fazer mais shows e praticar improvisação. Marcos e Felipe já esboçavam umas idéias, trocavam uns arquivos, marcavam umas sessões de improviso de baixo e guitarra (de onde surgiu “Flat Tire Bikes” do primeiro Ep).
Um dia bebendo uma cerva, Felipe me apresentou umas faixas com umas programações de bateria, pensando em fechar aquele material num EP. Na hora que ouvi gostei muito da proposta, mas achava que o resultado soava muito aquém do que seria se fosse alguém tocando mesmo. Foi quando propus de gravar umas baterias em cima, apenas pra registrar o EP sem intenção de formar uma banda. Em março de 2010 marcamos a sessão de gravação e aproveitamos pra registrar uns takes de improvisos. Os caras editaram tudo e me mandaram o material pronto. Ouvi o resultado, achei excelente e me toquei que precisava seguir com o projeto. Logo depois em julho surgiu a possibilidade de fazer um show na Audio Rebel (estúdio carioca) com o EKE (trio holandês de free jazz).
Foi quando o Felipe, depois de todo o processo de gravação/edição e já com as músicas prontas, me apresentou ao Marcos na véspera do primeiro ensaio pro show. Fizemos uns três ensaios e o show rolou. Aí a banda começou de fato, em agosto de 2010. O Ep mesmo só foi sair em dezembro.
As influências parecem evidentes: free jazz e demais sonoridades instáveis, de Sun Ra a Otomo Yoshihide. O que vocês costumam escutar hoje? E quais os artistas contemporâneos que mais influenciam o CCP?
Renato: Otomo é o cara, eu diria. Keiji haino e Tatsuya Yoshida, a cena de free europeia: Peter Brötzmann, Mats Gustafson, Zu, Moonchild do Zorn. A cena de Nova york anos 80 e 90, muito fértil, James Chance, Marc Ribot, DNA e Aggregates (trio do Arto Lindsay em 1995).
Felipe: Otomo é sem dúvida uma grande influência, assim como outros artistas japoneses como Boredoms, Melt Banana, Merzbow... Sobre nosso processo de edição/construção dos arranjos me influencio muito pela linguagem usada pelo duo Haino/Yoshida, mencionado pelo Renato. Fora isso John Zorn, free jazz em geral, Fantômas, Mr. Bungle, a cena No Wave... Também os trios Primus, Zu e Trans AM. “Baixisticamente” é impossível não impregnar o CCP com o som do Les Claypool, do Primus, faz parte da minha (de)formação como instrumentista.
Marcos: Frank Zappa e Alvin Lucier são grandes influências no que diz respeito à composição. Na guitarra, muito Derek Bailey, Marcelo Birck, Raphael Rabello, Brian May, John Russel, Fred Frith, Pepeu, João Bosco, Arto Lindsay. Atualmente tem o Hamilton de Holanda, Alex Macacek, Allan Holdsworth (não tão atual), Scott Henderson.
Como é o processo de composição do CCP? Quais as estratégias que vocês adotam no sentido de gerenciar os momentos de composicão e improviso?
Marcos: Temos dois processos principais de composição: a improvisação, de onde tiramos temas criados coletivamente, e a apresentação de idéias de cada um, que geralmente é feita através da produção de uma gravação tosca para indicar aos outros o caminho imaginado pelo autor.
O primeiro caso subdivide-se em duas frentes, sendo elas a gravação de sessões de improviso para posterior edição (onde surgem as músicas do disco), e a levação de som vendo o que sai, que também é gravada, mas de forma documental pra não perdermos o que acontecer de bom. No segundo caso, da música já imaginada por alguém, lapidamos até ficar decente pra ser tocada ao vivo ou lançada em disco – e geralmente a versão gravada é bem diferente da tocada em shows.
Respondendo a segunda parte da pergunta, nossa forma de conjugar composição/improvisação é mais empírica do que teórica; testamos partes improvisadas em meio a compostas e inserimos partes compostas entre improvisações. Outra situação é quando a música não tem um tema definido (o que geralmente significa que é mais textura sonora, ou então extremamente complexa para ser reproduzida literalmente). Nesse caso ou usamos a idéia geral da coisa como base pra improvisar ou então partimos para algo livre mesmo.
Foto: Mauro Castro
No Myspace está escrito: “Para os sedentos por comparações, CCP percorre diversos estilos compostos e hypados, como Noise-Rock, Nu-Funk, Free-Prov, No-Wave, Out-Choro, Free-Jazz, Latin-Punk, Proto-Samba...” Classificar o trabalho é realmente importante ou trata-se de uma ironia? Ainda existem “gêneros” hoje em dia?
Felipe: Em um primeiro momento sentimos a necessidade de “classificar” o som da banda no release, pois acabávamos de surgir e ainda apresentávamos uma sonoridade que soaria “estranha” para a grande parte das pessoas que ouvissem. Por isso sentíamos a necessidade de contextualizar nosso som dentro das nossas influências. Mas com certeza, fizemos isso intencionalmente de forma irônica, uma auto-zoação, pois nessa hora é muito fácil acabar com um discurso pedante, excessivamente intelectualizado. E eu pessoalmente vejo todo o “escracho” existente no CCP como uma forma de quebrar esse excesso de pedantismo que permeia o meio “experimental”.
Falem a respeito das gravações dos dois Eps. Foram retiradas integralmente das apresesentações? Vocês fazem algum tipo de pós-produção?
Renato: Nosso processo de gravação até agora tem sido um exercício interessante, pois trabalhamos muito na pós-produção, construímos e arranjamos muito na edição criativa dos improvisos, que gera resultados sempre improváveis, caminhos que não seguiríamos naturalmente. Depois do disco pronto, tem todo o trabalho de sentar e estudar o que foi criado mecanicamente. Por isso, no show, os arranjos ganham um sabor bem diferente, mais fluido pois usamos o espaço dentro das estruturas para executar tudo mais solto.
Mas tudo isso depende do conceito inicial que vamos seguir no disco, sempre estamos conversando sobre essas possibilidades se vamos gravar ao vivo, separado, editar, sobreposição, 4tracks… Até agora, em estúdio não gravamos nenhuma música composta previamente, todos os arranjos foram feitos durante a pós, processo que usamos pra fazer o primeiro Ep e o próximo álbum. Já o bootleg Dragonfly catchers and yellow dog (segundo Ep) é um show gravado na Audio Rebel na íntegra.
De qualquer forma, parece que há uma lacuna entre as gravações dos dois Eps e as apresentações ao vivo, pois percebe-se uma certa dificuldade para levar as nuances para o estúdio e vice-versa. Isto é previsto, ou vocês pretendem criar arranjos específicos para os próximos lançamentos?
Marcos: Na verdade o primeiro Ep foi feito em estúdio, sem sessões em que os três presentes, apenas takes em duplas e solos, com muita edição (onde surgiram os temas), num trabalho sem muita organicidade, mas com o objetivo justamente de criar algo minimamente orgânico – o que consideramos que foi atingido.
O segundo Ep foi o contrário, uma gravação tosca de um show nosso que ao ouvirmos achamos boa pela musicalidade. E nesse sentido ela mostra o fim do caminho de um dos nossos processos de composição, onde improvisamos/editamos em estúdio e depois aprendemos a tocar as músicas.
Com relação à diferença entre o show e os discos, na verdade às vezes temos dificuldade para levar as nuances da música editada para a situação de tempo real, pois o que está nos discos muitas vezes tem um suingue estranho, difícil de ser realizado ao vivo. Além disso, nos shows acontece muita coisa extra-musical que nos levar pra outros lugares aonde uma sessão em estúdio não tem chegar, assim como sessões também levam a lugares por onde os shows não passam.
E sobre essas duas novas faixas? Serão parte de um EP ou um álbum de formato convencional?
Felipe: Estamos lançando agora o single En la mano del payaso, como uma prévia do disco que lançaremos até final de fevereiro, Worm Love, pelo selo Sinewave. Esse será nosso primeiro álbum, com 10 faixas. Elas foram produzidas de forma similar ao primeiro EP: fizemos uma sessão de improviso no início de 2011 na Audio Rebel, e durante o processo de pós-produção fomos editando, montando os arranjos a partir do material bruto. Ficamos satisfeitos com o resultado, bem cru, visceral, e ao mesmo tempo heterogêneo.
Há duas principais diferenças em relação à produção do primeiro Ep: dessa vez a gravação foi feita com os três tocando juntos, e o processo de edição dos improvisos foi em geral mais radical que o do primeiro EP. Nesse álbum a edição é mais explícita, funcionando como um quarto instrumento mesmo. O disco ainda conta com uma participação especial em uma das faixas. Agora o desafio está sendo em “tirar”os arranjos do disco pra tocar ao vivo… Quem for no show em SP, na Casa do Mancha (no próximo dia 21 de janeiro) já vai ter uma amostra desse material.
Além do single, estamos lançando hoje nosso segundo clipe, da música En la mano del payaso: um clipe pop pra uma música pop, é nossa "Ana Júlia", digamos assim.
O som do Chinese é, evidentemente, direcionado para um público específico, interessado em experiências, noise, e demais sonoridades. Como vocês avaliam as condições atuais de produção, distribuição, consumo e fruição para quem pensa a música fora das grandes estratégias de mercado?
Renato: Acho que nunca rolou tanta liberdade pra produzir. Distribuição é um grande problema, poucos selos especializados, poucos blogs interessados. Acredito que quando o foco é a música, não o mercado e se tem tempo, naturalmente as coisas começam a funcionar. O público vai procurando, umas pessoas passam pra outras. Pessoalmente acho que a divulgação “boca a boca” sempre foi o melhor meio, onde os músicos e projetos se criam, na rua. Apostamos muito na cena experimental do Rio, excelentes músicos, linguagens distintas, público pequeno mas fiel, apesar de micro é única. Começou com o Fernando no PlanoB uns anos atrás (onde participamos com o Bossal e Muwei 2005, no primeiro festival de música experimental carioca, o Outro Rio). Atualmente vem ganhando tentáculos no Quintavant (um coletivo de músicos criado em 2011 que vem organizando shows e sessões de improviso na Audio Rebel). É muito importante a criação de uma cena, um local definido onde músicos e o público troquem ideias regularmente, se criem e registrem projetos. Não somente situações esporádicas de um show ou outro, uma vez por ano, como era um tempo atrás. Com uma cena forte, consequentemente os projetos amadurecem e surge o interesse dos blogs, selos daqui e de fora, estamos caminhando.
Felipe: No âmbito da música experimental, falando em Brasil, há ainda o desafio de consolidar novas estéticas para um público ainda desinformado. Acho que hoje é importante o artista sair do seu nicho, e tocar para públicos diversos. E junto com esse processo, a tríade artista – mídia – público precisa se auto-sustentar/alimentar. Quando tocamos fora do Rio, ocorre um fenômeno interessante. Em todo show, geralmente parte do público acha aquilo tudo sem muito sentido… Mas ao menos uma pessoa nos procura, entusiasmada, dizendo que nunca ouviu nada parecido com aquilo e que o som é “muito doido”! Por isso é importante que todos esses agentes atuem paralelamente, o artista divulgando o som, e a midia contextualizando aquele momento; nós não participamos de nenhum tipo de revolução musical, existem milhares de artistas, cenas pelo mundo afora nas quais nos espelhamos e é preciso que esse público interessado tome conhecimento do contexto no qual a banda atua. Tanto para poder usufruir de um imenso e interessante universo musical, já que há o interesse, quanto para, a partir disso, poder usufruir mais do que nós estamos fazendo, para além do “muito doido”. Mas para isso, acho que falta um diálogo maior os artistas e o público (maior circulação, viver a música na prática, como disse o Renato) e especialmente maior cobertura (embasada) das mídias alternativas, blogs, etc… Creio que assim teremos uma cena forte, concisa e de melhor qualidade também, porque a formação de um público informado e crítico influenciaria diretamente na produção artística.
Mesmo com todos os problemas e limitações, é evidente que há uma cena experimental se consolidando no Rio. Ela pode ser mínima, parcial, mas é maior que há 10 anos atrás. Claro que o Fernando e o Plano B tem importância fundamental nisso. Mas como vocês avaliam a emergência não só da Audio Rebel e do Quintavant como prepostos criativos, como também o surgimento de bandas e projetos dedicados à música experimental?
Marcos: Não sei se dá pra dizer que há mais atividade experimental hoje do que há dez anos atrás, mas talvez mais contato entre os vários tipos de experimentação, consolidando talvez o que você chama de “cena experimental”. Nesse sentido imagino que os espaços estejam também menos parciais, ortodoxos, podendo-se fazer projetos diferenciados, sem a necessidade de ser seguidor de uma estética específica.
Imagino a Rebel e o Quintavant como decorrências da atividade incessante do Plano B, uma expansão da proposta de apresentação de coisas sonoras quaisquer para um público interessado. E é interessante ver que ainda assim cada lugar tem suas especificidades, o que enriquece ainda mais a experiência de frequentá-los.
Finalmente, acho que muitos contatos são criados nestes lugares, muitos choques estéticos são vividos e muitas questões levantadas, e é isso que coloca o experimentalismo na roda, confrontando opiniões e gerando discussões, levando sempre ao contato com algo desconhecido ou ignorado. Daí surge um novo caminho, geralmente.
O que vocês curtem hoje na música brasileira?
Marcos: Eu ouço Teresa Cristina com grupo Semente, Hamilton de Holanda, João Bosco, Arismar do Espírito Santo, Chico César ...
Felipe: Do que há de novo, Domenico Lancelotti, Bixiga 70, Duplexx, Cidadão Instigado, Kassin, Negro Leo, Abayomy Afrobeat Orquestra, Ava Rocha…
Renato: Hoje em dia Rubinho Jacobina, Negro Leo, Cidadão Instigado, Kassin, Domenico, Ava Rocha, Rumpilezz Orquestra, Alberto Continentino (um dos discos mais clássicos que ouvi em muitos anos, deve sair esse ano), Stephane San Juan, Orquestra Contemporânea de Olinda também... Muita coisa boa acontecendo no Rio!
Fale um pouco a respeito do show do dia 21, na Casa do Mancha, em SP.
Felipe: Esse show vai ser foda! Há algum tempo estamos pra marcar um show com o Sobre a Máquina, que é uma banda bem interessante do Rio, dark/pop/ambient/post/drone! Nosso set será diferente dos últimos shows que fizemos. Voltamos a tocar músicas que havíamos parado de tocar, aproveitaremos a presença do grande saxofonista Russo/carioca Alexander Zhemchuzhnikov no show do SAM e faremos um improviso em algum momento. E, como falei antes, “tiramos” dois arranjos do Worm Love. Vai ser divertido. Levaremos cópias do single pra SP, em mini CD, pra quem quiser.
Depois do Worm Love, quais os próximos passos do CCP?
Marcos: Temos três discos que já estão gravados, em diferentes fases de produção, e pretendemos lançar todos no primeiro semestre de 2012. Os três são parcerias com músicos diferentes, cada um com uma direção bem peculiar. Uma das parcerias foi com o saxofonista argentino Sam Natch, inclusive divulgamos uma das faixas desse disco na ultima sexta-feira (13/01) no podcast do blog A Camarilha dos Quatro. Além disso, faremos uma turnê nacional com o trio instrumental suiço MIR no final de fevereiro/começo de março. Ainda temos um disco conceitualmente amarrado a ser gravado esperamos que em meados desse ano, e vamos tentar lançar até dezembro; e um outro acústico, mas esse ainda está no mundo das idéias. Apesar de tanto material, estamos mais preocupados agora em tocar, rodar por aí fazendo shows e conhecendo quem trabalha com sons mais experimentais, ou pelo menos instrumentais.