terça-feira, 24 de dezembro de 2024

VISUALIZAÇÃO CASUAL — Por que a Netflix é assim [por Will Tavlin]


Britta Thie, More Atmosphere!. 2021, óleo sobre tela. 78 3/4 × 59”. Foto de Moritz Bernoully. Cortesia do artista.



























Tradução: Bernardo Oliveira e Nicole A. Marcello
Revisão da tradução: Nicole A. Marcello

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Até bem pouco tempo nenhum estúdio de Hollywood havia lançado dois filmes com o mesmo título ao mesmo tempo. Na maioria dos estúdios, uma estratégia dessas seria impensável. O público poderia acidentalmente comprar ingressos para o filme errado, e as consequências em termos de marketing seriam desastrosas: alfinetadas de revistas especializadas; ligações furiosas de investidores questionando a perspicácia empresarial dos estúdios; ligações ainda mais furiosas de agentes exigindo explicações para a sabotagem intencional das imagens de seus clientes.


A Netflix, no entanto, não é a maioria dos estúdios. Em 2022, no Dia da Mentira, a empresa lançou uma comédia de Judd Apatow intitulada The Bubble, passada no set de uma franquia de dinossauros de Hollywood que é forçada a ficar em quarentena no meio da pandemia de Covid-19. Quatro semanas depois, lançou um filme de animação de Tetsurō Araki, diretor dos populares animes japoneses Death Note e Attack on Titan, sobre um mundo pós-apocalíptico em que a lei da gravidade deixa de existir. O filme de Araki se chamava Bubble.


Não houve confusões de bilheteria, nem alfinetadas da imprensa, nem chamadas raivosas. Os poucos críticos que se deram ao trabalho de escrever sobre isso detonaram The Bubble, de Apatow, uma comédia sem graça que é mais maçante do que as franquias de sucesso das quais ela tira sarro. Ninguém tinha nada a dizer sobre Bubble, de Araki, um filme de TV mais adequado para a programação da tarde em um canal infantil de TV a cabo. Como todos os filmes da NetflixBubble e The Bubble desapareceram tão rápido quanto surgiram, tornando-se peças no amplo mosaico de conteúdo da empresa, destinadas a serem reproduzidas no “automático”, em laptops de pessoas que pegaram no sono.


Por anos, Ted Sarandos, o co-CEO da Netflix, que foi pioneiro nessa estratégia de distribuição, foi aclamado pela imprensa como um visionário. Mesmo depois que a gigante do streaming vacilou em 2022, registrando uma perda geral de assinantes pela primeira vez em uma década, o empresário de podcasts Scott Galloway correu em defesa de Sarandos no New York Times, comparando a ele e o cofundador da Netflix, Reed Hastings, com “A-Rod e Barry Bonds”. Ele acrescentou: “Você não quer apostar contra esses caras”. Galloway aparentemente havia se esquecido de que os dois jogadores de beisebol citados testaram positivo para drogas para melhoria de desempenho no auge de suas carreiras. Dessa forma, sua comparação foi ainda mais precisa do que ele pretendia. A Netflix é uma empresa anabolizada, inflada por mentiras e farsas, e que quebrou todas as regras de Hollywood.


Durante um século, administrar um estúdio de Hollywood era simples. Quanto mais pessoas assistiam aos filmes, mais dinheiro os estúdios ganhavam. Com a Netflix, no entanto, o público não paga por filmes individualmente. Paga-se uma assinatura para assistir a tudo, e isso permitiu que um estranho fenômeno ganhasse força. Os filmes da Netflix não precisam obedecer a nenhuma das normas estabelecidas ao longo da história do cinema: não precisam ser lucrativos, bonitos, sensuais, inteligentes, engraçados, bem-feitos ou qualquer outra coisa que atraia o público para as poltronas do cinema. O público da Netflix assiste de suas casas, em sofás, camas, no transporte público e no banheiro. Muitas vezes, as pessoas nem estão assistindo.


Ao longo da última década, a Netflix (que inicialmente surgiu como a responsável pela extinção das locadoras de vídeo) desenvolveu um poderoso modelo de negócios para suplantar a televisão, para então dar vazão ao seu estranho e destrutivo poder sobre o cinema. Ao fazer isso, levou Hollywood à beira da irrelevância. Porque a Netflix não apenas sobrevive quando ninguém está assistindo: é justamente aí que ela prospera.


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Como Reed Hastings conta, o insight para a Netflix veio em 1997, quando ele alugou um VHS de Apollo 13 na Blockbuster. Algumas semanas depois, ele achou a fita debaixo de uma pilha de papéis em sua sala de jantar. Ele tinha esquecido de devolvê-la. Quando ele finalmente a devolveu, ficou chocado ao saber que devia 40 dólares de multa por atraso. “Eu me senti tão estúpido”, ele disse mais tarde sobre o ocorrido. “Fiquei sem graça com aquilo.”


Hastings não estava sozinho. Nos anos 1990, a Blockbuster foi achacada por seus clientes. Como a jornalista Gina Keating descobriu em sua matéria de 2012, intitulada Netflixed, a própria pesquisa da Blockbuster mostrou que os clientes geralmente tinham que visitar as lojas por cinco fins de semana seguidos até obter o que queriam. As lojas estavam abarrotadas de filmes para os quais ninguém ligava e os funcionários deixavam caixas de VHS vazias nas prateleiras, dando a impressão de que o estoque de uma loja era maior do que realmente era. O pior de tudo eram as multas por atraso: uma devolução atrasada frequentemente triplicava o preço da locação na Blockbuster, e uma fita perdida podia dar um prejuízo de até 200 dólares. O sistema era amplamente desprezado — os clientes entraram com vinte e três ações coletivas separadas contra a Blockbuster por cobranças injustas de atraso —, porém escandalosamente lucrativo. Em 2000, perto do auge da empresa, a Blockbuster arrecadou quase 800 milhões de dólares em multas por atraso, o que correspondia a 16% de sua receita anual. Internamente, os executivos da empresa definiram seu modelo de negócios como “insatisfação administrada”. [o grifo é meu]



Toda semana, a Netflix parecia lançar um novo filme que ninguém nunca tinha ouvido falar e que de alguma forma tinha quebrado todos os recordes de audiência no mundo. 



No ano do incidente da Apollo 13, Hastings vendeu sua empresa de software, Pure Atria, para outra empresa de tecnologia por mais de 700 milhões de dólares. Sua experiência na Blockbuster o fez pensar. “Haveria outro modelo”, ele se perguntou, “para oferecer o prazer de assistir a filmes em sua própria sala sem causar o sofrimento de ter que pagar muito quando você esquece de devolvê-los?”. Hastings e Marc Randolph, chefe de marketing de produtos da Pure Atria, começaram a pensar em um novo formato de negócio de aluguel de filmes. Eles tinham notado o sucesso da Amazon vendendo livros pela internet. Por que não fazer o mesmo com filmes?


Usando 2 milhões de dólares do próprio Hastings, a dupla começou a testar centenas de maneiras de vender e alugar DVDs pelo correio. O modelo que Hastings e Randolph finalmente consolidaram, em 1999, era simples. A Netflix cobraria dos clientes uma taxa mensal fixa para a locação de até quatro filmes por vez (que logo foi reduzida para três). Os clientes podiam ficar com o DVD pelo tempo que quisessem — sem multas por atraso —, mas só podiam alugar novos filmes depois de enviar os antigos pelo correio. A abordagem aberta era mais conveniente para os clientes do que a da Blockbuster. Mas para Hastings e Randolph, a satisfação do cliente estava em segundo plano. A dupla estava tentando resolver um problema logístico.


O catálogo de DVDs da Netflix não estava limitado ao tamanho e ao espaço nas prateleiras de uma loja física. Enquanto a Blockbuster teria que estocar quatorze cópias de um título “grande” — como I.A., de Steven Spielberg — às custas de outras opções, a Netflix poderia estocar I.A.. Four times that night, de Mario Bava, e também The three musketeers, de Richard Lester. Mas mesmo com menos restrições de espaço, armazenar centenas de milhares de DVDs no depósito da Netflix era ineficiente. “Reed e eu começamos a improvisar”, Randolph explicou depois. “Era uma pena ter aqueles DVDs todos ali num depósito, sem uso. Me perguntei: ‘Haveria uma forma de armazená-los nas casas dos clientes? Poderíamos deixá-los ficar com os DVDs? Será que eles simplesmente poderiam ficar com eles pelo tempo que quisessem?’”.


Uma década antes do Airbnb persuadir proprietários a transformar suas casas em hotéis, a Netflix convenceu seus usuários a transformá-las em mini depósitos da empresa. Os clientes que mantinham os DVDs com eles por mais tempo geravam menos custos de envio para a Netflix e menos DVDs para a empresa gerenciar e armazenar. A Netflix rastreava usuários assíduos de seu serviço — rotulando-os internamente como “porcos” — e secretamente restringia suas entregas. Não fazia diferença que a Netflix alugasse menos DVDs do que a Blockbuster, porque a empresa continuaria cobrando sua taxa mensal. A diferença entre a Blockbuster e a Netflix era que a Blockbuster punia seus clientes por serem esquecidos; a Netflix os recompensava por serem inconsequentes.


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A Netflix expandiu seus negócios mirando em empresas que os americanos odiavam, e a única empresa que os americanos odiavam mais do que a Blockbuster era sua operadora de TV a cabo local. No início dos anos 1990, as operadoras de TV a cabo começaram a trabalhar com as redes de televisão, para forçar ainda mais o quanto poderiam extorquir dos clientes, construindo uma história recheada de inovações que prejudicavam os espectadores, como taxas para decodificadores e contratos anuais impossíveis de cancelar. Entre 1995 e 2005, as operadoras de TV a cabo dobraram o número de canais em seu pacote médio e aumentaram os preços em três vezes acima da inflação. Em 2007, o presidente da FCC, Kevin Martin, escreveu em uma carta a grupos de defesa que “o assinante médio de TV a cabo estava pagando por mais de 85 canais que não assistia para obter os aproximadamente 16 canais que assistia”. O pacote médio de TV a cabo custava mais de 700 dólares por ano.


Hastings sempre quis empurrar a Netflix para a televisão a cabo. A produtora de cinema Mynette Louie soube disso em primeira mão no final dos anos 1990. Antes de entrar para a indústria cinematográfica, Louie trabalhou para uma firma de pesquisa de mercado especializada em empresas de internet. Era o auge da bolha das “pontocom”, e a cada semana CEOs de diferentes startups apareciam no escritório de Louie para apresentar seus negócios. Ela ainda se lembra do dia em que Hastings veio falar sobre a Netflix. “Ele disse: ‘Não estamos no ramo de DVDs. A única razão pela qual temos esses DVDs é para aumentar a base de clientes para o que queremos fazer, que é o streaming’”, Louie me contou em uma entrevista esse ano.


De todos os fundadores de startups que Louie conheceu, Hastings se destacou. “Ele era tão impressionante”, disse ela. “Não sabíamos que isso iria destruir o mercado de filmes como o conhecíamos”. Durante os primeiros dez anos de operações, a Netflix esperou pacientemente que as velocidades de internet de banda larga se tornassem rápidas o suficiente para suportar uma plataforma de streaming, drenando os clientes da Blockbuster e se insinuando nas casas de milhões de americanos ao longo desse processo. Em 2007, mesmo ano em que Martin escreveu sua carta, a tecnologia finalmente era suficiente, e a Netflix lançou sua plataforma de streaming.



A Blockbuster punia seus clientes por serem esquecidos; a Netflix os recompensava por serem inconsequentes.



O serviço, inicialmente chamado Watch Now, era primitivo. A Netflix disponibilizava apenas mil títulos, que os usuários só podiam acessar pelo Internet Explorer, via PC. Ainda assim, assinantes de TV a cabo há muito oprimidos foram imediatamente atraídos pelo apelo do Watch Now. O site de streaming da Netflix oferecia aos espectadores muitos dos programas e filmes que eles encontrariam na TV a cabo, só que por uma fração do preço, apenas cinco dólares por mês. Os estúdios de Hollywood estavam felizes em licenciar seu conteúdo de segunda exibição para a Netflix, que a princípio parecia incapaz de ameaçar seus interesses na TV a cabo. Mas os estúdios ignoraram que o streaming era mais conveniente do que a TV a cabo, pois a Netflix transmitia imagens diretamente para os laptops dos espectadores — e, pouco depois, para televisores e smartphones — sem contratos anuais, passíveis de cancelamento a qualquer momento. Acima de tudo, não havia anúncios. [o grifo é meu]


O streaming fazia total sentido para a Netflix. Desde que começou a distribuir DVDs, ela acumulava dados dos clientes para melhorar seus algoritmos de recomendação, e o Watch Now deu à empresa acesso a insights granulares sobre o comportamento do público em tempo real. A plataforma de streaming percebia também quando os espectadores assistiam de seus computadores, televisores ou telefones; quais cenas eles pulavam, pausavam ou voltavam; e quanto tempo levavam para abandonar um programa de que não gostavam ou terminar uma temporada que amavam. Isso se mostrou útil quando a Netflix produziu sua primeira série original, em 2013, House of Cards. Os executivos da empresa alegaram que adquiriram o programa, um thriller político estrelado por Kevin Spacey e dirigido por David Fincher, com base em dados que mostravam que os usuários da Netflix corriam para assistir aos filmes de Spacey e Fincher. Os dados ajudaram também com o lançamento do programa. Os desenvolvedores da Netflix observaram que a maioria dos espectadores consumia episódios de televisão em grandes lotes, geralmente sem intervalos entre eles. Os executivos da empresa chamavam isso de “maratonar”. Ted Sarandos, então diretor de conteúdo da Netflix, decidiu alimentar esse hábito, lançando todos os treze episódios de House of Cards de uma vez, desafiando o modelo de exibição com hora marcada da indústria televisiva.


A Netflix argumentou em seu relatório “Long-Term View”, de 2013, direcionado para seus acionistas, que a estratégia de aquisição de “originais” da empresa era apenas uma das muitas razões pelas quais “a experiência de TV linear” estava “pronta para ser substituída”. “Os dados que temos sobre os hábitos de visualização de nossos membros”, afirmou a Netflix, “nos permitem evitar pagar a mais por conteúdo” e “fazer um trabalho tão bom ou melhor do que nossos pares de TV linear na escolha de projetos”. A empresa explicou como suas vantagens formais — a falta de horários nobres, os episódios e temporadas com duração variada — “fornecem uma plataforma para narrativas mais criativas”. “Um programa que está demorando muito para encontrar seu público é um que podemos continuar nutrindo. Isso nos permite nos comprometer com prudência por uma temporada inteira, em vez de apenas um episódio piloto”.


Nada disso era verdade. A Netflix se comprometeu a produzir duas temporadas de House of Cards sem ver um piloto (superando a HBO e a AMC, com uma oferta inicial de mais de 100 milhões de dólares — a própria definição de “pagar a mais”), mas isso teve pouco a ver com “nutrir” o programa. “Uma narrativa mais criativa” também foi um exagero: House of Cards lembrava muito a programação televisiva sem graça e de alto orçamento que dominava os canais a cabo premium desde o final dos anos 1990. E não estava claro o quanto de conhecimento dos hábitos de visualização dos membros da Netflix era realmente necessário para dar o “ok” ao programa. Afinal, não era preciso uma análise complexa de dados para saber que House of Cards — uma adaptação de uma série britânica já popular, regravada com estrelas de Hollywood — encontraria um público.


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Por décadas, a televisão — com seu formato episódico de alto volume — foi o motor econômico mais poderoso de Hollywood. Com um piloto bem-sucedido, um produtor de televisão poderia empregar atores, diretores, escritores e equipe para até 34 episódios em uma única temporada. Após uma série de temporadas de sucesso, o produtor poderia vender o programa para o exterior, exibi-lo em outros formatos (DVD, vídeo sob demanda, voos comerciais) e, eventualmente, distribuí-lo para reprises. Todas essas vendas produziam pagamentos residuais: dividendos das ações para os escritores, atores e diretores que trabalharam no programa.


Os residuais eram uma constante em Hollywood desde o colapso do sistema de estúdios, nos anos 1950, fornecendo segurança no emprego para dezenas de milhares de artistas profissionais. Mas as plataformas de streaming, que em 2014 incluíam Hulu e Amazon, viam os residuais por uma outra perspectiva. Eles não tinham intenção de retransmitir seus programas em redes de televisão lineares, no exterior ou em aviões. Eles já possuíam plataformas de exibição — Netflix.com, Hulu.com e Amazon.com —, que estavam cada vez mais acessíveis em todo o mundo e por meio dos dispositivos conectáveis mais comuns.

“A filosofia das associações sempre foi: ‘Se você reutilizar nosso material e ganhar dinheiro com a reutilização do nosso material, então devemos ser compensados por isso’”, me disse um ex-diretor do Writers Guild of America. Ele relembrou uma conversa que teve em 2014 com o executivo de um estúdio sobre streaming. “A resposta dele foi: ‘Eu não pago meu encanador toda vez que dou a descarga.’” A Netflix foi pioneira em um modelo diferente. Em vez de residuais, o serviço de streaming ofereceu aos produtores um modelo de pagamento conhecido como “custo mais”. Com o “custo mais”, a Netflix se ofereceu para pagar antecipado por uma temporada inteira — como fez com House of Cards — e mais um “prêmio” calculado por ela, como Sarandos explicou uma vez em uma entrevista, “por meio de uma estimativa do back-end”.



Até a chegada da Netflix, uma das qualidades essenciais do cinema, aquilo que o distinguia da televisão, era a maneira como ele direcionava a atenção do público.



No início, as associações não viam a Netflix como uma ameaça. “A WGA estava com a cabeça enfiada na areia”, me disse o ex-diretor da associação. “A liga pensou: ‘Se e quando a Netflix se tornar um estúdio de verdade, lidaremos com isso, como lidamos com os outros estúdios.’”


Mas associações como a WGA e a Screen Actors Guild subestimaram a rapidez com que a Netflix dominaria a indústria. De repente, a maior parte do trabalho em Hollywood estava no streaming. E, como a jornalista Nicole LaPorte descobriu, em uma investigação para a Fast Company em 2018, pouco desse trabalho era bem remunerado. Enquanto atores protagonistas de primeira linha como Shonda Rhimes e Ryan Murphy assinavam acordos de produção de streaming de nove dígitos, todos os outros viram seus salários diminuírem. Os escritores que eram pagos por episódio notaram que as durações variadas das temporadas da Netflix na verdade significavam temporadas mais curtas e salários menores no geral. Sem os residuais, pequenos trabalhos que costumavam garantir uma renda por anos se tornaram impraticáveis. Alguns atores descobriram que estavam ganhando 30 vezes menos do que ganhariam em um programa de tevê. Cinco anos antes da histórica greve concomitante, do WGA e do SAG, que em parte buscava uma reparação pelo fim dos pagamentos de back-end pelas plataformas de streaming, LaPorte concluiu o que levaria anos para os principais jornais e revistas relatarem: o streaming havia causado “a morte da classe média de Hollywood”.


Nos anos após a estreia de House of Cards, a Netflix inundou o mercado com programas de televisão. Seus gastos com conteúdo dispararam: de 2,4 bilhões de dólares em 2013 para 12 bilhões de dólares em 2018. Toda plataforma de streaming Hulu, Amazon e Apple —dizia gastar mais que as outras e estar repleta de conteúdo. Estúdios como a Disney retiraram seu conteúdo licenciado da Netflix e deram início a seus próprios serviços de streaming. Em 2018, a Netflix havia assumido o controle da televisão, exatamente como tinha feito com as locadoras de vídeo. Mas quando os outros estúdios seguiram o exemplo, a Netflix já tinha um novo alvo: a indústria cinematográfica.


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Poucos anos depois do desentendimento entre Mynette Louie e Hastings, ela deixou seu emprego na empresa de pesquisa de mercado e eventualmente se tornou uma produtora de filmes independentes, reunindo filmes de Andrew Bujalski e Karyn Kusama. Em 2013, ela ajudou a lançar uma empresa de financiamento chamada Gamechanger Films, especializada em financiar longas-metragens narrativos dirigidos por mulheres. Naquela época, a Netflix já estava transmitindo há meia década, e o momento de Louie parecia ideal. Embora a Netflix já estivesse de olho no mainstream — em 2014, a empresa anunciou um acordo 250 milhões de dólares para quatro filmes com Adam Sandler —, grande parte de seu orçamento para filmes foi dedicado ao financiamento de projetos de pequeno a médio orçamento e à aquisição agressiva de filmes independentes já finalizados nos principais festivais americanos.


Louie se beneficiou da ostentação da Netflix. Em 2015, a empresa adquiriu os direitos de streaming de The Invitation, de Kusama, após a estreia do filme no South by Southwest. Louie vendeu mais dois filmes para a plataforma no ano seguinte, ambos por valores generosos. “Nós fomos compensados por essas vendas, o que foi incrível”, Louie me disse. “Incrível para nossos cineastas, incrível para nossos investidores, e na época pensamos: ‘Ótimo, vamos continuar fazendo filmes’. Estávamos todos muito esperançosos de que o cinema independente fosse ganhar um lugar.”


Fazia muito tempo que o cinema independente não ocupava um lugar de destaque em Hollywood. Nos anos 1990, o surgimento do home video e canais de televisão estrangeiros proporcionou a uma geração de diretores em ascensão — Richard Linklater, Allison Anders, Gus Van Sant entre outros — uma enxurrada de novos mercados, que multiplicaram seu sucesso comercial. Ted Hope, produtor de cinema e cofundador da produtora independente Good Machine, relembrou como compradores estrangeiros ajudaram seus filmes a prosperar. “Se você imaginar cerca de 100 territórios diferentes onde você poderia encontrar um público”, ele me disse, “e um mínimo de cinco distribuidores diferentes em cada mercado, você tinha 500 maneiras diferentes de obter sucesso. Todos tinham uma estrutura onde se podia correr mais riscos.” O grande número de compradores significava que os cineastas independentes podiam financiar seus filmes apenas por meio de vendas de distribuição estrangeira, tudo isso antes de filmarem uma única cena. O ambiente competitivo também era bom para o público, pois novos distribuidores independentes como Miramax, Fine Line e October, visando reconhecimento, corriam para adquirir trabalhos feitos pelos cineastas mais audaciosos dos EUA e do exterior.


Em vez de cultivar esse sucesso, os maiores estúdios de Hollywood passaram a primeira década do novo milênio acabando com ele. Apesar de lançar e adquirir seus próprios selos de filmes independentes, as grandes empresas de Hollywood começaram a concentrar seus recursos em franquias de sucesso de bilheteria voltadas para a família e orientadas por IP, e usaram seus vastos recursos para reservar para esses filmes milhares de salas ao mesmo tempo, eliminando o público dos filmes menores. Após a crise de 2008, executivos avessos a riscos se permitiram cada vez mais abandonar completamente filmes de orçamento médio e produzir sucessos de bilheteria previsíveis sobre super-heróis que, quando bem-sucedidos, geravam bilhões de dólares de bilheteria.


O otimismo que Louie sentiu quando a Netflix e a Amazon começaram a adquirir filmes independentes em meados dos anos 2010 era justificado. O que Hope descreveu como 500 maneiras de obter sucesso sempre envolveu um grau de risco. Produzir um filme independente exigia juntar fontes de financiamento, muitas das quais eram contingentes e podiam fracassar a qualquer momento. Com a Netflix e a Amazon, havia apenas um acordo para distribuição global, e os filmes premium “custo mais” garantiam que os investidores tivessem lucro. À medida que as plataformas de streaming pagavam cada vez mais somas enormes pelos direitos globais de filmes independentes — como os dez milhões de dólares da Amazon por Life Itself, de Dan Fogelman, ou os oito milhões de dólares da Netflix por To the Bone, de Marti Noxon —, eles tanto simplificavam o processo de produção de filmes independentes quanto enriqueciam os investidores.


E distribuição global significava um público maior, ou assim se pensava. Falando ao Business Insider em 2017, Elijah Wood, a estrela do filme da Netflix daquele ano, I Don’t Feel at Home in This World Anymore, estava entusiasmado. “Houve um tempo nos anos 90 em que este seria um título que iria direto para o vídeo, o que seria um certo tipo de morte”, disse Wood ao entrevistador. “Mas esse não é mais o caso. No mínimo, [a Netflix] criou essa igualdade de oportunidade para os cineastas.”


Como muitos jornalistas apontaram, a Netflix e a Amazon não eram estúdios tradicionais de Hollywood em nenhum sentido. As plataformas de streaming eram empresas de tecnologia, outsiders cujos modelos de negócios não dependiam de ganhar um bilhão de dólares nas bilheterias com um único filme de franquia. [o grifo é meu] “Os gigantes da tecnologia têm mais margem de manobra para experimentar”, escreveu Julia Greenberg, da Wired, em 2016. “Um único filme ou programa na Netflix e na Amazon não precisa agradar a todos; a chave para ambas as plataformas é garantir que ofereçam o suficiente de tudo para atrair qualquer um.” As plataformas de streamng poderiam adquirir filmes marginais e inovadores que os maiores estúdios haviam ignorado. Talvez o cinema independente pudesse crescer novamente.


A Netflix assumiu riscos em filmes de autores renomados, como Okja, de Bong Joon-ho, uma fantasia científica sobre ecoterroristas tentando resgatar um enorme porco criado por bioengenharia, e o retrato de Alice Rohrwacher de um engenhoso meeiro no interior da Itália, Lazzaro Felice. E adquiriu documentários ambiciosos, como 13th, a história de Ava DuVernay sobre o complexo industrial-prisional americano, e Icarus, o filme de Bryan Fogel sobre um cientista esportivo russo que ajudou seus atletas a evitar regulamentações de doping por anos. (Este último rendeu à Netflix seu primeiro Oscar por um longa-metragem.)


Mas seu compromisso com a boa produção cinematográfica durou pouco. Assim como seu negócio de aluguel de DVD e sua migração para o streaming, a preocupação da Netflix era a escala, e não o cinema que estava escalando. Os filmes, como seu fundador havia dito a Louie, eram apenas um meio para um fim: adquirir assinantes que pagassem pelo acesso a toda a biblioteca de conteúdo da Netflix todo mês. [o grifo é meu]


A variedade de filmes independentes na Netflix não se assemelhava ao boom dos anos 1990 e seu cultivo de novos autores. Com o passar dos anos, o serviço de streaming adquiriu produções sem vida para talentos de primeira linha, como The Polka King, uma comédia estrelada por Jack Black como Jan Lewan, o imigrante polonês da vida real e líder de uma banda de polca que lançou um esquema Ponzi multimilionário; estreias absurdas de longas-metragens como Unicorn Store, de Brie Larson, comédia de fantasia estrelada por Larson, em que ela faz o papel de uma artista fracassada que descobre que unicórnios são reais e que Samuel L. Jackson quer vender um para ela; e curiosidades ready-made que não valem a pena lembrar, como o filme biográfico Barry, de 2016, estrelado por Anya Taylor-Joy como a namorada branca dos tempos de  faculdade de Barack Obama.


Os estúdios de cinema sempre lançaram fracassos: filmes que não conseguem ganhar força e são jogados nos arquivos dos estúdios, onde desaparecem na obscuridade. Até recentemente, para a maioria dos estúdios, um filme esquecido era um sinal de fracasso. Mas a Netflix, de forma única, parecia gostar de fazer seus filmes desaparecerem assim que eram lançados, despejando-os em sua plataforma e fazendo o mínimo possível para distinguir um do outro. “Seu filme acaba como uma miniatura e, culturalmente, não faz sucesso. Não é a mesma coisa”, me disse um produtor com filmes na Netflix. “A menos que você seja Scorsese ou algo assim, as plataformas de streaming não criam campanhas de marketing personalizadas para esses filmes.”


As estratégias antimarketing da Netflix não faziam sentido para ninguém no ramo cinematográfico. O marketing sempre foi parte da força vital do cinema, o motor para chamar a atenção do público, e que impulsionava as vendas de ingressos e auxiliava os filmes enquanto eles se esgueiravam nas vitrines laterais. Era algo especialmente vital para filmes independentes. “Antigamente”, Hope me contou, “uma das grandes ineficiências que existia era quando você fazia um filme, e você tinha que tomar a frente e contar para todo mundo sobre ele para conseguir a pequena porcentagem de pessoas que você de fato ia conseguir atrair para comprar o ingresso. Não importava se seu filme era uma porcaria ou bonito, você ainda tinha que ir contar para todo mundo.” Publicidade impressa, comerciais de TV e rádio, coletivas de imprensa, entrevistas e perfis em revistas, exibições em faculdades, aparições do elenco no circuito de talk shows noturnos: tudo isso fazia parte do manual para consolidar um filme de baixo orçamento na memória do público cinéfilo e transformá-lo em um sucesso duradouro que poderia gerar lucros indefinidamente.


Nada disso importava para a Netflix. Toda a exibição de seus filmes estava confinada à sua plataforma, que fornecia aos usuários recomendações algorítmicas adaptadas a todos os seus caprichos. Como Sarandos se gabou em 2015, durante uma entrevista para a TV Insider, sobre as séries de televisão da Netflix: “Grande parte do trabalho pesado de levar o público ao programa é feito com a interface do usuário... Gastos com marketing que fazemos são principalmente para atrair assinantes para a Netflix. A visualização real de programas, a interface do usuário está conduzindo quase toda.”


Mas a interface do usuário da Netflix não era de fato uma substituição dos distribuidores de marketing tradicionais, que antes eram usados para levar o público aos cinemas. Entre 2016 e 2017, a Netflix gastou dezenas de milhões de dólares adquirindo filmes e documentários independentes para preencher sua plataforma: The Polka King e Unicorn Store, mas também The Incredible Jessica JamesThe Mars Generation, um filme chamado Fun Mom Dinner e muitos, muitos outros. A grande maioria desses filmes efetivamente desapareceu, como os milhares de filmes mudos das décadas de 1910 e 1920, que se perderam nos estúdios de Hollywood antes que a preservação de filmes fosse padronizada.


Ao contrário desses filmes, os filmes da Netflix ainda existem e podem ser assistidos em seu site. Mas, na maioria das vezes, eles não são. Se os executivos da Netflix aprenderam alguma coisa com o filme independente foi isso: na plataforma, você não precisava fazer sucesso para ter sucesso. Você nem precisava que seu filme fosse lembrado. Você só precisava, nas palavras de Greenberg, “quantidade suficiente de qualquer coisa para atrair qualquer um”.


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Não demorou muito para que as plataformas de streaming abandonassem completamente o cinema independente. Ted Hope aprendeu isso do jeito mais difícil. Em 2015, quando a Amazon tentava pela primeira vez entrar no mercado de filmes originais, a plataforma contratou Hope como chefe de desenvolvimento de sua divisão de filmes. Parecia uma combinação natural. A Amazon estava tentando se destacar distribuindo autores sofisticados, o tipo de cineasta que Hope vinha produzindo desde o início dos anos 1990. A dupla começou bem. Em 2016, o primeiro ano inteiro de lançamentos do estúdio, Hope adquiriu Manchester by the Sea, de Kenneth Lonergan, e The Salesman, de Asghar Farhadi, que juntos ganharam três Oscars: melhor roteiro, melhor ator e melhor filme estrangeiro.


Mas, como Hope aprendeu, fazer um filme de sucesso em uma plataforma de streaming não necessariamente a tornava bem-sucedida. Na Amazon, Hope descobriu que estava no ramo de aquisição de clientes, não no ramo de filmes. “E a maneira de conquistar o negócio de aquisição de clientes”, disse Hope, “é mantendo uma cadência regular, com uma qualidade consistente, em um ambiente em que as pessoas confiam”. A competição se intensificou, com Apple, Disney, Paramount e NBC Universal entrando na disputa, e “ficou mais difícil manter os clientes”, disse Hope, “porque as pessoas entravam e saíam”.


Em um esforço para reduzir a “rotatividade”, a taxa na qual os clientes cancelavam suas assinaturas, as plataformas começaram a estimular um tipo diferente de modelo de produção. Em vez de adquirir filmes de autores, o que as colocava em apuros — Cuties, de Maïmouna Doucouré, um filme sobre dançarinas pré-adolescentes em Paris, desencadeou um pânico infundado na direita, que afirmava que a Netflix estava sexualizando crianças —, eles se voltaram para um produto mais seguro e uniforme, que poderia ser feito internamente, replicado e adaptado aos gostos mais diversos de suas enormes bases de assinantes. (Isso também garantiu que eles manteriam os direitos de distribuição global em vez de ter que negociá-los.) “Eles não queriam mais essa inconsistência”, disse Hope. “Eles queriam que houvesse expectativas corretas: ‘Oh, olha aqueles dois casais se beijando. Um está usando pés de pato. Deve ser uma comédia romântica. Saquei, você quer assistir a uma comédia romântica hoje à noite?’ E foi a isso que a coisa se resumiu. Contanto que as pessoas conseguissem o que queriam, elas se mantinham conectadas.”


Nos documentários, os executivos também mudaram para o feed convencional. “Não basta fazer algo que alguns milhões de pessoas podem realmente amar quando você está tentando atingir 25 milhões de pessoas ou 50 milhões de pessoas”, disse um ex-executivo da Netflix ao jornalista Reeves Wiedeman, em um artigo de 2023 no New York sobre o “boom” do streaming de documentários. “Muitos documentários — eu diria que a maioria dos documentários — não alcançam esse padrão.” Então o que alcança? Histórias de true crime macabras, revelações sobre cultos exdrúxulos, hagiografia de celebridades, minisséries de esportes e comida, ciência pop e animais de estimação. A lista de documentários da Netflix rapidamente se tornou uma prateleira de supermercado de tabloides. [1]


Em 2021, a Netflix anunciou que começaria a lançar um novo filme original a cada semana. Um certo estilo logo começou a tomar forma, um anticinema entorpecente que qualquer um que tenha assinado a Netflix nos últimos anos reconhece de longe. Vou chamá-lo de “Filme Típico da Netflix” (FTN). De fora, o FTN parece construído algoritmicamente, como se tivesse sido projetado para atender a cada um dos dois mil “grupos de gosto” da Netflix, os agrupamentos de gênero que a Netflix usa para segmentar seu público, liberar programas e recomendar filmes e séries para os assinantes. O FTN cobre todos os interesses de nicho e categorias de identidade existentes, como um filme sobre uma garota alta, Tall Girl, mas também Horse GirlSkater GirlSweet GirlLost Girls e Nice Girls. Aparentemente otimizado para os mecanismos de busca, o título de um FTN anuncia exatamente o que ele é — daí uma comédia romântica sobre um executivo de vinhos chamada A Perfect Pairing, ou um mistério de assassinato chamado Murder Mystery. A sequência de créditos de abertura parece ter sido montada a esmo, como se o designer estivesse jogando roleta russa com modelos da Adobe no After Effects. Uma tomada típica enquadra dois personagens, da cintura para cima, de perfil, enquanto a câmera lentamente passa por eles, um deslocamento lento e constante destinado a injetar movimento em um quadro inerte. Há uma predominância de tomadas de drones. O diálogo dos personagens é afetado, cheio de explicações exageradas, clichês e jargões que nenhum humano usaria, como dois robôs presos em um looping. “Quer tomar uma cerveja?”, um amigo pergunta a Adam Sandler em Murder Mystery:


Nick (Adam Sandler): Não posso. Tenho umas coisas para fazer.


Jimmy: O quê? Você não quer uma cerveja? O que é que houve?


Nick: Recebi os resultados do exame de detetive.


Jimmy: Você reprovou de novo. É por isso que nunca fiz aquela prova. Toda a ansiedade e a decepção.Em algum momento você tem que se dar conta de que já deu o que tinha que dar e simplesmente desistir.


Os editores desses filmes também parecem ter desistido. O corte entre as tomadas é frenético. A iluminação é terrível. O FTN parece supersaturado e plano, com os pretos clareados e os realces opacos, resultado da insistência da Netflix para que seus originais sejam filmados com câmeras digitais potentes que comprimem mal nos laptops e televisores dos espectadores. (A Netflix talvez seja o primeiro estúdio na história de Hollywood a fazer a luz do dia parecer ruim de forma consistente.) O FTN também nunca se furta à utilização de CGI para tomadas que não precisam disso, como o chute de uma bola de futebol em The Kissing Booth. O pior de tudo é a música: na ausência de qualquer mise-en-scène, a FTN toca músicas reconhecíveis de artistas caros e de primeira linha para criar uma ambiência, como o uso vazio e de terceira ordem de “Let's Dance”, de David Bowie em Irish Wish, a fantasia implacavelmente aleatória de troca de corpos de Lindsay Lohan, na qual ela planeja se casar com um rico romancista irlandês que mora em um castelo.


Em 2022, depois que os números de assinantes da Netflix caíram e suas ações despencaram, os jornalistas foram rápidos em vincular a produção excessiva da empresa a uma queda no que eles chamaram de “controle de qualidade”. Respondendo às alegações de que a Netflix tinha ido atrás de “gastos de marinheiro bêbado”, Sarandos forneceu uma justificativa para Maureen Dowd, no New York Times: “Estávamos tentando construir uma biblioteca que compensasse não ter 90 anos de narrativa”.


Mas a alta produção por si só não pode explicar a qualidade lixo da Netflix. Nas décadas de 1920 e 1930, estúdios como Paramount e Warner Bros. lançavam até 70 filmes por ano. Em seu pico, nos anos 1990, a Miramax tentava lançar um novo filme quase toda semana. A diferença entre a Netflix e seus antecessores é que os estúdios mais antigos tinham um modelo de negócios que recompensava a maestria e a habilidade cinematográficas. A Netflix, por outro lado, é composta por executivos pouco sofisticados, que não têm nenhum plano para seus filmes e os veem com desprezo. Cindy Holland, a primeira funcionária contratada por Sarandos, que eventualmente atuou como vice-presidente de conteúdo original, uma vez comparou a estratégia voraz de aquisição de DVDs da Netflix a “jogar carvão na porta lateral de casa”. Isso continuou valendo conforme a Netflix ia aumentando sua produção de filmes originais. Ao pesquisar para este ensaio, fontes me contaram sobre dois executivos de alto escalão da Netflix que são conhecidos por dar o sinal verde para projetos sem ter sequer lido os roteiros.


Essa produção cinematográfica desleixada funciona para o modelo de streaming, já que o público em casa em geral quase não presta atenção. Vários roteiristas que trabalharam para serviços de streaming me disseram que uma observação comum dos executivos da empresa é “faça esse personagem anunciar o que está fazendo para que os espectadores que estão com esse programa passando de fundo possam acompanhar”. (“Passamos um dia juntos”, Lohan diz ao seu amante, James, em Irish Wish. “Admito que foi um dia lindo, cheio de vistas dramáticas e chuva romântica, mas isso não lhe dá o direito de questionar minhas escolhas de vida. Amanhã vou me casar com Paul Kennedy”. “Tudo bem”, ele responde. “Essa será a última vez que você me verá, porque depois que esse trabalho acabar, vou para a Bolívia fotografar um lagarto de árvore ameaçado de extinção”.)


Uma tag entre os 36 mil microgêneros da Netflix oferece um nome adequado para esse tipo de porcaria: “visualização casual”. Geralmente reservada para sitcoms leves de tv, reality shows e documentários sobre natureza, a categoria descreve grande parte do catálogo de filmes da Netflix — filmes que são mais bem recebidos quando você não está prestando atenção, ou, como o Hollywood Reporter recentemente descreveu Atlas, um filme de ficção científica de 2024 estrelado por Jennifer Lopez, “mais um filme da Netflix feito para se assistir pela metade enquanto se lava a roupa”. Um produto de alto brilho que se dissolve no ar. Cinema “OMO”.


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Marc Randolph, que saiu da Netflix em 2002, explicou que a história de origem de seu cofundador sobre a multa de atraso da Blockbuster para Apollo 13 foi inventada. “[Foi] muita porcaria”, Randolph disse à escritora de Netflixed, Gina Keating. “Isso nunca aconteceu”. De acordo com Randolph, a história da Apollo 13 começou como “uma ficção conveniente” para explicar os benefícios do modelo de assinatura da Netflix, mas ganhou vida própria. Em meados dos anos 2000, a Blockbuster exigiu que Hastings parasse de repetir o boato em público. “A Blockbuster pesquisou em seus bancos de dados depois de ouvir a história”, relatou Keating, “e nunca encontrou a tal transação”.


A mentira de Hastings marcou o início de uma campanha de enganos e ocultações. Apesar de coletar grandes quantidades de dados sobre os hábitos de visualização dos usuários, a Netflix se recusou por anos a divulgar qualquer um deles —até mesmo para os produtores, diretores e estrelas de seus supostos filmes e programas de “sucesso”. Manter talentos no escuro provou ser uma tática de negociação útil quando a plataforma renovava um programa de televisão ou dava sinal verde para uma sequência de filme. Ao mesmo tempo, reter dados protegia a empresa do escrutínio público, ao obscurecer o quão pouco seus espectadores estavam assistindo à sua programação original de forma significativa — do início ao fim, ou pelo menos um pouco.



O FTN cobre todos os interesses de nicho e categorias de identidade existentes, como um filme sobre uma garota alta, Tall Girl, mas também Horse GirlSkater GirlSweet GirlLost Girls e Nice Girls.



A Netflix não era diferente de seus concorrentes. “O número de coisas que não decolam na Amazon é impressionante”, me disse um ex-executivo da Amazon Studios. “Há tantas coisas que as pessoas dificilmente assistem e seria constrangedor divulgar esses números de streaming. Eu costumava receber esse e-mail diário, que basicamente dizia: ‘aqui estão os 100 filmes que as pessoas mais estão assistindo no Amazon SVOD hoje por minuto’. Sempre foram muitos filmes de ficção científica de Tom Cruise, filmes de ação dos anos 90 e 2000 e Talladega Nights.”


O fato de o público claramente preferir os filmes do passado tem sido um fato inconveniente para as plataformas de streaming, que se autodenominam como o futuro do entretenimento. [2] Mas, em vez de resolver o problema melhorando a qualidade de sua programação e distribuição, elas obscurecem ainda mais o fracasso de seus originais com alarde de marketing. Desde que mudou para conteúdo original, a Netflix vem fazendo afirmações ridículas sobre seus filmes e programas, com pouca ou nenhuma resistência da imprensa de Hollywood. Em um artigo de 2018 sobre a Netflix publicado na New York, Sarandos descreveu The Kissing Booth, um romance adolescente nada marcante estrelado por Jacob Elordi e Joey King, como “um dos filmes mais assistidos do país e talvez do mundo”. As provas disso? As classificações de Elordi e King em algo chamado “Star-o-Meter”, uma medição gerada por usuários para a popularidade de celebridades no IMDb.com. “Três semanas atrás no IMDb Star-o-Meter, que é como eles classificam sua popularidade, [Elordi] estava em 25.000º lugar. Hoje ele é a estrela nº 1 do mundo”, afirmou Sarandos. “E Joey King, a protagonista feminina, foi de 17.000º para 6º lugar. Esse é um filme que eu aposto que você nunca tinha ouvido falar até eu mencioná-lo para você”.


Toda semana, a Netflix parecia entregar um novo filme do qual ninguém nunca tinha ouvido falar e que de alguma forma quebrava todos os recordes de visualização do mundo. Houve Army of the Dead, o filme de ataque zumbi de Zack Snyder, de 2021, cujo elenco incluía o lutador aposentado Dave Bautista e o comediante Tig Notaro; de acordo com o órgão de relações públicas fim de linha da Netflix, o Tudum, o longa foi “o filme número 1 no mundo e está projetado para ser um dos filmes mais populares da Netflix em suas primeiras 4 semanas”. Airplane Mode, uma comédia brasileira de 2020 sobre um influencer, não foi coberta por nenhum grande veículo. Mas no Twitter, o Tudum emitiu um “ alerta de sucesso ”, chamando-o de “o filme não inglês mais popular na Netflix” em 2020. Poucos meses depois, o Tudum anunciou um novo recordista: The Old Guard, um filme de ação estrelado por Charlize Theron lançado no auge da pandemia. Ninguém poderia afirmar sem cair na risada que o filme era tão popular quanto a programação de televisão lixo que a Netflix lançou durante o boom da empresa durante a pandemia, como Tiger King e Emily in Paris. Ainda assim, o Tudum descreveu The Old Guard como um “blockbuster” que “já estava entre os 10 filmes mais populares da Netflix de todos os tempos” e “a caminho de atingir 72 milhões de lares nas primeiras 4 semanas!”


Alcançar 72 milhões de lares não significava o que parecia. O que realmente significou foi que 72 milhões de contas assistiram a pelo menos dois minutos de The Old Guard. De acordo com a Netflix, dois minutos foram “o bastante para indicar que a escolha foi intencional”, embora a Netflix tenha projetado sua experiência de visualização para ser totalmente não intencional. Uma parte essencial da plataforma da Netflix é seu recurso de reprodução automática, que joga os usuários para o próximo episódio de uma série de televisão ou um filme escolhido algoritmicamente, segundos após o término de um programa e, às vezes, pouco antes dos créditos rolarem.


Em 2023, em resposta à pressão da indústria e como uma ostentação contra outras plataformas de streaming não tão bem-sucedidas, a empresa começou a lançar relatórios semestrais que continham o número total de “visualizações” para cada um de seus mais de 18 mil títulos nos seis meses anteriores. Em uma teleconferência com repórteres, Sarandos afirmou que esta foi a representação mais transparente de seus dados já mostrada ao público.


As “visualizações” da Netflix podem parecer impressionantes no papel (até mesmo Sweet Girl, o FTN estrelando Jason Momoa como um sobrevivente em busca de vingança, cuja filha treinada em MMA assume sua causa, foi visto 6,7 milhões de vezes no primeiro semestre de 2024), mas esses números continuam sendo uma farsa. Para chegar a 6,7 milhões, a Netflix primeiro contabiliza as “horas de exibição” do filme, a quantidade total de tempo que os usuários passaram na transmissão do filme. Aqui, a Netflix não faz distinção entre usuários que assistem a Sweet Girl até o fim, aqueles que assistem a menos de dois minutos e aqueles que assistem a apenas alguns segundos graças à reprodução automática, ou pulam, ou assistem a uma velocidade de 1,5x. Toda essa atividade distraída e fragmentada é incluída no total de horas de exibição de Sweet Girl (12,3 milhões na última contagem), que a empresa então divide pelo tempo de execução do programa (110 minutos, ou 1,83 horas) para produzir essas 6,7 milhões de visualizações. De acordo com o posicionamento da Netflix, dois usuários que assistem à primeira metade de Sweet Girl e fecham seus laptops equivalem a uma “visualização” completa — assim como 110 usuários que assistem a um único minuto cada.


Uma manobra dessas seria ilegal em qualquer outro setor. A Ford nunca poderia dizer a seus acionistas que vendeu 200 mil caminhonetes F-150 em um único trimestre, quando na verdade a empresa vendeu 100 mil F-150s para casais que eram coproprietários de seus veículos. Mas para a Netflix, um filme é um truque de contabilidade — uma parcela de pixels que permite à empresa divulgar declarações cada vez mais fantásticas sobre sua audiência, como a noção absurda de que Leave the World Behind, um filme apocalíptico duvidoso de Julia Roberts, produzido por Barack e Michelle Obama, foi “visto” 121 milhões de vezes. Como alguém pode acreditar nisso?


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“Há um filme na Paramount+ agora mesmo chamado On the Come Up”, me disse um produtor de Hollywood em 2022. “Tenho certeza que você não ouviu falar dele porque ninguém ouve falar desses filmes. É sobre uma rapper negra em Chicago e sua jornada nas batalhas de rap. É como o 8 Mile negro e de mulher. Não é um grande filme, mas em outros tempos teria agradado ao público e poderia furar a bolha e ser exibido em algumas centenas de salas, como Set It Off ou Down in the Delta. Este último foi um filme de uma grande poeta em sua estreia na direção, com Wesley Snipes, e passou com facilidade em 400-500 salas, um lançamento de tamanho pequeno a médio da Miramax, de 1998. O que aconteceu com esse filme é que ele se tornou On the Come Up, que simplesmente evapora, e os estúdios colocaram dois outdoors em Los Angeles porque sabem que os criadores moram em Los Angeles e querem dar a impressão de que está sendo comercializado. Assim como a Amazon, se você dirigir por Culver City, verá outdoors de seus filmes em todos os lugares. Por quê? Porque os diretores que vêm ao estúdio para uma reunião para fazer um filme, eles dirigem até lá e dizem: ‘Ah, eles estão divulgando meu filme’. Mas não estão”.


No inverno passado, enquanto visitava Los Angeles, fui ver os anúncios pessoalmente. No entorno do cruzamento das avenidas Venice e La Cienega, havia oito outdoors enormes promovendo os últimos filmes e programas originais da Amazon. Dois anunciavam The Burial, um drama jurídico estrelado por Jamie Foxx e Tommy Lee Jones. Eu não tinha ouvido falar dele, nem ninguém com quem conversei naquela semana. Dirigi até outros estúdios, pela Sunset Boulevard, passando pela sede da Netflix, em direção à Avenida Melrose e ao estacionamento da Paramount. Cada estúdio tinha outdoors simbólicos para seus últimos pseudofilmes, projetados para serem exibidos, mas não assistidos.


No passado, sempre que os filmes em Hollywood ficavam obsoletos e os executivos exerciam muito controle sobre os artistas, a indústria tinha um freio de mão importante: o público. Se um filme fracassasse com o público e a bilheteria despencasse, os estúdios teriam que mudar de rumo. Afinal, a bilheteria sempre foi vista como o padrão ouro das métricas em Hollywood por um motivo: é a medida mais pura e direta do interesse do público. Os espectadores têm que querer comprar os ingressos. Eles não podem pular, avançar ou pedir comida no aplicativo Prime pelo telefone. Nenhum espectador entra em um cinema esperando sair depois de dois minutos. Até a chegada da Netflix, uma das qualidades essenciais do cinema, aquilo que o distinguia da televisão, era a maneira como ele direcionava a atenção do público. Não importava se um filme arrecadava grandes somas ou era um fracasso. Um relatório de bilheteria carregava uma verdade inadmissível: a grande maioria do público tinha assistido ao filme na íntegra, e seu gosto não podia ser ignorado.


Como prever o gosto do público — o que dará dinheiro ou não — é uma questão que atormenta Hollywood desde o seu início. O problema foi captado pelo roteirista William Goldman, em 1983. “Ninguém sabe de nada”, ele escreveu em seu livro Adventures in the Screen Trade. “Ninguém no ramo do cinema sabe com certeza o que vai funcionar.”. A maior inovação da Netflix foi que ela encontrou uma maneira de contornar essa incerteza, fornecendo uma plataforma na qual não há falhas, onde tudo funciona.


Esse é um marco importante para os maiores estúdios de Hollywood, pois todos eles se concentraram na integração de inteligência artificial em suas produções. Em março, os meios de comunicação relataram que o CEO da OpenAI, Sam Altman, tinha se reunido com os principais estúdios para apresentar o conversor de texto para vídeo de sua empresa, o Sora. Os clipes gerados pelo Sora que circularam online alternavam entre tomadas de drones de paisagens urbanas que pareciam retiradas de cenas de videogame, e animais renderizados no estilo animado em 3D comum às produções de Hollywood hoje em dia. Plataformas de streaming são o único lugar onde esse lixo faz algum sentido — um lugar onde isso nunca seria assistido.


Mas ao blindar seus filmes do fracasso, as plataformas destruíram o significado de sucesso. Thierry Frémaux, chefe do Festival de Cinema de Cannes e um crítico das plataformas de streaming, entendeu bem isso quando apresentou o dilema em uma coletiva de imprensa em Cannes, em 2021. “Quais diretores foram descobertos pelas plataformas [de streaming]?”, ele perguntou. Não era uma pergunta retórica. Frémaux começou a pedir aos jornalistas que nomeassem um autor cuja carreira havia sido lançada por uma plataforma de streaming. A essa altura, a Netflix havia lançado mais de 700 filmes somente nos EUA, com centenas de diretores vinculados a eles. No entanto, como o Guardian relatou mais tarde sobre o cenário, “ninguém conseguiu nomear nenhum, na verdade”.


Aqui, as plataformas de streaming alcançaram um estranho paradoxo. Nunca um grupo de estúdios ganhou tanto controle sobre a produção, distribuição, exibição e recepção de filmes ao fazer filmes com que ninguém se importa ou se lembra. Eles não só não conseguiram descobrir uma nova geração de autores, como também garantiram que seus cineastas fossem pouco mais do que criadores de conteúdo precários, inelegíveis para compartilhar os lucros de qualquer sucesso. Foi uma guinada que levou a uma profunda sensação de confusão.


“O que são esses filmes?”, o produtor de Hollywood me perguntou. “São filmes de sucesso? Não são? Tem pessoas famosas neles. Eles são lançados por grandes estúdios. E ainda assim, como não temos números confiáveis das plataformas de streaming, na verdade não sabemos quantas pessoas assistiram. Então, eles são o quê? Se ninguém sabe sobre eles, se ninguém os viu, eles são apenas algo de que as pessoas que estão neles podem falar em reuniões para conseguir outros empregos? Estamos todos apenas tentando manter a bola rolando para nos manter pagos e empregados, mas ninguém realmente assiste a nada disso? Quando é que a bolha vai estourar? Ninguém tem a mínima ideia.”


A Netflix criou um esquema de pirâmide de atenção, sem fim à vista. E ainda assim, se ela admitisse o pouco impacto que seus filmes causam, isso prejudicaria seu discurso de longo prazo junto ao público, talentos de Hollywood e seus representantes comerciais, de que a empresa é um grande empreendimento gerador de estrelas que produz um ótimo cinema com apelo comercial. Essa sempre foi a lógica por trás da incursão superficial da Netflix no financiamento de autores consagrados, como Alfonso Cuarón com Roma, Jane Campion com The Power of the Dog, e Alejandro Iñárritu com Bardo. A Netflix dá a esses filmes exibições exclusivas nos cinemas por algumas semanas — apenas o tempo suficiente para qualificá-los para o Oscar — em um pequeno número de cinemas, alguns dos quais a empresa possui ou opera, como o Paris, em Nova York, ou o Egito, em Los Angeles. Depois disso, ela os despeja na plataforma. Alguns desses filmes, incluindo The Irishman, de Martin Scorsese, foram resgatados pela Criterion Collection, cujas edições em Blu-Ray oferecem uma rota de fuga para fora do jardim murado da Netflix. A maioria dos autores que acabam no serviço de streaming, no entanto, simplesmente definham. Para a Netflix, os autores são um meio para se legitimar, nada mais.



Se ninguém sabe sobre eles, se ninguém os viu, eles são apenas algo de que as pessoas que estão neles podem falar em reuniões para conseguir outros empregos?



No fim das contas, a Netflix tem uma cota mais importante de stakeholders para satisfazer: os investidores de Wall Street. Em uma tentativa de manter o preço de suas ações em alta, a Netflix se afastou dos autores e abraçou projetos de grande orçamento que conferem à empresa seu suposto apelo de massa. Desde 2019, a Netflix tem financiado cada vez mais filmes no estilo blockbuster, com atores caros como Ryan Reynolds (Round 6Red Notice, The Adam Project), Ryan Gosling (The Gray Man), Mark Wahlberg (The Union) e Eddie Murphy (Beverly Hills Cop: Axel F). Como pilhas gigantes de dinheiro em chamas que mal roçam a esfera cultural, essas tentativas de administrar um adorado IP fazem um ínfimo sentido na lista de produção da empresa. “Aparentemente, para a Netflix, Ryan Reynolds ganhou 50 milhões de dólares num filme aqui e outros 50 milhões num outro”, disse Quentin Tarantino a um repórter do Deadline, no ano passado em Cannes. “Bem, melhor para ele, que esteja ganhando tanto dinheiro. Mas esses filmes não existem no Zeitgeist. É quase como se eles nem existissem”. O que todo mundo em Hollywood sabe, mas não se importa em admitir, é que nenhum filme da Netflix jamais ganhou nome como as séries mais populares do serviço de streamingStranger Things, Bridgerton e Round 6.


A Netflix é, antes de tudo, uma empresa de televisão, cujas estratégias comerciais recentes fizeram com que ela se assemelhasse aos provedores de TV a cabo que ela tentou neutralizar. A Netflix não é mais o serviço barato que libertou os assinantes de TV a cabo da tirania de seus pacotes. O preço padrão da assinatura da empresa aumentou quase 100% nos últimos treze anos, e qualquer usuário que cortou o cordão umbilical com a TV a cabo e queira ter acesso aos programas mais recentes das principais redes deve assinar várias plataformas de streaming, cujos preços também dispararam. A Netflix também não é mais livre de anúncios, já que a empresa lançou uma assinatura de menor custo e com suporte de anúncios em 2022. (Quando a plataforma estreou seu modelo de assinatura, ela tentou cobrar dos anunciantes cerca de 65 dólares para atingir mil espectadores, uma quantia exorbitante, comparável às dos jogos da NFL. Talvez uma indicação de que os anunciantes não estão comprando os números surpreendentes de audiência da Netflix, seja o fato de que esse valor em dólares caiu mais da metade desde então.) A Netflix também não se dedica mais a fornecer aos assinantes conteúdo puramente sob demanda. Nos últimos anos ela flertou com a programação ao vivo e, esse ano, firmou seu primeiro grande compromisso, assinando um acordo de cinco bilhões de dólares por dez anos pelos direitos exclusivos de transmissão do principal programa ao vivo da WWE, Raw. Não vai demorar muito para a Netflix começar a empacotar programas em “canais” pré-programados que funcionam em sicronia 24 horas por dia, 7 dias por semana, e alegar que isso é algo totalmente novo.


Mas se a Netflix agora ocupa um lugar no mercado semelhante às empresas de TV a cabo, o negócio com o qual ela está mais alinhada em essência é a Blockbuster: um serviço amplamente odiado, com funcionários que não sabem nada sobre filmes, abastecido com milhares de títulos para ver, poucos deles valendo a pena assistir. Até a Netflix sabe que seus usuários não conseguem encontrar títulos que lhes agradem. Em 2021, a empresa introduziu por pouco tempo um novo recurso em sua página inicial, chamado “Play Something”, para ajudar no que ela chamou de “momentos em que simplesmente não queremos tomar decisões”. Ao clicar nele, o Play Something instantaneamente começava a reproduzir para os usuários uma série ou filme escolhido algoritmicamente. “Quando você estiver com vontade de algo ao seu gosto, novo ou familiar”, escreveu a Netflix, “basta ‘pôr para passar alguma coisa’ e deixar a Netflix cuidar do resto”.


Play Something”, como em: pôr para passar qualquer coisa. Não importa se é bom ou ruim, se um usuário está no telefone ou limpando o quarto. O que importa é que esteja conectado, e que assim permaneça até que a Netflix faça sua pergunta perene, um prompt que aparece quando a plataforma acha que um usuário adormeceu: “Você ainda está assistindo?”


Publicado originalmente na edição de inverno da revista A+1 (2025):  https://www.nplusonemag.com/issue-49/essays/casual-viewing/

 

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[1] Como Wiedeman relatou em seu artigo, as plataformas de streaming tornaram comuns práticas documentais antes impensáveis: manter fontes de entrevistas amarradas a contratos exclusivos com pagamentos de seis dígitos, e trazer produtores de reality shows que dizem aos diretores que “precisam de uma cena onde acontece ‘isso aqui’”. Os documentários de celebridades das plataformas de streaming, como Beckham da Netflix, ou Billie Eilish: the World's a Little Blurry da Apple, são particularmente evidentes nesse aspecto, fornecendo pouco mais do que publicidade para seus temas poderosos. As estrelas dessas produções geralmente retêm controle criativo significativo e interferem com constância na montagem do projeto.

[2] A Netflix e as outras plataformas estão, é claro, cientes do apelo da TV e dos filmes do passado, e buscaram remakes, revivals e recriações com uma voracidade ainda maior do que a da Marvel. Mas, na maior parte das vezes, suas sequências e spin-offs são pouco mais do que FTNs com celebridades envelhecidas. Ninguém imaginou que Coming 2 America ou Fuller House gerariam fandoms dos originais, e eles estavam certos.