Não que a música senegalesa seja completamente desconhecida pelas bandas de cá. Ao contrário, Youssou N'dour chegou a tocar no finado Free Jazz Festival, enquanto Ismaël Lo, Touré Kunda, Baaba Maal, Cheikh Lo, Africando, Orchestra Baobab são nomes razoavelmente conhecidos entre os pesquisadores e interessados. Até mesmo a aparição, no ano passado, da trama polirrítmica do mbalax de Fatou Laobé, Thione Seck, Kiné Lam e Pape Seck, retrabalhada por Mark Ernestus com o Jeri-Jeri e a cantora Mbene Diatta Seck, não foi suficiente para dar conta de tamanha surpresa. Ocorre que, apesar de todas essas referências, a composição destilada pela Royal Band de Thiès, formada por fanfarra, jazz big band e mbalax, flagra o ouvinte completamente desprevenido.
A história segue um rumo mais ou menos comum nos dias de hoje: o grego Adamantios Kafetzis, pesquisador e DJ, viaja a Thiès, pequena cidade a 40 milhas de Dakar, onde o movimento operário, constituído majoritariamente por construtores de rodovias, desempenhou um papel fundamental no processo de independência do país. Lá, se depara com a Royal Band de Thiès tocando em um dos clubes mais conhecidos do local, o Sangomar. Fundada em 1972 por Mapathe Gadiaga com o cantor Adam Seck (ou Secka), permaneceu até 2012 como um daqueles segredos mais "mal guardados" da música senegalesa — pois não há segredo "bem guardado" em termos de arte...
A pesquisa de Kafetzis revelou os fonogramas originais de Kadior Demb, primeiro álbum da banda, gravado em 1979 e jamais lançado. A surpresa foi tanta que o grego abriu um selo, o Teranga Beat, só para editar o trabalho. Já o percurso é familiar, já vimos acontecer de forma semelhante com Tinariwen, Konono N.1, Mulatu Astatke, Amadou e Mariam, etc. Contudo, estamos diante de um outro tipo de inflexão da música feita no Senegal. Acompanhados por nove membros, distribuídos entre a seção rítmica e os metais, James Gadiaga e Secka se mostram detentores de uma sólida e intrigante concepção musical.
Secka entre amigos |
A pesquisa de Kafetzis revelou os fonogramas originais de Kadior Demb, primeiro álbum da banda, gravado em 1979 e jamais lançado. A surpresa foi tanta que o grego abriu um selo, o Teranga Beat, só para editar o trabalho. Já o percurso é familiar, já vimos acontecer de forma semelhante com Tinariwen, Konono N.1, Mulatu Astatke, Amadou e Mariam, etc. Contudo, estamos diante de um outro tipo de inflexão da música feita no Senegal. Acompanhados por nove membros, distribuídos entre a seção rítmica e os metais, James Gadiaga e Secka se mostram detentores de uma sólida e intrigante concepção musical.
A Royal Band de Thiès concentra verdadeiros virtuoses da polirritmia, que se esmeram nas tramas intrincadas do mbalax sem abrir mão da fluência nervosa e empolgante do improviso jazzístico. Mas Kadior Demb não impressiona simplesmente pela instrumentação híbrida, como também pelo próprio ataque dos músicos, registrados com dois microfones praticamente ao vivo. Os arranjos, a instrumentação e, sobretudo, as dinâmicas (as chamadas “convenções”) revelam justaposições rítmicas intrincadas e aparentemente descompassadas em faixas como “Chérie Coco”, “Kouye Magana” e “Mariama”. Mesmo na levada em “Gossar” ou na balada “Sama Yaye Boye”, percebe-se a poderosa coesão da orquestra.
Então, diante do balanço sinuoso de “Korolober”, todo marcado nos tempos fracos, imagino que a cabeça desses músicos esteja maquinando uma série de informações que passam ao largo do bebop e do legado funk/soul norte-americano, tal qual na Orchestre Poly-Rythmo ou na Baobab. Seguindo a pista de Kafetzis, encontrei informações a respeito de uma cidade responsável por boa parte da originalidade musical do Senegal, mesmo em relação à África oriental, marcada pela atuação do grande instrumentista Moussa Diallo. Percebe-se que não se trata somente de uma inflexão do mbalax, mas um refinamento pontual de aspectos da música senegalesa. Por este motivo, nas primeiras audições de Kadior Demb o ouvinte se flagra em meio a uma espécie de desencontro cultural, que tende a se torna mais comum a cada dia. Mesmo com a “familiaridade remota” propiciada pela diáspora digital africana, este desencontro convoca o ouvinte a alimentar com a imaginação tudo aquilo que simplesmente desconhece.
Bernardo Oliveira
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