1. A retomada da retomada, isto é: cinema é pra quem pode. A escassez de recursos e editais específicos marcam o período pós-golpe, reconstituindo, em detrimento das transformações, a força da presença de uma elite cinematográfica. Se antes observávamos o movimento das placas tectônicas do privilégio de classe e de raça no cinema brasileiro, hoje o movimento é reduzido, seja por asfixia, seja por apropriação. Estreitamento de viabilidade, oportunismo de classe, redução da imaginação.
2. Desde o golpe, alguns filmes sinalizam o sintoma de um retrocesso. A armadilha do "cinema negro" é apenas uma parte de um diagrama cuja perversidade se mede tanto pelo número de views, quanto pela manutenção dos protocolos comerciais por "diversity". Sinalizar "eu me importo" — chantagem emocional — como forma de contratação.
3. Os curadores e financiadores, os festivais e distribuidores, já sacaram a tendência que pode favorecer os signos da agenda racial, sem, contudo, contrair grandes compromissos: a culpa branca deve ser premiada, a experimentação negra deve ser sufocada. Mantém-se o apelo à sensibilidade racial através de uma imaginação limitada pela estreiteza da forma. Estilo, isto é, técnica e imaginação, como dado necessariamente secundário. O que se conta são as "nossas histórias". O compromisso com o alargamento do horizonte de experiências pode ser adiado em favor de um nivelamento mesquinho. Entendo os esforços políticos e econômicos protagonizados por players negras e negros em torno da conexão entre temas identitários e a profissionalização no cinema. Porém, se essas negociações implicarem na ausência de mudança estrutural e redução drástica da experimentação estética, temos aí um problema.
4. Expiação pública, cinema como auto-etnografia involuntária, como memória de classe; as boas intenções do inferno. Esforços coletivos confluem para consolidar o signo inequívoco de uma atitude atravessada pela correção. Este signo servirá de salvo conduto para transitar, com mãos grosseiras, por temas e personagens relacionados com a questão racial no Brasil.
5. A captura, contudo, é mais do que um direito de sinhá. É uma profissão de fé. A elite expia, a elite é purificada. O peso do passado é apaziguados pela confissão dos "aprendizados". O Bolsonarismo não se reduz a um fenômeno produzido por Bolsonaristas. Entre os atributos do Bolsonarismo está a criminalização e a fetichização do pobre, do negro, da luta de classes (nesse caso, por denegação...). Complicador: Atlanta S04E05: o "by the culture" nem sempre é garantido...
6. ...cachê é poder. O contratado legitima o contratante. O contratante remunera o contratado. Pior do que ser explorado pelo capitalismo: justamente não sê-lo. Cinema como tronco e chicote: quem está lá? O senhor ou o escravo?
7. A culpa branca encena o drama indígena, pacifica a raiva negra, mas o signo é o de uma expiação pública imediatamente reificada para fins de adoração e comercialização. Há uma ambiguidade insuportável na imagem da expiação e do aprendizado branco que, involuntariamente, nos revela a confiança elevada em toda sua estreiteza.
8. Em algum momento teremos que falar abertamente sobre o abismo estético e intelectual que separa as imagens das elites cinematográficas e as imagens dos novos cinemas. Não será uma conversa confortável. O cinema da retomada e o da "retomada da retomada" não possui densidade, camadas, exterioridade. O cinema da elite carioca e paulistana é vazio porque, por mais que se esforcem, suas visões de mundo são inadvertidamente des-povoadas.
9. O mesmo não se pode dizer das múltiplas expressões do cinema produzido pelos Xavantes, Kaiowas, Kuikuros, Maxakalis, do cinema de Recife, do cinema de Contagem, do cinema operário de Lincoln Péricles e Adirley Queirós, do cinema do Recôncavo de Glenda Nicácio e Ary Rosa, do cinema de gira de Yuri Costa, NoirBlue, tantos outros filmes que reinventaram o cinema brasileiro, que criaram uma nova ecologia de imagens, outros modos de ver, planificar, montar, sonorizar... Estamos falando de uma pletora de novos cinemas que demonstram um olhar mais complexo e esteticamente aventureiro *(cinema é aventura)* do que o cinema da elite cultivada, viajada, endinheirada. Matutar essa contradição.
10. Se o cinema "by the culture" — atuação, direção, roteiro, fotografia, direção de arte, som, etc — saberá se desvencilhar das armadilhas que lhe cerca, é um assunto hoje que deve circunscrever nossas mais caras preocupações. Porém, há uma pergunta urgente: haverá meios materiais para a propagação da imaginação negra em "expansão infinita", ou, em um futuro muito próximo, seremos convertidos em meros peões, cartas marcadas no tabuleiro da geopolítica moral imposta pelas plataformas de streaming, players e financiadores?
(Escrito em 2022 e publicado no Letterboxd)