segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Melhores de 2012: Bernardo Oliveira

























- Não me espantam os suspiros saudosistas de Neil Young em sua autobiografia. Ele afirma ter piedade pelas novas gerações, habituadas a escutar arquivos digitais com apenas 5% de toda a potência de uma gravação analógica. Outros vão além, como a jornalista Lorena Calábria, que em seu Twitter, desabafou: “Parem de vazar tantos discos!” O que eles reivindicam é a restituição universal de uma experiência radicalmente conjectural, qual seja: comprar um disco de vinil, levá-lo para casa, escutá-lo com calma, fruindo cada sonoridade, cada detalhe da capa, o cheiro do material… Na extinção daquilo que lhe é familiar, a reação é o gesto mais previsível.

- Quais seriam os critérios objetivos que permitiriam postular a respeito da experiência alheia? Digo, o fato de que podemos tomar contato com todo um discurso baseado em critérios científicos a respeito, por exemplo, da noção de “alta fidelidade”, deveria necessariamente interditar a possibilidade de percebermos (ou até nos permitimos perceber) outros tipos e níveis de fruição, apropriacão, utilização e contemplação?

- Cultura é uma palavra hoje incomodamente atrelada não só ao grande capital, mas ao capital como fundamento inquestionável da produção de subjetividades. Sem dúvida que, para uma parcela imensa das pessoas que ouvem/consomem música, o circuito permanece atado acriticamente a esta realidade. Difícil negar, contudo, que a fragmentação e a comunicação veloz e autônoma, a despeito de sua filiação ao capital, contraria paradoxalmente a política esquálida do show business e da indústria fonográfica. Apostar em quadros hegemônicos se tornou mais difícil...

- Minha geração viveu esses dilemas como quem se encontra imerso em estado de contemplação. Nos situávamos sobre a linha limítrofe entre a trinca vinil-cassete-rádio e o surgimento da cultura digital. Fui e ainda sou um rato de sebo, além de cultivar obsessões similares as dos que reivindicam a audição à moda antiga — todas afinadas com as prerrogativas do grande capital. Contudo, não abro mão de duas convicções, ainda que não as ofereça como juízo de valor: 

a) a interação entre cultura online e cultura digital abalou e pode abalar ainda mais as bases da produção e da fruição cultural depositadas sobre o valor-mercadoria. "O que isso quer dizer" e "onde vai desembocar" são perguntas inadequadas, pois não levam em consideração a correspondência simétrica entre intercâmbios possíveis que marcam a experiência contemporânea. Uma coisa é certa: isso "vai dar" em algo, contudo em algo perempto, com data, hora e local marcado. 

b) a forma e a função da música no passado não se tornou obsoleta, mas corre em paralelo, compõe com outras formas — e isso diz respeito tanto à noção de “audiofilia”, como na dimensão subjetiva da experiência musical. Por exemplo, a cultura sound system, e particularmente o funk carioca, voltadas exclusivamente para a dança e a fruição dos graves, foram responsáveis por outros usos não só dos gadgets eletrônicos, como também das práticas ligadas à produção musical. 

- As instâncias de avaliação mudam a todo instante, para trás e para frente, depende da posição, do observador, do calor do momento: a própria perspectiva é conflituosa. A condição contemporânea — o conflito de múltiplas perspectivas como a fórmula ontológica e política do acaso — leva o "consumidor" cultural a experimentar inclusive formas de fruição e acesso que desafiam o grande capital.

- O “conservador”, ao afirmar o presente como indigno do passado, é, ele mesmo, componente fundamental desta cifra. Mesmo a contragosto, ele conserva o sentido do tempo presente: inevitável mover-se para frente, mesmo pensando para trás...

- Por mais que uma parcela da vida tenha se modificado significativamente com a interação entre cultura digital e cultura online, ainda estamos diante de uma cifra, multiplicidade de experiências simultâneas, possíveis. Mas que fique claro: antes de um ideal de conciliação, cross-cultural quer dizer conflito.

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Concentrei na lista intitulada DAS GALÁXIAS tudo o que mais me pareceu essencial e impressionante em 2012, sem ordem de preferência e proveniente de formatos e naturezas diversas (CDs, singles, EPs, Soundclouds, MySpaces, Bandcamps, arquivos digitais).  Depois, listo 50 discos, 100 faixas, 20 Eps/singles/splits, 20 Coletâneas/relançamentos/antologias e 20 shows. 

Guia de viagem. Bula. Mapa astral. Carta de navegação. Contato. Câmbio.

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2012: DAS GALÁXIAS


















Avante, álbum e faixa  – Siba (s/g, Brasil)
Do cruzamento assimétrico entre a música da Zona da Mata com o rock de Recife e da jovem guarda, nasceu Avante, mais um trabalho primoroso de Siba Veloso. Siba compõe suas canções dentro de metrificações e estruturas harmônicas da toada, do coco, do maracatu, do galope e de toda uma tradição cultural outrora relegada ao registro folclórico. Experimentando novas roupagens sonoras, com a utilização de vibrafone, tuba e guitarra, vivifica e renova o sentido dessas tradições. Além da belíssima “Qasida”, afromaracatu de espertíssimas divisões rítmicas, vale destacar os versos e o arranjo da canção-título. (http://materialmaterial.blogspot.com.br/2012/02/critica-disco-siba-avante-2012-sg.html)




FRKWYS Vol. 9: Icon Give Thank e “Happy Song” – Sun Araw, M. Geddes Gengras, The Congos (RVNG Intl., Jamaica/EUA)
“Como em um processo positivo e inesperado de desenraizamento das sonoridades tradicionais, ocorre a relativa intensificação do sentido contemplativo do canto nyabinghi e das percussões, tocadas por Roydel e Negus Johnson, amparadas pela trama difusa de violões, sintetizadores e efeitos. O trabalho magistral de edição e composição das bases empresta um recorte ordenado a este ambiente rico em sonoridades, de modo a favorecer as canções, ao que tudo indica compostas em parceria: o núcleo norte-americano encarregando-se do instrumental, enquanto os jamaicanos elaboram os arranjos vocais e as letras.” (http://www.factmag.com/pt/2012/06/04/sun-araw-m-geddes-gengras-meet-the-congos-frkwys-vol-9-icon-give-thank/)




Eli Keszler/Keith Fullerton Whitman (Split) (NNA Tapes, EUA)
“Pode-se afirmar que com pontilismo de “Occlusion”, Whitman se deixou contaminar pelo aspecto maquinário e frenético da percussão de Keszler, cujos elementos batizam as faixas: “Drums, Crotales, Installed Motors, Micro-Controller Metal Plates” ou “Bowed Crotales, Snare Drum”. Mosaicos sonoros compostos por timbres indigestos, criando momentos de grande tensão, mas sempre vigorosos.” (http://materialmaterial.blogspot.com.br/2012/04/minicronicas-discograficas-18.html)




Tropicália Lixo Lógico – Tom Zé (Passarinho, Brasil)
“Com Tom Zé, aprende-se de saída que a teoria não é privilégio da academia. Arrancando desabusadamente o exercício teórico da pesquisa universitária, Tom Zé fomentou sua convergência com a poesia e a música como forma de promover uma dupla emancipação: a canção deixa de ser prisioneira dos temas fáceis e recorrentes, ao passo que a teoria pode galgar outras perspectivas, sem necessariamente prestar contas aos afiançadores do saber. A canção é, neste sentido, a catalisadora desta inversão de valores. Com seus procedimentos anárquicos, Tom Zé nos mostra que se a canção de fato morreu, foi de tanto rir.” (http://materialmaterial.blogspot.com.br/2012/11/tom-ze-tropicalia-lixo-logico-2012.html)




Chimerization – Florian Hecker (eMego, Áustria)
Ainda que o discurso nostálgico-saudosista prevaleça em muitos âmbitos, há sempre que se atentar para o trabalho de artistas que pesquisam e inventam algo para além da referência e da “retromania”. Como, por exemplo, Florian Hecker. Em seu último e desafiador trabalho, Chimerization, Hecker propôs colaboração com o escritor e filósofo iraniano Reza Negarestani, resultando em um libreto experimental intitulado “The Snake, the Goat and the Ladder (A board game for playing chimera)”. Recitado por um grupo de pessoas em três línguas diferentes (alemão, inglês e farsi), gravado por Hecker em uma câmara anecóica e manipulado com técnicas psicoacústicas, o trabalho tem por objetivo estimular no ouvinte, após audições sucessivas, o que está descrito no release como uma “audição ativa”. O procedimento resultou na desfragmentação criativa da palavra falada, borrandos as fronteiras que sustentam a preeminência identitária da linguagem sobre a técnica e os objetos da percepção.




Bish Bosch e o videoclipe para "Epizootics!" – Scott Walker (4AD, Reino Unido)
“É certo que Walker sobreviveu a quase todos os artistas que influenciou, o que nos autorizaria a atribuir-lhe esta propensão à demiurgia. Mas convém manter a singularidade de Bish Bosch, mesmo em relação ao autor que a tornou possível. Em uma época em que a performance e as demais possibilidades de criação artística são justapostas, fustigando os gostos mais conservadores, Bish Bosch pode até soar excessivo, disforme, doidivanas para além do tolerável. Mas dificilmente se pode negar que manifesta de forma contundente algo raro neste mundo tomado por conflitos e degeneração, qual seja: a decantada e indomável necessidade de ‘ir-além’.” (http://materialmaterial.blogspot.com.br/2012/12/scott-walker-bish-bosch-2012-4ad-reino.html)



“Mbeuguel Dafa Nekh” – Mark Ernestus Jeri-Jeri with Mbene Diatta Seck (Ndagga, Reino Unido/Senegal)
Do Senegal, o mbalax do grupo Jeri-Jeri e da cantora Mbene Diatta Seck. Da Alemanha, Mark Ernestus em busca de outras células rítmicas para suas viagens sonoras. Após a audição, muitas dúvidas: como os percussionistas marcam o tempo do mbalax? Como ocorrem aquelas mudanças repentinas, como se o andamento prosseguisse, mas o ritmo… atrasasse!? Os mistérios não são poucos nem pequenos, confirmados com outro single formidável, contendo “Xale”/”Daguagne”. Mas o aparecimento de “Mbeuguel Dafa Nekh” certamente constituiu o carro-chefe do selo Ndagga, fundado por Ernestus especialmente para a empreitada. 





Metal Metal – Metá Metá (Desmonta, Brasil)
“A armadura instrumental pode não deixar dúvidas, mas o que fazer diante do fato de que as dúvidas simplesmente desmoronam? Basta assimilarmos uma realidade improvável, segundo a qual teriam marcado encontro na mesma encruzilhada, sob a bênção de todos os orixás, a radicalidade do improviso jazzístico de Peter Brötzmann, o peso do Black Sabbath, os afrosambas de Vinícius e Baden Powell, os detritos sonoros do drone, os ruídos no wave, a pegada do punk e do metal, a música da umbanda e do candomblé, as dissonâncias de Arrigo e Sonic Youth, a pujança do tambor de mina, da ciranda, da umbigada, o canto das três raças, o cinema falado, a escola de samba e a onipresença de Benedito João dos Santos Silva Beleléu, vulgo Nego Dito, cascavé, ensinando a bater cabeça no sobressalto do afoxé, e a fazer riff de metal no galope acertado de um “batuque” de cordas e sopros…”
O texto acima foi publicado no Matéria por ocasião dos shows do grupo no Rio. Abaixo, uma apresentação que aguçou o interesse pelo trabalho. Baixe o disco aqui.
(http://desmonta.com/noticias/meta-meta-metal-metal-dsm012/)



Kadior Demb – Royal Band de Thiès (Teranga Beat, Senegal) 
A história segue um rumo comum nos dias de hoje: pesquisador e DJ grego Adamantios Kafetzis vai parar em Thiès, cidade pequena a 40 milhas de Dakar, Senegal. Lá, se depara com a Royal Band de Thiès e seu representante, o cantor Adam Seck (ou Secka), que fundou o grupo em 1972 com Mapathe Gadiaga. Ao DJ é revelado os fonogramas originais de Kadior Demb, primeiro álbum da banda gravado em 1979, porém nunca lançado. Esse percurso já é familiar (já vimos acontecer com Tinariwen, Konono, Mulatu, Amadou e Mariam, etc), mas estamos diante de verdadeiros virtuoses da polirritmia, que se esmeram nas tramas intrincadas do mbalax sem abrir mão da fluência nervosa e empolgante do improviso jazzístico.




Chelpa Ferro 3 e “Mesa de samba” – Chelpa Ferro (Mul.ti.plo, Brasil)
“…na primeira faixa, “Mesa de samba” (2009), o som é gerado por um aparelho montado com máquina de costura, arame, molinete de pesca, mesa de madeira, caixa de bateria e dímer. Quando o circuito é acionado, agita o fio de arame de forma a percutir sobre a caixa, gerando um batuque aleatório, realçado pelo zumbido da máquina. Por cerca de doze minutos, as guitarras de Arto Lindsay e Pedro Sá redobram a irregularidade das configurações rítmicas, conduzindo a tensão do improviso através da utilização de microfonias, acordes soltos e ruídos.” (http://materialmaterial.blogspot.com.br/2012/11/chelpa-ferro-chelpa-ferro-3-2012.html)



Shields, especialmente “Sleeping Ute” – Grizzly Bear (Warp, EUA)
De uma forma geral, considero Shields um disco à altura da discografia do Grizzly Bear, mas o aporte de “Sleeping Ute” sobressai em comparação não só ao que de melhor o grupo produziu até agora (“Lullabye”, “Plans”, “I Live With You”, “Ready, able”, “Cheerleader”), como indica possibilidades promissoras. Me refiro não somente à apropriação do folk rock americano dos anos 60 e 70, à invulgaridade dos climas, excelência na composição, instrumentação eficaz, mas também uma aproximação com os ritmos quebrados e com as modulações cada vez mais sutis da canção de Daniel Rossen.



“Kindred” – Burial (Hyperdub, Reino Unido)
“A cada lançamento, Bevan mostra que é mais do que um liquidificador de influências passadas, mais do que o hype que cerca seu nome, mais do que “a cena” pensa que ele é. Antes, parece que o produtor é, sobretudo, um desbravador, tal como os artistas do Juke, tal como Konono N.01, ou Shackleton, por exemplo. Uma espécie de cientista maluco em busca de batidas imperfeitas, degradadas, carregadas pelo pó dos automóveis, pela chuva eterna e pelo niilismo sombrio que alimenta os grandes centros urbanos europeus do século XXI.” (http://www.factmag.com/pt/2012/02/24/burial-kindred/)




Highlife Roots Revival e, especialmente, “Owusuwaa” e "Old Man Plants a Coconut Tree" – Koo Nimo (Riverboat, Gana)
Nascido em 1934 na região Ashanti de Gana, Koo Nimo foi para Londres, onde estudou ciências e buscou versar-se em uma série de gêneros musicais, desde o jazz até guitarra flamenca, etc. Hoje aos 80 anos, ele é o maior representante de uma vertente ancestral do highlife, a música palm wine (maringa, na Sierra Leona), cuja riqueza rítmica e melódica pode ser apreciada nesta gravação. Gravado em Accra, no intervalo de sua residência na Universidade de Washington, Highlife Roots Festival conta com a presença virtuosa do violão, percussões expressivas e cantos corais que entoam as melodias melancólicas criadas por Nimo. Gravada em homenagem à sua esposa que morreu em 1973, logo após perder o filho no parto. Ouça uma entrevista com o músico aqui.



“Sudden Moment” (Merzbow remix) – Neneh Cherry & The Thing (Smalltown Supersound, EUA/Suécia/Noruega/Japão)
O disco, anunciado de sopetão, tinha tudo para ser um estouro e resultou apenas interessante. Meses depois, desponta um álbum de remixes. Lá no meio, o nome do japonês Masami Akita, mais conhecido como Merzbow, não surpreende. Afinal trata-se do mestre da cacofonia, perfeitamente adequado ao universo de bizarrices do trio sueco-norueguês. A faixa é "Sudden Moment", composição de Gustafsson claramente influenciada pelas canções impressionistas de Charles Mingus e Ran Blake. Merzbow então se beneficia do andamento trôpego impresso por Paal Nilssen-Love, valoriza os gritos e gemidos, aumenta uma frequência ou um canal e introduz aos poucos seus objetos cacofônicos por entre os componentes do arranjo original. O resultado é simplesmente acachapante, como o leitor pode escutar abaixo.

  

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2012: 50 ÁLBUNS


Aaron Dilloway

















Aaron Dilloway – Modern Jester
Actress – RIP
Alexei Lubimov, Natalia Pschenitschnikova – John Cage: As It Is
Andy Stott – Luxury Problems
Black Pus – Pus Mortem
Catherine Christer Hennix & Chora(S)San Time-Court Mirage – Live At The Grimm Musem: Volume One
Chicago Underground Duo – Age of Energy
Chinese Cookie Poets – Worm Love
Dirty Projectors – Swing Lo Magellan

Dona Onete













DJ Rashad – Teklife Vol 1: Welcome To The Chi
Dona Onete – Feitiço Caboclo
Dr. John – Locked Down
Ekoplekz – Skalectrikz
Eli Keszler – Catching Net
Eliane Radigue – Feedback Works
Fausto Romitelli – Anamorphosis
FAY – Din
Fenn’O Berg – In Hell
Fushitsusha – Mabushii Itazura Na Inori
Hafez Modirzadeh – Post-Chromodal Out!


Hafez Modirzadeh















Jam City – Classical Curves
Janka Nabay & The Bubu Gang – En Yay Sah
Jim O'Rourke – Old News #8
John Zorn – Rimbaud
Keiji Haino, Stephen O'Malley, Oren Ambarchi – Nazoranai
Keiji Haino, Jim O'Rourke, Oren Ambarchi – Imikuzushi
Kevin Drumm – Relief
Keyvan Chemirani – Melos: Mediterranean Songs
Kim Kashkashian – Kurtág/Ligeti - Music for Viola
KTL – V
LHF – Keepers of the Light

Madteo

















Liars – WIXIW
Madteo – Noi No
Maga Bo – Quilombo do Futuro
MarginalS – MarginalS 2
Mariel Roberts – Nonextraneous Sounds
Moritz Von Oswald – Fetch
Mats Gustafsson, Paal Nilssen-Love, Mesele Asmamaw – Baro 101
Peter Brötzmann, Jason Adasiewicz – Going All Fancy
Psilosamples – Mental Surf
Raime – Quarter Turns Over a Living Line

Staff Benda Bilili


















Rhodri Davies – Wound Response
Ricardo Villalobos – Dependant And Happy 1 and 2
Shackleton – Music for the Quiet Hour/The Drawbar Organ
Staff Benda Bilili – Bouger Le Monde
Stephen O’Malley & Steve Noble – St. Francis Duo
The Caretaker – Patience (After Sebald)
The Orb (feat. Lee Scratch Perry) – The Orbserver in the Star House
THEESatisfaction – Awe Naturale
Weasel Walter, Mary Halvorson, Peter Evans – Mechanical Malfunction


2012: 100 FAIXAS

MC Beyoncé


















“128 Harps” – Four Tet
“37/3d” - Mark Van Hoen
“A bossa nova é foda” – Caetano Veloso
“A porrada come” – MC Beyoncé
“Alteração (Éa!)” – BNegão & Os Seletores De Frequência
“Applesauce” – Animal Collective
“Ascoltare Durante Il Pranzo Dopo la Noia” – Bemônio
“Ayesama” – Ebo Taylor
"Bakk Off" (feat. AK) – DJ Rashad
“Banished” – JJ Doom
“Big Beast” (feat. Bun B, TI, Trouble) – Killer Mike
“Biz R Us (Whore Powers Resolution)” – Madteo
“Black Metal Instrumental Intro Demo” – Russell Haswell
“Car” – Holly Herndon
“Cavity” – Rrose
“Chorumelody” – Psilosamples
“Clutch” – Pearson Sound
“Cranial Tap” – Sir Richard Bishop
“Crystalline” (Current Value Remix) – Björk
“Cuba Electronic” – Mala


Holly Herndon




















“Dance for You” – Dirty Projectors
“Destroy Him My Robots” – Young Smoke
“Die Schwarze Massai” – Ricardo Villalobos
“Ela Tá Beba Doida (beba Doida)” – Gaby Amarantos
“En la mano del payaso” – Chinese Cookie Poets
“Eu não estou dentro do seu copo” – Beach Combers
“Evidence” – Carlos Giffoni
“Flux” – Christina Kubisch
“F'Off” – Wiley x Flowdan x Riko x Manga
“Formations” (Tristan Perich) – Mariel Roberts
“Four Gardens” – Julia Holter
“Hadue” – Kyoka
“Honey Badger” – EPROM
“How We Relate to the Body” – Jam City
“Hustle Bones” – Death Grips
“I Go Boom” – Addison Groove (DJ Rashad remix)
“Immigrant Visa Part II” (feat. MC Zulu) – Maga Bo
“Issue Generator” (for Eliane Radigue) – Keith Fullerton Whitman
“Jardin” – Actress

Psilosamples




















“Kill Me with Bongo” – Janka Nabay
“Kippschwingungen part 8” – Frank Bretschneider
“Kuluna/Gangs” – Staff Benda Bilili
“Laid Back” – FaltyDL
“Last Spring: A Prequel” – KTL
“Lurch” – Pole
“Madrid” – Eleh
“Maelstrom” – Steinvord
“Máquina de Ritmo” – Gilberto Gil
“Maybe That Was It” – Dirty Projectors
“Mean Streets Part 2” – Falty DL
“Meikyu” – Voices From The Lake
“Mestiça” – Gaby Amarantos (com Dona Onete)
“Meteorango Kid” – Psilosamples
“Meu Gosto Abraçado À Ilusão” – Leandro Lehart
“Meu Namorado é Maior Otário” – MC Carol
“Morfo” – Duplexx
“Nikels And Dimes” – Gonjasufi
“O sino da igrejinha” – Sambanzo
“Occlusion” – Keith Fullerton Whitman

THEESatisfaction




















“Patrya” – Negro Léo
“Pirol” – Pole
“Please Forgive My Heart” – Bobby Womack 
“Pulso” – Sobre a Máquina
“QueenS” – THEESatisfacton
“Questions Of Middle Distance” – Rhodri Davies
“Rello” (Hodgy Beats, Domo Genesis, Tyler The Creator) – Odd Future
“Ribeirão” – Rodrigo Campos
“Rima do angolano” – Amiri
“Sebenza” (feat. Okmalumkoolkat) – LV
“Seeds” – Georgia Anne Muldrow & Madlib
“Shadow I” – FAY
“Shatter All Organized Activities (Eat The Rich)” – Aaron Dilloway
“She’s IN Insurgency (Steve’s Lunch Blues)” – Drainolith
“Silent Song” – Daniel Rossen
“Silver Rain” – Ekoplekz
“Somebody” – Janka Nabay & The Bubu Gang
“Son Of A Bitches Brew” – Acid Mothers Temple & The Melting Paraiso U.F.O.
“Ssseeeeiiiiii” – Ben Vida
“Steelz” – Amen Ra and Double Helix

Janka Nabay


















“Streuung Ein Winterabend In Der Bowman Suite” – Atom™
“Tapenade” – Pursuit Grooves
“The Blues (It Began In Africa)” – Romare
“The Glass Axe” – Alexander Tucker
“The Metallurgist” – Squarepusher
“The Praetorian” – Shed
“The Rakehell” – Earth
“Toman Teti M’Ba Akala” – Sierra Leone's Refugee All-Stars
“Trace” (featuring Sakamoto) – Fennesz
“Treme Terra” – Curumin
"Up the box" – Andy Stott
“V2” – Carter Tutti Void
“Vão” – Sobre a Máquina
“Venice Dreamway” – Dean Blunt and Inga Copeland
“War Time” – Hot 8 Brass Band
“Weird Ceiling” – Zammuto
“Who” – David Byrne & St. Vincent
“Wish You Better” – Shackleton
“WIXIW” – Liars
“Woy tiladio” – Sidi Touré 
“Yangisa” – Moritz Von Oswald
“Zincali” – Kelan Philip Cohran And The Hypnotic Brass Ensemble


2012: 20 EPS/SINGLES/12''/SPLITS

Ugandan Methods


















2562 – Air Jordan EP
Addison Groove – DJ Rashad/Doc Daneeka Remixes 12”
Burial + Four Tet – Nova
Deepchord – Tonality Of Night 
Diamond Version – EP1
Diamond Version – EP2
Falty DL – Mean Streets Part 2
Hype Williams – London 2012
Jameszoo – Faaveelaa EP
M. Takara – Baladas EP
M. Takara – Fantasma EP
Peaking Lights – Lucifer in Dub
Pole – Waldgeschichten 2
Pole – Waldgeschichten 3
Romare – Meditations on Afrocentrism
Shed – The Praetorian/RQ-170 12”
SND/NHK – Split
Steinvord – Steinvord Ep 
Throwing Snow – Clamor EP
Ugandan Methods – A Cold Retreat


2012: 20 COLETÂNEAS/RELANÇAMENTOS/ANTOLOGIAS:

Karantamba


















Ahmed Vall – Saphire D'Or Mixtape
Akos Rozmann – 12 stationer VI
Can – The Lost Tapes
Captain Beefheart – Bat Chain Puller (2012 [1976]; Zappa, Eua)
Charles Mingus – The Jazz Workshop Concerts 1964-65
Eleh – Retreat, Return, Repose
Eric Dolphy Quartet In Europe. The Complete 1961 Copenhagen Concerts
F.C. Judd – Electronics without tears
Guelewar – Touki Ba Banjul: Acid Trip from Banjul to Dakar
John Cage/David Tudor: Shock Vol. 1, 2 e 3
Tod Dockstader – Electronic Vol. 1 – Recorded Music For Film, Radio & Television
Karantamba – Ndigal
Le Super Borgou De Parakou – Bariba Sound
The Funkees – Dancing Time, The Best Of Eastern Nigeria’s Afro Rock Exponents 1973-77
Regis – Death Head Said
Steve Lacy – The Sun
Sufjan Stevens – Silver & Gold
Tunji Oyelana – A Nigerian Retrospective 1966-79
William Parker – Centering: Unreleased Early Recordings 1976-1987
William Basinski – The Disintegration Loops Vinyl Box Set


2012: 20 SHOWS


Peter Brötzmann



















Edwin Prévost e John Butcher – CCSP/SP
BNegão e Marcelinho da Lua – Casa Rosa/RJ
Chinese Cookie Poets – Audio Rebel/RJ
Dirty Projectors – Circo Voador/RJ
Gabriel Muzak – Audio Rebel/RJ
Gang do Eletro – Sónar SP/Anhembi/SP
Hype Williams – Novas Frequências (Beco 203/SP)
John Zorn Masada – Espaço Tom Jobim/RJ
Kevin Drumm – Audio Rebel/RJ
Kraftwerk – Sónar SP/Anhembi/SP
KTL – Sónar SP/Anhembi/SP
Metá Metá – Oi Futuro Ipanema/RJ
Mogwai – Circo Voador/RJ
Paulinho da Viola e Velha Guarda da Portela – Parque Madureira
Peter Brötzmann, Steve Noble, John Edwards – SESC Belenzinho
Pole – Novas Frequências (Beco 203/SP)
Rustie – Sonar SP/Anhembi/SP
Seun Kuti – Virada Cultural/SP
Thurston Moore – Circo Voador/RJ
Tony Allen – Circo Voador/RJ

Hype Williams

















Bernardo Oliveira

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Scott Walker – Bish Bosch (2012; 4AD, Reino Unido)



























“If shit were music,
you’d be a brass band…”
[Scott Walker, “SDSS1416+13B (Zercon, A Flagpole Sitter)”]


I. “sonic fiction”

Dois aspectos se encontram intimamente ligados em Bish Bosch, novo trabalho de Scott Walker. Primeiramente, é o estatuto do corpo, problematizado através de uma relação determinada entre os sons e as palavras. Os sons dos corpos (peidos, suspiros, gemidos), mas também a conexão entre os diversos corpos, sejam históricos, biológicos ou culturais. Em segundo lugar, é a dimensão teatral da vida que nos permite traçar contornos e conexões atemporais com tudo o que lhe diz respeito, desprovida de distinções radicais entre a natureza e a cultura. O corpo e o teatro: se há hoje um autor capaz de produzir a convergência entre as múltiplas possibilidades evocadas por esta relação, este autor se chama Scott Walker e Bish Bosch é um espaço privilegiado para que elabore sua obra-prima.

Em uma entrevista recente, realizada em virtude do lançamento do disco, David Toop advertia o leitor para o conteúdo esfíngico da trama: “Bish Bosch is not easy to get into, but why should it be?” Para ele, a senha para a complexidade se dá a partir da contradição, característica que dificilmente se pode negar diante das faixas do disco: “…a lot of contradictions (…) there are no mysteries solved.” Ora, mirando atentamente para “O Jardim das Delícias Terrenas”, a obra mais conhecida do pintor holandês Hieronymus Bosch, pode-se tomar consciência do mistério a que se refere Toop. Tal concepção do mistério subjaz sua trama poética, em particular com relação aos procedimentos estéticos e ao tema das relações imprevisíveis entre os corpos, sejam territoriais (Dinamarca, Hawai, os Alpes), culturais (os gregos, Roma), míticos e humanos (Gorbachev, Átila, o Huno). Não dizendo respeito ao mito encoberto, nem ao assassino oculto, o primeiro mistério de Bish Bosch é o corpo em suas mais variadas relações— “o que pode um corpo…”, perguntava no século XVII outro holandês, Baruch de Espinosa. 

Por outro lado, guardadas as devidas proporções de tempo, intenção e consistência, Bish Bosch indica uma inclinação semelhante a que perfaz Tragedy (2011) de Julia Holter. A obra de Holter obtém uma estrutura própria em diálogo com a tragédia grega Hipólito, de Eurípedes, ao passo que Bish Bosch se constitui a partir de um efeito semelhante. Pode-se extrair deste parentesco a consolidação de uma certa inclinação contemporânea à busca de referências e matéria-prima fora do espectro da produção musical — tanto em relação aos procedimentos de produção, como no que diz respeito às perspectivas conceituais e filosóficas. Ou, em último caso, podemos falar de uma obra atenta ao teatro como metáfora da vida, um teatro que convoca o leitor a reconstituir, à sua maneira, as imagens cifradas pelo autor. Com a característica diferencial de partir não de uma obra somente, mas de uma miríade de referências que vão desde o pintor holandês que contribui para o título, passando por diversos períodos históricos, considerações e metáforas a respeito da história recente, da biologia molecular, das ciências médicas, da Bíblia…
















II. “…a lousy a life”

Assim que se inicia Bish Bosch, o tom de precaução que batiza a primeira faixa se agiganta. Os tambores retumbam violentamente, servindo de prenúncio às reviravoltas climáticas que se anunciam. À moda de um ditirambo dionisíaco, “See You Don't Bump His Head” se concentra sobre a imagem dissonante que se manifesta nos versos do coro:

“While plucking feathers
From a swan song…”

Alguém pode interpretá-los como uma consideração irônica do autor, com a intenção de anunciar que está mais vivo do que nunca. A imagem sugestiva, a própria consideração depositada sobre a imagem de um “canto do cisne depenado”, indica que podemos ir além. Na sequência, os primeiros versos de “Corps De Blah?”, indicam que trata-se não de um processo de reação ou redenção, mas de algo que se debate conflituosamente, algo que aponta para uma inclinação subterrânea, simultânea à morte e à fundação imaginária de mundos possíveis. Algo, enfim, que joga um lance de dados com o abismo e aponta para a instabilidade perigosa entre o estado de vigília e a inconsciência: 

“Hence went and cracked
An atom age old egg
Beneath my nose,
The sky-clads ash 
With jettisoning the roost.
I’m bumping into leghorns in the darkness.
Excuse me.
Dear god, excuse me…”

Um ovo quebra, dentes queimando, machados de lâmina dupla, genitália. Ao longo da audição, percebe-se que o autor convoca os sons, os músicos, as palavras e até mesmo o ouvinte-leitor para experimentar das agruras e delícias de suas alegorias, ainda que esse convite os conduza inevitavelmente a experiência-limite do fígado devorado incenssantemente pelo reino dos mitos e das coisas. Em contrapartida ao chamado geral, a consciência individual como que se esvai…

“A sphincters tooting our tune.
If only ‘I’ could pick you.
Wed slosh, wed slide, wed cling
round a kelloggs floor.
His severed, yellow-eyes 
Weeping DA-DA-DA, DA-DA-DA.
From the spit-roast smoke curling.
DA-DA-DA
DA-DA-DA.
‘RACK OFF!’”

Não são apenas os sons de peidos que eclodem, a castigar o gosto e o senso histórico do ouvinte (afinal, já não estamos no século XX…), mas acima de tudo a emersão do palavrório, das entrelinhas, torrentes de palavras e entrepalavras de sentido fluido e maleável, que promovem uma experiência poética radical. Contribuem para a empreitada, a canção de Purcell e Kurtag, Os Cantos de Ezra Pound, as imagens tenebrosas de Lautréamont e da terra devastada de Eliot, o heavy metal, o samba e uma utilização dos instrumentos que remete à experimentação ao mesmo tempo onírica e realista da musique concrète. Além de Walker himself, o bardo…
















III. “job done”

Bish Bosch começou a ser escrito em 2009, enquanto Walker compunha a trilha para o balé Duet for One Voice da companhia ROH2. “Bosch” se refere ao célebre pintor holandês; “bish” é corruptela de “bitch”; mas, no geral, “bish bosch” quer dizer “job done”, “trabalho finalizado”. Acrescente-se a esta informação, uma derivação mítica cunhada pelo próprio Walker: “I was thinking about making the title refer to a mythological, all-encompassing, giant woman artist.” Revestida pela força poética do mito, emerge a figura de uma “mulher artista gigante”, capaz de reaver a sensação de poder e redenção diante de um mundo que apodrece a olhos vistos. Preconizada de forma delirante pelo artista a partir de uma expressão cotidiana, a “mulher gigante” também se impõe como efígie de um mundo natimorto, que se movimenta à custa de sobressaltos, tragédias, genocídios — e “alguma literatura”… Como Bosch, mas também como Rembrandt, o corpo humano é elemento de tenebrosas operações que circunscrevem o corpo doente e moribundo da natureza, da ciência, da cultura e, é claro, da arte.

Produzido por Peter Walsh, Bish Bosch foi gravado por Ian Thomas (bateria), Hugh Burns e James Stevenson (guitarras), Alasdair Malloy (percussão) e John Giblin (baixo), além de contar com as participações de Guy Barker (trumpete) e BJ Cole (pedal steel). As orquestrações são de responsabilidade do diretor musical e tecladista Mark Warman. Instrumentistas comprometidos, primeiramente, em levar a cabo uma iniciativa de cunho sonoro: “os sons vestem as palavras” (“It's just dressing the lyrics”). Não estamos diante de arranjos que vestem canções, mas de uma pesquisa sonora em franco diálogo com as evocações da poesia delirante de Walker. Para fruir a riqueza de Bish Bosch, convém ao ouvinte entregar-se com atenção ao percurso, como quem se entrega a uma experiência entre a performance e a literatura. A cada instante uma modulação situada entre o caos e o silêncio, mas, na maioria das vezes, manifestando confluências inusitadas entre sons e palavras. 

Em “Corps de Blah”, por exemplo, as referências bíbilicas misturam-se a estranhas alusões às ciências médicas (“Eukaryotic gobbler of gavotte, knee to…”), considerações acerca de Tyrol, estado austríaco para onde foram muitos criminosos da segunda guerra (“vacant veins of Sterzing…”), uma série de referências a objetos, sensações, sinestesia radical. Para revestir os versos, Walker e sua banda recorrem a uma série de artifícios e texturas com variações imprevisíveis. Seu canto lacrimoso se inicia, solitário, anunciando um ovo que se rompe e revela o mal: “Dear god, excuse me.” Ruídos em baixo volume, estridentes, cordas e graves soturnos ambientam a lírica de uma terra devastada. De repente, a bateria marcial irrompe, combinada a algo parecido com uma cuíca grave e rouca, sons de animais, sopros que desenham melodias débeis. Silêncio. (Aliás, o silêncio em Bish Bosch nunca é simplesmente a ausência de som, se não que irrompe preenchido de sentido: fôlego, retomada, momento exitante…) Os sons incômodos dos peidos, combinados com percussão e apitos, servem para vestir os versos infames citados acima: “A sphincters tooting our tune…” Segue-se uma sequência de eventos sonoros que vão desde solos de viola, sons de chuva, drones, grooves, solos de xilofone, etc. 

Tomemos o epicentro do álbum, a faixa “SDSS14+13B (Zercon, A Flagpole Sitter)”. As justaposições indicam o cruzamento semiótico de muitas referências. Novamente o silêncio opera o elemento dramático. Zercon, “anão mouro”, guardião da bandeira na corte de Átila, o Huno, se apresenta: 

“This is my job,
I don’t come around and put out
your red light when you work…”

Referências à política do século XX (“Eunuch Ron” Reagan e “Gorbi”), a impérios antigos e ditaduras modernas (grego, romano, huno, galês, britânico e americano), e à depravação na corte de Átila, não escondem o centro gravitacional da faixa: trata-se de uma alusão a condição pós-moderna, tomada comumente como a perda generalizada de referência ou o enfraquecimento da tradição ocidental, mas que na verdade diz respeito a proliferação do conflito entre diversas perspectivas culturais. Em mais de vinte minutos de faixa, Walker conduz os sons em ligação contrastante com justaposições poéticas, nitidamente aparentadas com a logopéia de Ezra Pound. Batidas marciais fornecem o contorno sonoro à declamação dos números romanos, ao passo que a orquestra produz, segundo Walker, “ruídos e texturas, ou grandes pilares de sons, ao invés de arranjos”.

Outros destaques do disco remetem ao mesmo estatuto sonoro-dramático: as crepitações percussivas de “Pilgrim”, a impressionante dinâmica dramática de “Epizootics!”, a escola de samba em “Phrasing” (“pain is not alone”), o coro de facas e zumbidos em “Tar”… Se é bem verdade que trata-se aqui mais de uma “ficção sonora” do que um trabalho exclusivamente musical; se se pode afirmá-lo igualmente como uma peça que desafia a própria noção de “canção”, manifestando-se sob o formato de uma ópera ou de um “canto” musicado; e, por fim, se compreendermos que trata-se de um esforço completamente distinto dos trabalhos anteriores de Walker; então pode-se atribuir a Bish Bosch o caráter simultâneo de um apanágio e de um rompante original, mesmo em relação à história de seu autor.

Ora, em que medida o trabalho se insere nesse contexto musical permeado por múltiplos interesses, no qual o teatro – a dimensão do jogo teatral — se torna referência para a criação musical? Poderíamos ir além, perguntando em que medida seu trabalho nos últimos 30 anos vem se tornando referência para procedimentos híbridos, sobretudo a partir de Climate of Hunter (1984), Tilt (1995) e The Drift (2006)? É certo que Walker sobreviveu a quase todos os artistas que influenciou, o que nos autorizaria a atribuir-lhe esta propensão à demiurgia. Mas convém manter a singularidade de Bish Bosch, mesmo em relação ao autor que a tornou possível. Em uma época em que a performance e as demais possibilidades de criação artística são justapostas, fustigando os gostos mais conservadores, Bish Bosch pode até soar excessivo, disforme, doidivanas para além do tolerável. Mas dificilmente se pode negar que manifesta de forma contundente algo raro neste mundo tomado por conflitos e degeneração, qual seja: a decantada e indomável necessidade de “ir-além”. 

Bernardo Oliveira

***

























Em 2000, quando do lançamento do seu filme Branca de Neve, fizeram uma breve entrevista com o cineasta português João César Monteiro. A questão central era a maneira como o público reagiria ao filme, que não fazia nenhuma concessão ao gosto médio e violava um princípio aparentemente fundamental do cinema (o filme é quase que apenas a exibição da tela preta, com voz e trilha sonora, isso por mais de hora e meia). Monteiro, sem hesitar, respondeu ao entrevistador "Eu quero que o público Português se foda!".

Essa atitude é oportuna para comentar Bish Bosch, o novo álbum de Scott Walker, pois acho que revela uma das coisas mais interessantes em um artista. Como fruidor de arte, busco encontrar artistas que pouco se importem para o que eu pense e façam lá o negócio deles; se vou me interessar pelo que fazem ou não são outros quinhentos. Acredito que o negócio começa a ficar rico quando o interesse da audiência não está projetado lá, no nascedouro da obra. O que modula o exercício artístico não é o desejo de dar afago no indiferenciado público, ou de uma suposta satisfação que o artista deva a seus clientes. Em alguma medida todo produtor de arte quer ser ouvido, lido, comentado - mas "Que o público se foda!" é o mantra de quem faz Grande Arte. Bish Bosch é isso, é Grande Arte. É um trabalho que, por um lado, é muito fértil, propiciador de interpretações: o álbum excita e estimula a produção discursiva, a gente quer falar a respeito do disco, quer comentar as faixas. E, por outro lado, é uma esfinge, enigmático e cruel, monstro devorador e gerador de perplexidade. Que diabo, penso, vou falar sobre esse disco? Como dar sentido a essa parafernália de coisas díspares, faixas cheias de tentáculos, doidera? E esse negócio de usar o som do pum nas faixas, de soltar pum na música?

Por essa via, algo como o que aparece no clip de "Epizootics!" atravessa o álbum inteiro. O que vemos no clip é uma perturbação celebrada por um artista que está à vontade com seu ofício e seus instrumentos e que calha de ser também um artista sem conforto. Um disco revivalista de Walker, soltando o vozeirão pra standards e com arranjos luxuosos de cordas provavelmente ia bombar. Mas ao invés disso temos esse objeto não-identificado. Há, em cada faixa, um teatro do absurdo em operação, e o palco no qual os dramas se realizam é o espaço da canção. A membrana sendo esticada aqui são os limites da canção, e tudo tem lugar na dramatização do canto que sempre foi peculiar à excelência de Walker. Para isso, vale tudo: instrumentos insólitos, viradas abruptas, metais em febre a la Scelsi, pum.

Na terra do ostranenie, Scott Walker é rei.

Antonio Marcos Pereira

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Tom Zé – Tropicália Lixo Lógico (2012; Passarinho, Brasil)


























Aumenta a disposição para a concordância.
Começa-se a pensar em camadas paralelas.
Certas abstrações ocorrem com naturalidade.
Max Bense, Inteligência Brasileira, 3


“pensar é pão”

De seu reaparecimento triunfal até Tropicália Lixo Lógico, a música de Tom Zé vem se constituindo a partir de teorias saborosamente anômalas a respeito da mulher (Estudando o Pagode, 2005), do “defeito de fabricação” da mentalidade terceiro-mundista (Com Defeito de Fabricação, 1998), do efeito liberador da Bossa Nova na cultura brasileira (Estudando a Bossa, 2008), além de um trabalho instrumental-onomatopaico sobre a “pós-canção”, batizado como Danç-Êh-Sá, 2006. (É bem verdade que, em relação a The Hips of Tradition, não se sabe bem ao certo se há um centro gravitacional, mas teimo em acreditar que trata-se de uma avaliação implacável dos fluxos e refluxos da Terceira Revolução Industrial, do ponto de vista de um brasileiro).    

Nesses discos, o artista estabeleceu relações francas, abertas e muitas vezes incômodas (no melhor dos sentidos) entre uma teorização sobre a formação de aspectos da cultura brasileira e um conjunto de canções que, ao contrário de explicar a tese, jogava ainda mais fogo na lenha da provocação. Acerca da abordagem original deste procedimento, ou mesmo de seu êxito propriamente artístico, é possível uma conclusão parcial: que não há na atualidade esforço similar, qual seja, o de articular ímpeto teórico, citações eruditas, relevância na poesia, na música e no pensamento através de canções estritamente acessíveis.

Tom Zé vem aproximando, justapondo, confundindo esferas separadas por conveniência política e cultural, sejam elas acadêmicas, estéticas, psicológicas, filosóficas, etc. Sendo assim, não é de se estranhar que o único artista brasileiro a introduzir elementos teóricos em sua dinâmica criativa desminta a “morte da canção” preconizada por Chico Buarque há cerca de seis anos. Principalmente porque seus exercícios teóricos não se constituem segundo a prerrogativa acadêmica, ciosa da consistência lógico-formal que fornece sentido à progressão das pesquisas, e , em última instância, afiança sua autonomia perante os órgãos institucionais — questão de poder, portanto.

Com Tom Zé, aprende-se de saída que a teoria não é privilégio da academia. Arrancando desabusadamente o exercício teórico da pesquisa universitária, Tom Zé fomentou sua convergência com a poesia e a música como forma de promover uma dupla emancipação: a canção deixa de ser prisioneira dos temas fáceis e recorrentes, ao passo que a teoria pode galgar outras perspectivas, sem necessariamente prestar contas aos afiançadores do saber. A canção é, neste sentido, a catalisadora desta inversão de valores. Com seus procedimentos anárquicos, Tom Zé nos mostra que se a canção de fato morreu, foi de tanto rir.

Poiésis, pois entre poesia e teoria, não existe aporia. 


“guaraná vai pisar no calo da coca-cola”

Um dos caminhos adotados para abordar Tropicália Lixo Lógico corresponde à separação da teoria e da produção estética. Seguindo este caminho, alguns julgaram tratar-se de uma defesa de tese sob a forma de canções. Ao passo que para José Miguel Wisnik, Tom Zé desenvolve uma “argumentação cancional” (em seu excelente artigo a respeito do disco). Não discordo propriamente destas intepretações, mas faço uma ressalva: antes de separar teoria e poesia, antes mesmo de separar a crítica da poesia, parece mais proveitoso traçar conexões entre duas dinâmicas complementares no trabalho de Tom Zé: uma lúdico-teórica e uma outra, crítico-poética.

No balaio lúdico-teórico o tempo é espectral, imenso; autores, artistas e ideias soam ao mesmo tempo no grande palco do pensamento de todas as eras e continentes, tudo é jogo, como no teatro. Já do lado crítico-poético, é a malícia, a graça, a carpintaria do texto e da melodia, a funcionalidade da ideia que ditam as regras: “vontade de forma”, Apolo incorporado. No trabalho de Tom Zé, a teoria é confeccionada com desmesura, ao passo que as rigorosas construções formais reiteram a ciência implacável da canção popular. 

Ora, estamos diante de uma obra paradoxal, que nos conduz em direção a uma espécie de dobra: não seria o paradoxo, em detrimento da dialética, o ambiente próprio da chamada cultura brasileira? Em outras palavras, não seria justamente esta capacidade de apropriar-se de modo carnavalizante da cultura ocidental, diversificando as configurações culturais, o conteúdo inominável do “lixo lógico”? Do suposto conflito entre teoria e estética, nos resta salvaguardar o fato concreto de que em Tropicália Lixo Lógico a teoria já foi ruminada, e a canção popular, sublimada.

Como se dá essa reviravolta? Primeiramente, Tom Zé afirma que entramos na era da Segunda Revolução Industrial quando “um gatilho disparador (…) provoca em Caetano e Gil o vazamento do lixo lógico do hipotálamo para o córtex.” Para além da confluência de muitas perspectivas (culturais, fisiológicas, sociais), a Tropicália foi uma explosão criativa e de consciência, em relação a qual pudemos liberar, manipular o "lixo lógico", isto é, a cultura ocidental, "aristotélica", refundada sobre o solo trágico do colonialismo.

Mais abaixo, no texto do encarte, outra possibilidade interpretativa: sobre a placa mental “virgem e faminta” da primeira infância, marcada no córtex cerebral, o lixo lógico eclode, quando a cultura ocidental dá de encontro com as potencialidades e vicissitudes da “creche tropical”. E ainda há uma terceira hipótese, segundo a qual os brasileiros foram formados pela junção do “saber de Aristóteles com a cultura do mouro”. Aqui a imprecisão conceitual é criativa e criadora, assim como o paradoxo é manipulado enquanto valor, retrabalhado a partir da confluência com o “lixo-lógico”. O paradoxo em Tom Zé não se deflagra em oposição frontal aos ditames da instância avaliadora da lógica europeia, mas como uma reapropriação antropofágica do termo técnico, através do grande sismógrafo da cultura brasileira, a canção. 


“catci garra gafum”

Tropicália Lixo Lógico traz um conjunto de faixas em nada convencionais, mas que exalam o travo amistoso da canção popular brasileira, voltada em sua maioria para a festa, o bar e a zona. A forma aparente corresponde à dinâmica estrofe-refrão, mas as articulações poéticas, antes de contrastar, reforçam o amplo espectro de sons que caracteriza a roupagem instrumental e os arranjos — elaborados por Tom Zé, Daniel Maia e Felipe Alves, respectivamente guitarrista e baixista da banda.

O corpo de canções indica a malandragem e o engenho do poeta, artifícios que testemunham, para além do aspecto anárquico, a concepção rigorosa, precisa. Uma profusão de neologismos (“tropicalisura”, “analfatotes”, “Caegitano”), aliterações, transliterações, revolvem múltiplas referências à literatura e à música. Trechos de melodias e letras da canção tropicalista reescritos com ironia, ritmados pela prosódia com balanço de samba, frevo, rock e marcha. Recortando a última sílaba de alguns versos, Tom Zé começa o verso seguinte, ora fazendo humor (“com Juliana-vengando contra o vento”), ora aglutinando significados com alto teor sugestivo (“Universi-dadal-dadal…”, “da cun unha, unha, unha”). 

Vale enaltecer o canto e a interpretação do compositor por todo o disco. Sua voz consegue obter variações imprevisíveis, exibindo um tom mais declamatório e arriscando-se em melodias improváveis e jogos de interpretação. Como em “Amarração do Amor”, quando nos fala daquele ódio similar ao de “Odeio você”, canção de Caetano Veloso: o ódio do amante. A interpretação hilária de Tom Zé, ao forçar o sotaque para extrair o efeito cômico da frase “desse tamaninho”, adere perfeitamente ao conteúdo meio trágico, meio irônico, dos versos:

“A mãe-de-santo já me deu
Miniatura de você
Des’tamanhinh
É de palha costurada com agulha de crochê
Vou te derreter
Numa panela de dendê”

Tomemos a canção que, não à toa, dá nome ao disco. “Tropicália Lixo Lógico” se inicia com a sequência melódica com tinturas românticas de “Coração Materno”; os primeiros versos afirmam que o lobo (bobo?) não comeu ninguém. Alusão à bossa nova? Apesar da forte sugestão nessa direção, o verso diz respeito ao processo de colonização: a pureza de Chapeuzinho é invadida por Seu Lobo, que no entanto “não come ninguém”. Em ritmo de Jovem Guarda, tomamos conhecimento do processo constitutivo do lixo lógico: o “pacote de pensar” de seu Aristote (corruptela de Aristóteles), ao entrar em contato com “nossa moçárabe estrutura de pensar”, gera, por um processo psico-fisiológico, o subproduto do lixo lógico. Tom Zé concentra sua teoria diretamente sobre a canção-título, liberando espaço para uma sequência de canções que tangem o conceito indiretamente. Tal procedimento, ao contrário de enfraquecer, ampliou e enriqueceu o panorama da obra.

Arrisco-me em algumas interpretações, por exemplo, “Capitais e tais” sugere a pregnância da ponte cultural do nordeste para São Paulo; “O Motoboi e Maria Clara” expõe com singela ironia as agruras da vida paulistana; “Não tenha ódio do verão” é um libelo contra o decantado ódio que alguns brasileiros sentem pelo Brasil, realçando a positividade do lixo lógico em detrimento da cultura ocidental. “NYC Subway Poetry Department” representa simultaneamente a internacionalização de Tom Zé e da Tropicália, enquanto “Amarração do amor” busca dar conta do aspecto passional do lixo lógico. E tantas outras, tão cativantes quanto as anteriores: “Debaixo da Marquise do Banco Central”, “De-de-dei Xá-Xá-Xá” e a curiosa “Jucaju”, que aparentemente sugere à inserção de Juca Chaves no contexto da Tropicália, como eminência parda a respeito do qual poucos falam. Acrescente-se os versos comoventes de “A terra, meus filhos”, a cantilena “Navegador de Canções” e “Aviso aos Passageiros”, rock’n’roll crítico às palavras de ordem institucionais.

Sobre este conjunto de canções indiretamente ligadas ao tema, reside sua riqueza, o que há de mais forte em Tropicália Lixo Lógico. Se a ideia moderna da palavra “teoria” se consolidou como o recanto da objetividade, especialmente atrelada ao amanhã, (e por vezes ao “depois-de-amanhã”), a teoria lúdico-cancioneira de Tom Zé, por sua vez, estabelece que o “lixo lógico” só pode ser compreendido sob a forma de como é vivido, isto é: no bole-bole do movimento, no xique-xique do agora, no fricote do assovio, no refrão do cotidiano. Trabalho de invenção, como o próprio autor frisa, não se furta a atravessar fronteiras, fazendo contrabando com todos os lugares, com todas as eras, mas fornecendo suas conclusões sob o aqui e o agora da canção. Sendo assim, eis a maior virtude de Tropicália Lixo Lógico: afirmar de forma contundente e performática sua tese central, qual seja, a peculiar agilidade crítico-criativa proveniente do lixo lógico.

Bernardo Oliveira

Ps.: Em tempo: os “defeitos” que permeam todo o disco, justificados por Tom Zé como “invenção”, constituem intervenções do lixo lógico sobre a lógica linear e limitante da grande indústria fonográfica. 

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Chelpa Ferro – Chelpa Ferro 3 (2012; Mul.ti.plo, Brasil)























Conhecido pelas instalações e intervenções que desenvolve no território da sound art, o Chelpa Ferro chega ao terceiro disco invertendo uma das premissas centrais de seu trabalho. Até então os limites do som e dos materiais empregados foram tematizados através de instalações, performances e demais circuitos intersemióticos — como “Autobang” (2002), no qual o trio destruía "percussivamente" um Maverick 74', com o auxílio de Laufer, Dado Villa-Lobos, Domenico, Bacalhau e Leo Monteiro. Desta vez, estes mesmos circuitos fornecem subsídios para que o som ocupe um espaço central. Chelpa Ferro 3 privilegia a construção de um discurso elaborado a partir do aspecto sonoro das obras, valendo-se de sua interação com o improviso de instrumentistas afinados com a proposta do coletivo.

Por exemplo, na primeira faixa, “Mesa de samba” (2009), o som é gerado por um aparelho montado com máquina de costura, arame, molinete de pesca, mesa de madeira, caixa de bateria e dímer. Quando o circuito é acionado, agita o fio de arame de forma a percutir sobre a caixa, gerando um batuque aleatório, realçado pelo zumbido da máquina. Por cerca de doze minutos, as guitarras de Arto Lindsay e Pedro Sá redobram a irregularidade das configurações rítmicas, conduzindo a tensão do improviso através da utilização de microfonias, acordes soltos e ruídos.

As faixas seguintes seguem a mesma construção conceitual, explorando a interação entre o aspecto sonoro das instalações e o improviso dos músicos. Em “Microfônico” (2009), com a participação do violoncelista Jaques Morelembaum, a máquina é composta por motor, trilho, microfone, amplificadores e vasos; à medida que os microfones pairam sobre a boca dos vasos, captam as reverberações internas e geram microfonias. Percebe-se que a estratégia de improvisação do instrumentista responde às microfonias e reverberações provenientes da instalação, gerando justaposições harmônicas e frequências incomuns.

Percutindo trinta sacolas plásticas contra a parede, comandadas por motores, cabos e um circuito eletrônico apelidado como “cabeção”, “Jungle Jam” (2008) é dos momentos mais instigantes dos cinquenta e um minutos do trabalho. E isso graças não só à sonoridade gerada pelo engenho conceitual da máquina, mas ao diálogo entre Kassin e Berna Ceppas. Munido por seu contrabaixo, Kassin imprime uma dinâmica marcial sobre à percussão frenética das sacolas plásticas, ao passo que Ceppas recorre aos sintetizadores e à lap steel guitar para explorar as mudanças de clima no transcorrer do improviso. Em relação às cinco faixas do álbum, esta é a que equilibra de forma mais perceptível e eficiente o conteúdo sonoro da instalação e a intervenção do improviso.

Por seu turno, “On – Off Poltergeist” (2008), com a participação de Chico Neves, se inscreve de forma contundente no aparente revigoramento das experiências sonoras limítrofes que marcam a música hoje — por exemplo, através da reabilitação do interesse pela otoacústica, a espacialização do som e de nomes como Maryanne Amacher e Eliane Radigue. A instalação consiste em sete auto-falantes extraídos de sete aparelhos de televisão, separados e dispostos em cada um dos extremos de uma sala, com a intenção de desvincular som e imagem. Neves manipula um Simmons SDS-V, recortando padrões rítmicos a partir dos sons emitidos pelos aparelhos. A aparência espectral — ou fantasmagórica, como indica o título — não compromete a preponderância do ritmo sobre os outros elementos. Dupla tendência reafirmada na última faixa, “Acusma” (2008), que conta com o baterista Stephane San Juan interagindo com trinta vasos de cerâmica em treze formatos e tamanhos diferentes, cada um contendo um auto-falante que reproduzem o solfejo editado e processado de cinco cantores. Os cantores entoam números ao invés de notas, com a intenção de estimular no ouvinte uma sensação “acusmática” — termo explicado no encarte, que designa uma “alucinação auditiva pela qual se julga ouvir vozes humanas ou instrumentos musicais”.

Não parece despropositada, ou mesmo casual, a referência à fantasmagoria inerente ao trabalho do Chelpa Ferro. E isto na medida em que ela remete tanto à efetividade material quanto à presença espectral da obra. Basta observar que entre a experiência de se presenciar as instalações, com todo o aparato audiovisual e sinestésico, e de escutá-las como um instrumento entre outros, é possível detectar diferenças relevantes. Esta característica indica que a instabilidade nas peças elaboradas pelo Chelpa Ferro não é meramente estilística, mas constitutiva e essencialmente criativa. Atribuindo o mesmo nome das obras às sessões de improviso, o grupo converte todo o seu trabalho em jogo aberto, sujeito a mudança de regras e mutações imprevistas. Além de uma audição fascinante pela riqueza de procedimentos e ideias, Chelpa Ferro 3 abriga uma perspectiva entrópica segundo a qual tudo opera por deslocamento e descontrole. Constitui-se, assim, não no isolamento ou reaproveitamento de aspectos das instalações, mas na desintegração da própria obra, sua fragmentação necessária e regeneração particular. 

Bernardo Oliveira