sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

“QUE CINEMA É ESSE?”: ATUALIZAÇÕES BRASILEIRAS

 














01. A pergunta “que cinema é esse?” não pede respostas ou definições, mas novas perguntas em torno da própria essência do que significa fazer e assistir cinema – ainda que aqui eu deseje, antes de mais nada, indicar o quanto ganhamos ao desfazê-la e desmanchá-la em outras possibilidades cinematográficas. Não me alongarei nesse tema, mas penso que o cinema materializa a mecânica e a metafísica da percepção, da cognição e da imaginação perante uma espécie de duplo, nosso próprio aparelho perceptivo, cognitivo e imaginativo – e, portanto, não se endereça somente “aos olhos ou aos ouvidos de maneira regulável”, como afirma Bresson em seu Notas sobre o cinematógrafo, mas à zona ambígua e cinzenta da própria experiência, produtora de imagens e movimento. Seria possível conciliar, no âmago da matéria cinematográfica, percepção e imaginação oriundas de outras visões e culturas não europeias? Países e populações que possuem diferentes práticas e formulações em torno da produção de imagem e da própria noção de imagem? A resposta não seria apenas negativa, como também dispersa: a própria imagem do sonho e da realidade subjacente à produção do cinema brasileiro, por exemplo, da chamada Retomada e do cinema Maxakali do século XXI difere de forma radicalmente irreconciliável.

02. O cinema, contudo, não reproduz um duplo formal a partir de um conjunto perceptivo-cognitivo-imaginativo que é preenchido de alguma maneira por materiais captados, mas inventa, como um acréscimo de realidade, formas singulares de manipulação do tempo e do espaço. E o faz através da composição de planos, cortes, sons e texturas. Procedimentos que geralmente resultam em um “uso criativo da realidade”, como afirma Maya Deren em seus escritos, mas que também implicam um uso técnico particular das máquinas de captar e cortar, que podem variar imensamente de caso a caso, segundo concepções particulares. Pensando assim, a ideia aparentemente absoluta de um Cinema com c maiúsculo desponta sempre sob a forma de uma gestão, sempre oscilando entre uma ética e uma política da imagem. Não que uma outra ética não seja acessível – há quem ame, que consegue amar, Ford e Sueli Maxakali, Mizoguchi e Ana Pi, como eu mesmo. Ao mesmo tempo, porém, para o bem e para o mal, as variações não hegemônicas causam nítido desconforto nos circuitos sedimentados, na crítica, cinefilia, meio acadêmico e festivais: excesso de condescendência ou incompreensão cercam o cinema realizado por indivíduos pertencentes aos povos originários ou por grupos ou indivíduos historicamente alijados do processo estético, econômico e político dos cinemas hegemônicos.

03. Por outro lado, parece que estamos justamente situados num plano histórico em que a imagem robotizada do cinema comercial, da televisão e das plataformas readquire e amplia seus privilégios. No Brasil, a “retomada da retomada” situa novamente em nosso horizonte a lógica industrial do “cinema é pra quem pode”. Se entre 2003 e 2015 observávamos o movimento das placas tectônicas do privilégio de classe e de raça no cinema brasileiro, hoje o movimento é reduzido, seja por asfixia, seja por apropriação. A escassez de recursos e editais específicos para outros cinemas marca o período pós-golpe e avança sobre o período de reconstrução democrática, reconstituindo a força da presença de uma elite cinematográfica em detrimento das transformações que ocorreram no período do “cinema fome zero” (termo criado por Miguel Jost). O estreitamento da viabilidade acompanha de perto o oportunismo de classe e, de forma muitas vezes imperceptível, a redução da imaginação. Desde o golpe, alguns filmes sinalizam o sintoma de um retrocesso. A armadilha do “cinema negro” enquanto representação uniforme constitui apenas uma parte de um diagrama cuja perversidade se mede tanto pelo número de views, quanto pela manutenção dos protocolos comerciais e institucionais por “diversity”. Sinalizar “eu me importo” – chantagem emocional – como forma de contratação. A maioria dos curadores e financiadores, dos festivais e distribuidoras, já sacaram a tendência que pode favorecer os signos da agenda racial, sem, contudo, contrair grandes compromissos: a culpa branca premiada, a experimentação negra sufocada. Mantém-se o apelo à sensibilidade racial através de uma imaginação limitada pela estreiteza da forma. Estilo, isto é, técnica e imaginação, como dado necessariamente secundário. O que se conta em uma proliferação descontrolada do cinema da escassez imaginativa são as “nossas histórias”, a privatização da imaginação. Entendo os esforços políticos e econômicos protagonizados por players negras e negros em torno da conexão entre temas identitários e a profissionalização no cinema. Porém, se essas negociações implicarem a ausência de mudança estrutural e redução drástica da experimentação estética – portadora de outras possibilidades da imagem – temos aí um problema.

04. As estratégias são cada vez mais evidentes e sinalizam a manutenção da plantation simbólica de que nos fala Juliano Gomes. A monocultura aponta para um conjunto de conciliações forçadas que cabem perfeitamente na lógica das plataformas. Como assinala o recente artigo de Will Tavlin sobre a ascensão da Netflix e seu cinema de plataforma: “ela não apenas sobrevive quando ninguém está assistindo: é justamente aí que ela prospera”. Então é possível repetir as mesmas histórias e os mesmos modos de contá-la ad infinitum. Algumas tendências evidentes: a expiação pública como autoetnografia voluntária ou involuntária; o registro e “resgate” da “cultura popular” como memória de classe; as boas intenções do inferno como o conjunto de esforços coletivos que confluem para consolidar o signo inequívoco de uma atitude atravessada pela correção moral e conformidade com agendas corporativas. Esses signos servirão de salvo conduto para transitar, com mãos grosseiras, por temas e personagens relacionados com as questões libertárias no Brasil. A captura, contudo, é mais do que um direito, mas uma profissão de fé: a elite expia em praça pública, logo a elite é purificada. O peso do passado é apaziguado pela confissão dos aprendizados.

05. ...cachê é poder. O contratado legitima o contratante. O contratante remunera o contratado. Pior do que ser explorado pelo capitalismo: justamente não sê-lo. Cinema como tronco e chicote: quem está lá? O senhor ou o escravo?

06. A culpa branca encena o drama indígena, pacifica a raiva negra, mas o signo é o de uma expiação pública imediatamente reificada para fins de adoração e comercialização. Há uma ambiguidade insuportável na imagem da expiação e do aprendizado das elites que, involuntariamente, nos revela a confiança elevada em toda sua estreiteza. Em algum momento teremos que falar abertamente sobre o abismo estético e intelectual que separa as imagens das elites cinematográficas e as imagens dos novos cinemas. Não será uma conversa confortável. O cinema da Retomada e o da "retomada da retomada" não possui densidade, camadas, exterioridade. O cinema da elite carioca e paulistana é vazio porque, por mais que se esforcem, suas visões de mundo são inadvertidamente despovoadas – e por isso adequadas aos grandes meios de comunicação, às premiações, a Hollywood e todo o sistema do cinema hegemônico. O mesmo não se pode dizer das múltiplas expressões do cinema produzido pelos Xavantes, Kaiowás, Kuikuros, Maxakalis, do grande cinema de Recife e de Contagem, do cinema operário de Lincoln Péricles e Adirley Queirós, do cinema do Recôncavo de Glenda Nicácio e Ary Rosa, do cinema de gira de Yuri Costa, o cinema de Getúlio Ribeiro, Yasmin Thainá, Grace Passô, Higor Gomes, Amanda Devulsky, Natália Reis, Déo Cardoso, Vinícius Romero, dos cariocas da MBVideo, o cinema do Nordeste, do Norte e do Centro-Oeste, entre tantas outras possibilidades decorrentes de um período de maior distribuição de renda que propiciou a reinvenção do cinema brasileiro, que criou uma nova ecologia de imagens, outros modos de ver, planificar, montar, sonorizar. Estamos falando de uma pletora de novos cinemas que demonstram um olhar mais complexo e esteticamente aventureiro (cinema é aventura) do que o cinema da elite cultivada, viajada, endinheirada. Matutar essa contradição.

07. O cinema de Sueli Maxakali, por exemplo, usa o plano estático com uma densidade especificamente atrelada à temporalidade Maxakali, justapondo registros do tempo e da imaginação, produzindo algo entre a dilatação e a concentração do tempo como meio para exprimir uma epifania sensorial. Já o cinema coletivo dos Guarani-Kaiowá opera a câmera subjetiva e a voz over de forma não a fazer uma explicar a outra, mas entranhá-las, implicá-las entre si de tal forma que, como em alguns poucos filmes de Apichatpong Weerasethakul (particularmente Cemitério do Esplendor, na cena em que os personagens passeiam por um palácio imaginário), o que não é visto participa ativamente do que é filmado e mostrado – convém mencionar o trabalho de André Brasil e Bernard Belisário acerca dos usos criativos do antecampo e do extracampo em alguns filmes dos “cinemas originários”. Entendo que os dois casos são marcados por uma lógica de apropriação reversa, que transfigura a gramática e a sintaxe cinematográfica ocidental e cria novas formas de ver e sentir: outra sensibilidade. A inconstância da alma selvagem também modula conforme os termos de uma alegre traição: vingança sob a forma de um sequestro provisório da técnica e da linguagem.

08. Se existem ecos e ressonâncias de uma concepção específica do Modernismo que não cessa de se imiscuir no imaginário do tempo brasileiro, observa-se que, a despeito do massacre, o Brasil permanece atravessado pela presença daqueles cuja história a história não conta. A história geralmente é definida como um texto que implica a construção de um método de leitura e interpretação. Uma epistemologia da história revela questões candentes, questões embrazadas que, como na antropologia contemporânea, parecem acorrer a problemas filosóficos como identidade, alteridade e ontologia. Nesse contexto, geralmente se problematiza o método; mas o método nunca é neutro, porque sua maquinaria conceitual obedece a outras concepções que não remetem necessariamente a questões metodológicas: o que os filmes dos povos Maxakali e Guarani-Kaiowá nos mostram em toda sua complexidade são imagens variadas do tempo e imagens do movimento, imagens do massacre e da resistência de pontos de vistas singulares. Se a “transfiguração étnica” preconizada por Darcy Ribeiro prevê a possibilidade de uma história transformacional, mesmo que a contragosto do intérprete, e essa história é marcada por insubmissão e violência, não parece de todo inadequado observar essa outra vanguarda do olhar, essa visão sintética de um mundo que não se explica, pois nos diz respeito apenas enquanto se coloca o termo cinema. O cinema, novamente, opera como mediador: Darcy e os missionários eram mediadores, mas que, seja para integrá-los, seja para denunciar sua integração forçada, recorriam ao único ponto de vista que lhes era possível acessar: o do protagonismo histórico. Quando o cinema dos povos originários começa a ser produzido, vislumbramos a transfiguração de uma autoridade: a autoridade discursiva eurocêntrica.

09. O Brasil respira camadas de contradição no que tange à forma de representação de seus conflitos de classe e a pluralidade de seus povos, talhados à base dos desmandos de uma elite antipática, contrastante com caldeamentos raciais e culturais seculares. O cinema é território privilegiado para acessarmos os vaivéns e continuidades dessas dinâmicas. A gradação intermediária entre o blockbuster e o filme caseiro foi apagada e esses dois modos de se fazer e pensar cinema não morrerão abraçados. Não há sequer um sistema trabalhista concebido e estruturado especificamente para estruturar e conferir dignidade à mão de obra da cultura no brasil, e isso impacta todos os demais estágios e desdobramentos dos processos culturais. As imagens do povo produzidas pela elite política, econômica e cinematográfica são premiadas, deificadas, celebradas pelo aparato cultural, midiático e acadêmico, ao passo que as imagens do povo produzidas a partir de si mesmo foram paulatinamente política e economicamente sufocadas, inviabilizadas, contratadas ou relegadas aos rincões do "experimental", do "acadêmico", de algo que pode ser tudo, menos propriamente "popular". Isso porque a elite olha para o povo de forma simplória e aqui se encontra a maior das perversidades: o povo e, particularmente, o mundo das redes sociais se reconhece mais no retrato de si mesmo produzido pela elite do que pela miríade de imagens às quais me referi acima. Lutar, portanto, por um cinema amazônico, à altura de sua diversidade autêntica, contra toda monocultura política, simbólica, estética... Se o cinema contra-hegemônico saberá se desvencilhar das armadilhas que o cercam, é um assunto hoje que deve circunscrever nossas mais caras preocupações – e que de certa maneira Tiradentes carrega como marca inexpugnável de sua singularidade. Porém, há uma pergunta urgente: haverá meios materiais para a propagação da imaginação negra em "expansão infinita", ou, em um futuro muito próximo, seremos convertidos em meros peões, cartas marcadas no tabuleiro da geopolítica moral imposta pelas plataformas de streaming, players e financiadores?


Bernardo Oliveira
Professor, crítico e cineasta
Publicado originalmente no catálogo da 28a Mostra de Cinema de Tiradentes