Esta introdução serve para fazer as honras ao lançamento da compilação de um outro e referencial conterrâneo dessas duas atrações presentes à última edição do referido festival: Sorry Bamba.
A gravadora independente nova-iorquina Thrill Jockey – através da prospecção, produção e compilação realizada pelos dois guitarristas da banda Extra Golden (que funde rock com a benga queniana), os norte-americanos Alex Minoff e Ian Eagleson – lança o primeiro volume de um período específico da carreira de Sorry Bamba, Sorry Bamba: Kanaga Orchestra of Mopti, Regional Orchestra of Mopti (1970-79), cuja “Porry”, que integra a coletânea World Psychedelic Classics 3, Love’s a Real Thing: The Funky Fuzzy Sounds of West Africa, de 2005, decerto já não era novidade para quem realmente se interessa por música africana. Nascido em Mopti, a “Veneza do Mali”, situada na confluência fluvial e metafísica dos rios Niger e Bani, Sorry Bamba, a frente da sua L'Orchestre Kanaga De Mopti (para a Thrill Jockey, Kanaga Orchestre of Mopti), é um autêntico autor musical. Filho de um nobre fiel ao Império Mandinga de Samory Touré – o histórico líder e estrategista militar da resistência malinesa à colonização francesa –, Bamba se manteve inicialmente afastado do seu verdadeiro ofício para vê-lo praticado exclusivamente pelos griots, conforme o rigor da tradição local. Daí, só veio a abraçar finalmente o seu dom na adolescência, com a morte do pai. Em 1957, formou o Group Goumbé, logo renomeado de Bani Jazz, após a independência do Mali (ignoramos a possível relação entre ambos os eventos) e, mais tarde, ao final da década de 1960, rebatizada – até os dias atuais – de L'Orchestre Kanaga De Mopti. A trajetória de Sorry Bamba acabou por torná-lo um dos artistas mais célebres do seu país.
Mas tratemos propriamente de Sorry Bamba: Kanaga Orchestra of Mopti, Regional Orchestra of Mopti (1970-79)...
O órgão meio “mântrico” de “Yayoroba” abre o álbum apresentando a atmosfera geral das suas faixas. E atmosfera é mesmo o termo preciso, já que o repertório em geral de Sorry Bamba se apoia no prolongamento e na repetição que propiciam o transe – características de parte considerável da música elaborada e executada em território malinês. “Boro”, a faixa seguinte, além de apresentar o domínio de uma percussividade mais suave, própria a sua música, é aquela que traz mais ostensivamente o dedilhado da kora, instrumento de cordas original da costa oeste africana, muito utilizado pelos griots. “Astan Kelly”, a quarta faixa, destaca-se como a composição de maior sotaque afrocaribenho da coletânea. (Não há dúvida de que ela carregue as marcas das vias de ida e vinda do roteiro traçado pelo “Atlântico Negro”, como o “canônico” sociólogo Paul Gilroy cartografa a diáspora negra mundial. Precisamente onde e quando a sonoridade “afrocaribenha” despontou nesse roteiro é uma questão que condena, de antemão, todo e qualquer esforço de pesquisa a sondar o Mistério.) “Sekou Amadou”, que figura aqui como um registro supostamente ao vivo (tudo indica que os aplausos que ressoam em três momentos sejam enxertados), é mais abertamente afim à cultura musical muçulmana (seu canto é prova disso). Na faixa seguinte, “Sayouwe”, comparece a batida soulfunky mais ao modo de uma Orchestre Poly-Rythmo, de Benin, notória por fundi-la com o sato, ritmo usado nos rituais vodu. (É claro: esta impressão pode causar grande espanto e/ou contrariedade a um malinke.)
Mas há duas omissões imperdoáveis na coletânea. “N’Do N’Do”, do álbum de 1977 da orquestra (e cuja capa é uma peça de arte por si só), está incompreensivelmente ausente dela, com a sua síntese de guitarra funky e teclados hipnóticos com as estruturas rítmicas da etnia dogon, à qual pertence Bamba. É possível entreouvir nessas estruturas uma involuntária sugestão da sonoridade eletrônica contemporânea (e notemos o quanto as derivações do funk costumam ser pouco reconhecidas a sua fonte original), o que ajuda a desmontar as convicções de um tão acionado “darwinismo musical” que ainda teima em apontar avanços e atrasos segundo critérios culturais sempre parciais. De resto, nesta faixa em particular, há momentos (principalmente no diálogo meio falado, meio cantado do maestro com a sua orquestra) que não à toa lembram, e muito, outro conterrâneo de Sorry Bamba, mestre dessa forma específica de sincretismo musical afrodiaspórico que é – e não é – a tão recorrente aclimatação do funk às suas “origens”: o saxofonista Moussa Doumbia. (Entenda-se: é pelo ângulo panafricano, que estende a África a toda a presença negra no mundo; e não é pela sabida impossibilidade de se delimitar com exatidão as fronteiras em que se encerraria seu território cultural; afinal, alguém aí saberia precisar em que etnia o tronco familiar dos Brown da Carolina do Sul deita suas raízes? Quem o souber, favor informar...) Doumbia é, de fato, uma rara referência de visceralidade na tradição da fusão afrofunk (suas gravações dos anos 1970 fazem a agressividade rítmica do queniano Matata soar bem mais palatável, em comparação). A outra omissão, a autorreferente “Kanaga”, também do álbum de 1977, abusa da polirritmia num arranjo que inclui experimentações com ecos vocais e wah wahs que remetem, sem chance de erro, à estética psicodélica. (Evidentemente, o repertório da presente coletânea, também.)
Apesar das omissões apontadas, Sorry Bamba: Kanaga Orchestra of Mopti, Regional Orchestra of Mopti (1970-79) é uma obra-prima porque, coerentemente, compila material que faz jus a essa qualificação. Aguardamos por Sorry Bamba, no esplendor dos seus 73 anos, como a carta malinesa da vez na próxima edição do festival Back2Black. Assim desejamos...
Lucio Branco
Ouça a faixa "Astan Kelly",
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