Uma das obsessões criativas de Rob Mazurek, ou pelo menos uma das mais recorrentes, diz respeito ao seu procedimento de trabalho: “layering”, quer dizer, sobreposição de camadas, de texturas, de culturas, personalidades, possibilidades e trabalhos: “Eu elaboro minhas obras visuais de uma forma semelhante a que organizo o SOM: sobrepondo camadas, dinâmicas de cor, rabiscos estáticos e vermelhos pesados se misturam em uma espécie de nebulosidade do movimento cósmico, embora esteja aparentemente parado.”
Em constante movimento após lançar três discos nos últimos meses — as Skull Sessions com o octeto, Eclusa com o Objeto Amarelo e Stellar Pulsations com o Pulsar Quartet —, o compositor, trumpetista e artista plástico americano relatou ao Matéria um de seus projetos mais mirabolantes. Há alguns anos, Mazurek vem desenvolvendo as partes que integram The Book of Sound, ópera eletroacústica de ficção científica, baseada nos escritos do poeta e cineasta brasileiro Helder Velasquez Smith. Sobreposições, novamente: “Usando o SOM, o VISUAL e o TEXTO, desenvolvo sete horas de festa para os olhos e ouvidos”.
Natural que se considere a dinâmica de trabalho vertiginosa como o testemunho indefectível de sua personalidade extremamente criativa e radicalmente obstinada. Nascido em 1965 em Jersey City, NJ, Mazurek é geralmente associado à cena de improviso e experimentação jazzística da Chicago dos anos 90. Desde seu primeiro trio, formado em 1996 com o guitarista Jeff Parker e o baterista Chad Taylor até os dia de hoje, Mazurek acumula 25 anos no métier. Seu currículo transpira “ímpeto e tempestade”: mais de 200 composições, muitas delas espalhadas pelos mais de 40 discos que lançou com Exploding Star Orchestra, com as várias formações do Chicago e do São Paulo Underground, SOUND IS Quintet, Starlicker, Mandarin Movie, Tigersmilk, editados por selos como Aesthetics, Cuneiform, Mego, Submarine e Thrill Jockey. Sua marca reside de forma definitiva entre o que há de mais peculiar e avançado no jazz contemporâneo.
Prestes a lançar o quarto trabalho com o São Paulo Underground, batizado ironicamente Beija Flors Velho e Sujo (não, você não leu errado…), o artista segue lançando, tocando, gravando. A superatividade pode denotar uma personalidade forte e auto-centrada, mas o olhar mais cuidadoso revela generosidade e espírito de colaboração incomuns. “É divertido pular no abismo, mesmo que os resultados nem sempre sejam os melhores”. E não foram poucos seus parceiros e colaboradores, dos chapas da cena de Chicago como Jeff Parker e Chad Taylor, até os manos Maurício Takara e Guilherme Granado, sem contar mestres e heróis como Bill Dixon, Pharoah Sanders e Roscoe Mitchell. Abaixo, um pouco dessa generosidade através de uma profusão de palavras, sentidos, sons, cores, maiúsculas e minúsculas…
Bernardo Oliveira
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Entrevista com Rob Mazurek
No texto que acompanha Stellar Pulsations, assinado por Jeff Parker, li talvez a melhor definição de seu trabalho: “Durante a última década ou mais, Rob Mazurek vem explorando a idéia de criar ambientes para perder-se no som”. Como você interpreta este “perder-se no som”? Qual é a posição do artista quando se perde em meio a um ambiente que ele mesmo projetou?
Gosto de pensar que o som pode existir dentro de certos parâmetros determinados pelo compositor/intérprete = MÚSICA... mas também pode existir fora dos parâmetros da idéia de música (ou) de “som organizado”. Como John Cage declarou há alguns anos, o som existe muito bem por si mesmo. Minhas ideias para a distribuição do SOM levam a ideia de Cage em consideração, mas também a estruturação ou concepção de um ambiente sonoro que me agrade e afete mais alguém de forma semelhante.
Em outro nível de compreensão, tenho me interessado na estratificação, na sobreposição de universos sonoros que permitam à composição assumir uma espécie de OUTRO mundo em relação a si mesma. Através da sobreposição de várias camadas sonoras acredito que é possível encontrar uma área escondida, capaz de abrir uma concepção temporal e (ou) atemporal da estrutura da realidade, que nos levaria até mesmo à pergunta extrema: por que existimos? O som é uma ferramenta poderosa para alcançar realidades alternativas ao continuum espaço-tempo e fundir a cabeça, a fim de reconfigurar as soluções possíveis em direção aos primórdios da matéria e da antimatéria. Abertura é a ideia... Abertura...
Me chama a atenção porque, em primeiro lugar, Parker se refere ao “ambiente” e ao “som”, e não à “música”. Ele atribui esta concepção a você, então pergunto: quais as diferenças que você percebe entre a noção de “música” e de “som”? Por que a preferência pelo segundo?
O som é o que ouvimos. Nós reconfiguramos e reestruturamos o som por acidente a cada vez que mexemos nossa cabeça, andamos na rua, bocejamos, andamos a cavalo, viajamos em um helicóptero ou mergulhamos um metro debaixo d’água. Neste sentido, somos todos compositores por acidente. O mundo do som controlado não existe... Se você tem mil pessoas em uma sala escutando uma peça musical, é absolutamente impossível que cada pessoa ouça o SOM da mesma forma... Agora, eles podem falar sobre ouvir a mesma MÚSICA tocada na sala de tal e tal forma, mas a posição do corpo, o leve movimento da cabeça, o ritmo respiratório particular de cada pessoa, a frequência cardíaca, o bater dos pés, etc., vai sempre levar a uma experiência muito pessoal e íntima, não apenas com base na física, mas no estado emocional e em um milhão de outros parâmetros. Tornar-se consciente do SOM é tornar-se LIVRE.
O que me parece mais impressionante no seu trabalho é que ele mantém uma unidade na diversidade: muitos gêneros misturados, uma quantidade brutal de projetos, mas, no geral, percebe-se o mesmo caráter exploratório e “cósmico”. O mesmo na sua obra visual (em capas de disco ou em White On White), na qual percebemos deteriorações, emaranhados, mas sempre com uma forte unidade visual. A que se deve essa unidade?
Assim como não se pode nunca experimentar um SOM da mesma forma, não podemos também ver algo da mesma maneira. Eu elaboro minhas obras visuais de uma forma semelhante a que organizo o SOM: sobrepondo camadas, dinâmicas de cor, rabiscos estáticos e vermelhos pesados se misturam em uma espécie de nebulosidade do movimento cósmico, embora esteja aparentemente parado. Com minhas fórmulas elaboradas para a ambientação do SOM ou do VISUAL, busco maneiras de varrer a ideia conservadora de sentimento de morte, como forma de abrir o diálogo entre o pensamento, a respiração e os seres humanos compassivos.
"Presenciar borboletas azuis na Floresta Amazônica, uma tempestade em Brasília ou ouvir enguias elétricas no INPA em Manaus constituem influências tão importantes como foram Art Farmer, Bill Dixon, Miles Davis, Alan Shorter, Chet Baker e Don Cherry."
Li que suas primeiras referências vieram do hard bop, sobretudo Lee Morgan, Freddie Hubbard, Kenny Dorham e, depois, Bill Dixon. Houve inicialmente uma tentativa de síntese desses estilos? Conte-nos um pouco a respeito do processo de formação do seu som como trumpetista?
Primeiramente, você arrisca um som por vontade própria, depois você tenta copiar os mestres. Daí você deve abandoná-los completamente e tentar criar seu próprio vocabulário. Assim como é importante parar de culpar seus pais pelas coisas que aconteceram em sua infância, você deve abandonar sua fantasia de soar como outra pessoa e tornar-se quem você é. Minha trajetória como alguém que faz SOM gira em torno dessa busca. Presenciar borboletas azuis translúcidas na Floresta Amazônica, uma tempestade em Brasília ou ouvir enguias elétricas no INPA em Manaus constituem influências tão importantes como foram Art Farmer, Bill Dixon, Miles Davis, Alan Shorter, Chet Baker e Don Cherry.
Conte-nos um pouco sobre suas primeiras experiências como parte do quarteto formado com George Fludas, John Webber e Randolph Tressler?
Este foi o meu primeiro grupo. Eu escrevi a maior parte do material nessa gravação e acho que ficou bom. Mesmo neste disco, eu estava tentando desesperadamente encontrar o meu som, tanto em relação à instrumentação, como em termos de composição...
Qualquer biografia a respeito de Rob Mazurek cita a “fértil cena jazz de Chicago em meados dos anos 90” como o ambiente no qual você se afirmou como músico, compositor, experimentador. Gostaria de saber quais seriam, do seu ponto de vista, as características sonoras e conceituais mais fundamentais deste momento? O jazz de Chicago contribuiu para a percepção que temos hoje do jazz e do improviso jazzístico?
O SOM sempre esteve presente em Chicago e sempre estará. Durante a década de 90, quando eu morava em Chicago, haviam grandes músicos que buscavam experimentar com diversos gêneros e com o SOM em determinados ambientes — combinando minimalismo com o rock, peças gráficas com Musique Concrete, Jazz com Punk, Techno com Free Jazz abstrato. Tinha gente como John McEntire e Jim O’Rourke, Fred Anderson e Hamid Drake, Isotope 217 e Chicago Underground, a nova música de computador com pessoas como Casey Rice, Nobukazu Takemura e John Herndon, a nova música contemporânea com os músicos japoneses de noise, uma espécie de explosão de SOM. Estávamos todos viajando e tocando sempre no Japão, influenciando uns aos outros. Isso ainda está acontecendo, como sempre tem acontecido desde o início dos tempos, apenas com instrumentos e estrutura um pouco diferentes. Mas eu diria que a espacialidade do temperamento do centro-oeste norte-americano sempre esteve presente. O ambiente e o som do ambiente.
"Venho testando desesperadamente novas configurações de personalidades e instrumentos, para tentar entender como o som viaja em determinadas situações, e romper o limite cósmico do que a imaginação é capaz de fazer..."
Rob Mazurek e Pharoah Sanders |
Ao mesmo tempo em que você tem milhares de projetos, alguns músicos te acompanham em muitos deles — Chad Taylor, Jeff Parker, Matthew Lux, entre outros. Por que a necessidade de desdobrar-se em uma variedade de projetos? Trata-se de uma decisão “conceitual”?
Um instrumento pode alterar todo o equilíbrio de um SOM. Venho tentando desenvolver um vocabulário com as mesmas pessoas por anos a fio, adicionando ou excluindo membros, misturando pessoa(s) de modo a encontrar as combinações que melhor se encaixem no ambiente de uma composição ou construção particular do SOM. Naturalmente, a fim de construir um vocabulário, você deve dispor de músicos ao redor que estejam dispostos a aprender este vocabulário com você. Isso vai muito além da ideia de escrever algumas músicas e ensaiar para fazer um ou dois shows. Tem a ver com anos de experiência com uma dinâmica rigorosa de tentativa e erro, a fim de encontrar a essência de um SOM determinado. Venho testando desesperadamente novas configurações de personalidades e instrumentos, para tentar entender como o som viaja em determinadas situações, e romper o limite cósmico do que a imaginação é capaz de fazer.
Lendo a respeito de suas influências, percebemos que seus interesses são muito amplos, mas circunscrevem o eixo atmosférico do jazz interestelar de Sun Ra e do Miles Davis da fase fusion. Como se dá a integração de sonoridades menos amistosas — noise, glitches — perceptíveis em projetos como o São Paulo Underground, Mandarin Movie ou em seu trabalho solo?
O ruído pode ser seu amigo, se você não estiver programado de uma maneira que não te permita escutar a beleza no ruído. E há tantos níveis diferentes de ruído... Quando ouvi pela primeira vez, na minha janela aqui em Chicago, o fraco barulho de um trem à distância, junto ao canto da cotovia balançando no pinheiro próximo à porta, os sinos de vento de quatro casas adiante e os graves robustos do alto-falante de um rapper hispânico que passou ali na calçada por acaso… Isso foi surpreendente! Pensei, “esta é a música que eu quero fazer!” Fui até o toca-discos, pus Nothing Is…, o disco de Sun Ra, e foi ESTE O SOM!!
Com São Paulo Underground, Mauricio Takara e Guilherme Granado, todos esses artistas e conceitos! Nós fazemos música juntos como um experimento tanto em extremos como também em não-extremos... Quão longe você pode ir quando quer expandir os limites? Quão longe você pode ir com o SOM, quão longe você pode expandir os limites com uma bela melodia, um ritmo de candomblé ou um feedback, o quanto podemos influenciar uns aos outros? É divertido pular no abismo, mesmo que os resultados nem sempre sejam os melhores. MESMO NO RUÍDO EXTREMO há também potencial para a extrema beleza.
"O ruído pode ser seu amigo, se você não estiver programado de uma maneira que não te permita escutar a beleza no ruído."
A propósito, existe algum plano para reativar o Mandarin Movie? Você se importaria de rememorar alguns aspectos desta experiência?
Está tudo explicado no título da última faixa na gravação: “The Tallest Building in the World” (“o edifício mais alto do mundo”). Sonhei que estava no topo deste edifício, uma espécie de super-bioestrutura que não parava de crescer, com fogos de artifício à distância e tudo ao meu redor. Este foi o SOM que eu estava procurando e parcialmente encontrei através das pessoas do grupo. Foi o único grupo onde literalmente explodi meu trumpete. Nesses shows incendiários, realizados em pequenas venues de punk rock, nós realmente levávamos o som ao limite. E em duas noites diferentes, as articulações do meu trumpete explodiram! Simplesmente explodiram! Pensei comigo: “esta é a música que eu quero fazer!”
Como surgiu a ideia de formar a Exploding Star Orchestra? Surgiu com a intenção exploratória, por exemplo, dos workshops de Charles Mingus?
Não, veio de minha própria ideia de compor para uma paleta maior de cores e personalidades. Expandindo o vocabulário com o qual ja vinha trabalhando há dez anos ou mais, usando todas as minhas faculdades em composição, arranjo, construção, eletrônica, minha experiência com noise, jazz, minimalismo, música africana, brasileira, indonésia, japonesa, mexicana, polonesa, lituana, italiana, croata, de Marte, Júpiter, Saturno e tudo mais que venho acumulando ao longo de anos e anos de desenvolvimento, som e vocabulário. Tudo isso para apresentar uma experiência SONORA por meio de músicos escolhidos a dedo para elaborar um ruído exultante. Eu literal e figurativamente queria e ainda quero EXPLODIR A ESTRELA para novos começos e amores futuros.
Sei que Bill Dixon é como um herói para você. Como se deu a participação dele com a Orquestra?
Bill estava sempre expandindo os limites com suas ideias e seu trabalho. Eu tive o privilégio de passar um bom tempo com o mestre desde nosso primeiro encontro no Festival de Jazz de Guelph Internacional em 2006. Nossa reunião nesta ocasião era para ser fortuita, mas nos tornamos muito próximos depois disso.
Foi na passagem de som de Bill nesse mesmo dia que ouvi o som mais incrível que já tinha escutado até então, que eu gosto de explicar da seguinte forma:
Após a passagem de som, um fotógrafo queria uma foto de Bill tocando seu trumpete. Ele parecia um pouco cansado e pronto para ir embora, após o longo calvário de uma hora para alcançar o som adequado ao local. Bill parou por um segundo, olhou diretamente nos olhos do fotógrafo, colocou o sopro nos lábios e tocou o som mais sublime e poderoso que eu tinha escutado de um trumpetista até então. Era como se a igreja se abrisse e um milhão de pássaros brancos voassem, deixando traços de ouro e prata no céu tingido por uma luz explosiva. O que pareceu para mim uma eternidade foi, de fato, um minuto de som. Ele terminou a peça com uma agitação ascendente, e era como se o som tivesse penetrado os pilares de granito para ser incorporado na rocha por toda a eternidade... e depois ele fez de novo!
Neste mesmo dia, Bill me presenteou com a caixa de 6 CDs da sua obra-prima Odyssey e, mais tarde, tocou em um concerto extraordinário com Joelle Leandre, prometendo que viria para a performance do São Paulo Underground à meia-noite. Eu não achei nem por um minuto que Bill iria aparecer de fato, pois ele parecia absolutamente cansado do concerto anterior. Mas lá estava ele sentado na plateia com Sharon Vogel, sua linda parceira.
"Bill estava sempre expandindo os limites com novas idéias, refinando velhas idéias, buscando o som e o momento..."
Stephen Haynes, Bill Dixon e Rob Mazurek |
Fizemos o show, meus nervos um pouco abalados. Estava absolutamente convencido de que tínhamos feito o pior show de todos os tempos, e que Bill poderia me escrever um e-mail educado para pedir a caixa Odyssey de volta, e eu jamais tentaria me comunicar com ele de novo. Mas enquanto eu estava me sentindo pra baixo, Bill irrompeu pela porta dos bastidores com a mais grave das expressões no rosto e felicitou-nos pelo show com um entusiasmo inabalável. Ele parecia particularmente fascinado com a maneira que nós criávamos o som a partir da sobreposição de camadas, com o uso de samplers, computadores, bateria, percussão, voz, trumpete com efeitos... Absolutamente memorável... Foi lá que pela primeira vez discutimos a ideia de fazer algo juntos, o que levou à colaboração de Dixon com a Exploding Star Orchestra.
Infelizmente não houve tempo suficiente para levá-lo ao Brasil para tocar com o São Paulo Underground, o que ele manifestou interesse em fazer. Mas houve tempo para levá-lo como convidado especial para tocar com a Exploding Star Orchestra, em Chicago, no Festival de Jazz de Chicago, em 2007 (onde gravamos Bill Dixon with Exploding Star Orchestra para Thrill Jockey Records), em Lisboa, no Festival de Jazz em Agosto em 2009 (tenho uma gravação incrível desta noite, que deve ser lançada) e na Filadélfia, na International House. Tive o prazer de tocar em Tapestries for Small Orchestra (para Firehouse Records) e tambem naquele que viria a ser seu último concerto em Victoriaville, 22 de maio de 2010.
Após a reunião inicial no Canadá, passei dias e semanas em Bennington, Vermont, na casa de Bill Dixon e Sharon Vogel. Um dia típico seria mais ou menos assim:
Chegada na casa de Bill ao meio-dia. Bill já terá tocado por algumas horas. Ele pede para que eu saque meu instrumento, tocamos por boas quatro, cinco horas, intercaladas com histórias maravilhosas sobre seus dias em Nova York, Bennington, Itália... Ele sempre concentra a lição sobre o som das notas, o som, o som... Sempre procurando o puro tom do instrumento. Discutiríamos composição e orquestração, e por cerca de quatro, cinco horas escutaríamos infinitas gravações que ele fizera ao longo de sua vida. Peças solo, duetos com Cecil Taylor, material inédito da banda Vade Mecum, performances dos alunos, seu quarteto de cordas, performances de dança/música com Bill e Stephen Haynes, noite adentro sem parar, às vezes pulando para um concerto de Bartók ou Hakan Hardenberger tocando “Endless Parade”. Sempre acerca do som, buscando chegar ao centro do som... Fizemos isso todos os dias, durante semanas.
Lembro-me de uma vez quando me preparava para voltar para Chicago, depois de um período de duas semanas com Bill. Parei em frente à sua casa por volta nove horas da manhã para dizer adeus. Me dirigi ao seu quarto e, sobre sua cama, estavam espalhados cerca de quinze a vinte livros de matemática sobre todos os tipos de teorias, idéias... Olhei para Bill e perguntei: “o que está acontecendo aqui?” Ele me olhou muito sério e disse: “deve haver uma maneira melhor para fazer uma maldita boquilha, e eu vou descobrir”.
A mente de Bill estava em constante movimento, criando conceitos e fazendo...
Enquanto esteve em Chicago Bill ficou muito impressionado com as grandes esculturas sem cabeça intitulada “Ágora de Magdalena Abakanowicz” no Grant Park. Ele estava trabalhando em uma peça que imaginou para lançamento em TV e em áudio, centrado em torno da idéia dessas esculturas com entrevistas com o artista e música escrita para dois trumpetes, o meu e o dele. Era para ser lançado pela Thrill Jockey. Infelizmente não houve tempo suficiente para realizar este projeto.
Bill estava sempre expandindo os limites com novas idéias, refinando velhas idéias, buscando o som e o momento. A passagem de Bill é uma perda devastadora, mas sua obra imensa e a memória de seus métodos rigorosos, sagacidade, humor e inteligência vão ficar comigo para sempre.
Trabalhos como Boca Negra e Age of Energy diferem em forma e conteúdo dos discos com a orquestra, o quarteto e, o mais estranho, o trio… Existe uma lógica conceitual dentro dos trabalhos e das várias formações do Chicago Underground?
SIM, a lógica é criar uma música interessante através de todos os meios que se fizerem necessários. Tenho tocado com o Chad por mais de vinte anos. Nós ainda construímos um vocabulário sob o pretexto de que QUALQUER COISA PODE SER FEITA A QUALQUER MOMENTO. Por isso usamos o básico de nossos instrumentos (bateria e trumpete) como um trampolim para outras maneiras de elaboração do SOM, de tal forma que consigamos projetar a UNIDADE e a GRAÇA à nossa própria maneira. Pianos, computadores, drum machines, marimbas, mbira, caixas de eco, flautas, vibes, voz, sintetizadores, samplers, wood blocks foram utilizados. A idéia é fazer um enorme e belo barulho através de ritmos ondulantes, linhas sequenciadas pesadas de baixo, aparelhos eletrônicos, som ambiente, mbira “assombrada” e estruturas melódicas dolorosamente belas... É o nosso SOM e tenho muito orgulho disso.
"São Paulo, em particular, possui hoje essa energia para músicos criativos e arte em geral. Isto influiu na minha decisão de morar lá e trabalhar com músicos e artistas de todo o país."
Por que escolheu viver por um tempo no Brasil? E o que de mais valoroso e interessante o núcleo brasileiro trouxe para seu trabalho?
Falemos sobre o Ekundayo, um grupo maravilhoso concebido pelo infinitamente criativo Rodrigo Brandão, um cara original em personalidade, energia, idéias, SOM e tudo mais. Ele teve a idéia de montar a banda, que inclui o São Paulo Underground, o grande músico e repentista (“wordsmith”) Mike Ladd, o incrível Naná Vasconcelos, os versos doces de Lurdez Da Luz e Brandão, tudo misturado pelo brilhante produtor novaiorquino Scotty Hard. Para mim, esta é a ideia de colaboração no sentido de lançar um som de verdade, uma ideia verdadeira... Isto parece que só poderia acontecer no Brasil.
São Paulo, em particular, possui hoje essa energia para músicos criativos e arte em geral. Isto influiu na minha decisão de morar lá e trabalhar com músicos e artistas de todo o país. Guilherme Vaz é um dos tesouros do som e das artes no Brasil. Suas ideias tem me afetado profundamente. Por exemplo, coletar o som de um índio pertencente à uma determinada tribo e criar uma peça a partir disso, o poder de tal ideia! Buscando imaginar, em primeiro lugar, a própria origem do som! Muito interessante para mim... Radical, eu diria...
Há um trabalho muito interessante e poderoso feito pelo artista Nuno Ramos (tive o prazer de conhecê-lo em seu estúdio) que vi no Instituto Tomie Ohtake há alguns anos. Recipientes cheios de vários líquidos: petróleo, glicose, vinagre, água do mar, em diálogo com bombas, tubos e estruturas de vidro. Uma enorme escultura em 3D, pinturas nas paredes que pareciam um carnaval flutuante de outro mundo, bastante lírico para os meus olhos...
Esta exposição parecia uma absoluta des-construção e re-instalação, que só se torna possível quando a imaginação solta os bichos. Você quer saber se o tigre vai pegar a imaginação e transformá-la em carne moída ou se voará para uma nova dimensão especificamente projetada para manter o músico alerta e proteger a imaginação. Quando vou ao Brasil minha imaginação se eleva, o sentimento de nuvem morna cai suavemente sobre o rosto e me deparo com uma espécie de dualidade do tempo que só poderia ser descrita com uma imagem do Rio Negro. Sentado em um pequeno barco e acariciando as cabeças gigantes dos botos cor de rosa que habitam essas águas mágicas, enquanto imagino uma orquestra de enguias elétricas debaixo das ondas suaves...
Quando escutamos sua colaboração com Takara e Granado, é possível detectar ecos nítidos da música brasileira dos anos 70 como Hermeto, Clube da Esquina… Havia um interesse pela música brasileira antes de seu primeiro contato com essa turma?
Antes e depois: Pedro Santos (Krishnanda), Belchior, Caetano Veloso, Guilherme Vaz, Chico Buarque (Construção), Jobim, Tamba Trio, Milton Nascimento, Moacir Santos, Naná Vasconcelos, Egberto Gismonti, Hermeto Pascoal, Cartola, Nelson Cavaquinho, Marisa Monte, Martinho da Vila, Paulinho da Viola, Clementina, Gal Costa, Ratos de Porão...
"Explorar a ideia de reconfiguração radical das coisas: eis um conceito que me parece estimulante."
Rob Mazurek Octet – Foto: Lane Firmo |
Retomando a questão visual, podemos perceber que esta tendência em explorar as “fronteiras” se estende para sua prática como artista plástico. Você mantém o mesmo sentimento aplicado à música quando propõe interações interdisciplinares entre som, música e artes visuais?
Quando você sobrepõe grandes camadas de tinta sobre uma superfície, segue-se um acréscimo de emoções, o sentimento e o gosto por alguma coisa é ativado. Esta ativação é o que é importante para mim tanto com relação ao SOM como em relação ao visual. Meu bom amigo, escritor, professor, crítico de arte Tiago Mesquita me perguntou uma vez “por que você trabalha com limites em seus quadros? Por que não tratá-los como objetos que não tem começo nem fim?” Pensei a respeito e compreendi que essa ideia poderia ser aplicada tanto ao visual quanto ao som.
Você também pode levar em consideração o trabalho de Nelson Félix, outro artista brasileiro que admiro. Ele dispõe placas gigantes de aço ao longo de um caminho de figueiras que em 100 anos ou mais irão deformar o metal, transformando-o em estruturas orgânicas. Isso com base no modo como as árvores se apropriam e transformam o metal através do tempo... Pensei: “como isso pode ser feito com som?” Como produzir uma estrutura atemporal de SOM que será entortada, mutilada, empurrada para seus limites ao longo de um período muito longo de tempo e, em seguida, conduzida suavemente de volta para o mundo das coisas? Explorar a ideia de reconfiguração radical das coisas: eis um conceito que me parece estimulante. Como Tunga, como Hélio Oiticica, como Maurício Takara, como Guilherme Granado, Paulo Monteiro, Rodrigo Andrade e Panda (Antonio Panda Gianfratti).
O que mais te interessa na exploração das artes visuais? De que forma essas instâncias (som, imagem) dialogam no seu trabalho?
Eu estava assistindo a um filme chamado Girl on a Motorcycle, que destroça uma história bastante comum... É muito mais interessante para mim do que as besteiras de Hollywood... Por que nesse mundo a mágica das coisas tem que ser extirpada de tudo em favor da chamada “sociedade normal”? O SOM e a IMAGEM possuem potencialidades, é preciso manipulá-los, quebrá-los, martelá-los, acariciá-los, beijá-los, afundá-los, enterrá-los, catapultá-los para novas dimensões, a fim de iniciar um diálogo entre universos. Às vezes o que está escondido é mais poderoso do que o que é visto: o poder das pinturas advém das qualidades subjacentes à coisa pintada, a energia acumulada ao longo do tempo, do pensamento e da ação. O poder do SOM emerge quando você toma uma simples partícula de alguma coisa e a transforma radicalmente através da beleza, do ruído, do tempo e tudo mais, para lançar bandos de aves em direção ao céu azul. O sol assimila essas imagens, esses SONS e sentimentos, e o universo responde... Som e imagem devem ser amantes... O potencial para voar
Você poderia falar um pouco a respeito de cada um dos três discos que você lançou recentemente: o 7” com o Objeto Amarelo, as Skull Sessions e o Pulsar Quartet? Soube que tem um São Paulo Undeground a caminho…
Carlos Issa é um ser humano brilhante. Em sentimento, em SOM, em VISÃO, uma ave rara que ATIVA o ambiente e tem a sensibilidade para deixar que algo se desenrole tão naturalmente como rebanhos de renas no sol do ártico.
A gravação de meu octeto para as Skull Sessions se concentraram na criação de camadas de SOM a partir do potencial de oito seres humanos colhendo flores no campo e criando nuvens de cor e êxtase harmônico em direção aos céus. A flauta sônica de Nicole Mitchell, a escala de ouro da rabeca de Thomas Roher, juntamente com os ritmos propulsores de Herndon, a metálica “ressurreição dos mortos” de Jason, Guilherme soltando os bichos na mão esquerda do synth bass, e a percussão avançada de Maurício (que também toca seu cavaquinho de prata), com os ruídos brilhantes de Carlos indo de encontro ao tornado de moléculas de som...
Já o Pulsar Quartet são quatro pessoas tocando estruturas musicais com a liberdade de vaga-lumes que gentilmente espiralam pelo ar fresco da noite. O piano de Angelica Sanchez reproduz bálsamos de felicidade, com o baixo Matt Lux ornamentado pelas pancadas de John Herndon e meu trumpete “serpenteando” através do espaço.
O novo São Paulo Underground se chama Beija Flors Velho e Sujo, uma espécie de grito para os Ol Dirty Bastard, a idéia de romper a barreira para o outro lado de uma coisa através da potência do som e da beleza. Trabalhar com Maurício e Guilherme é uma das coisas que eu mais gosto de fazer no mundo. Beleza sônica, amizade pessoal, honestidade e uma razão para mergulhar no éter de possibilidades, tanto musicalmente quanto pessoalmente. Meus irmãos.
Uma colaboração recente que me chamou atenção foi no disco do Marcelo Camelo. Qual a principal diferença que você sente quando precisa trabalhar com cantores e canções?
Marcelo é uma coisa rara. Tão atencioso e carinhoso. Quer trazer a beleza e as cores para o ambiente. Suas canções são poderosas e estranhas ao mesmo tempo. Trabalhamos juntos há alguns anos e eu vim a perceber que, para mim, o seu poder vem de seu coração. Trabalhar com o escritores, músicos, cantores e rappers criativos como Marcelo, como Kassin, como Malu, como Jorge du Peixe, como Vanessa da Mata, como Rodrigo Brandão, como Will Oldham, como Tulipa, é um prazer e um sopro de ar fresco.
Por fim, li na entrevista recente uma lista de seus próximos projetos e fiquei curioso para saber mais sobre Extreme Musique Concrete e Illumination Drones…
Isso tudo caminha na direção da minha grande ideia de uma ÓPERA. Uma ópera abrangente de ficção científica multimídia baseada nos escritos de Helder Velasquez Smith. Usando o SOM, o VISUAL e o TEXTO, desenvolvo sete horas de festa para os olhos e ouvidos. Nesta peça vou incluir minhas ideias para Extreme Musique Concrete, Illumination Drones e dois pequenos contos que ocorrem dentro do ópera chamados Android Love Cry e Throne of the House of Good and Evil, todos sob o seguinte título: The Book of Sound.
A concepção de Extreme Musique Concrete e de Illumination Drones é, mais uma vez, centrada nas sobreposições, criando situações em que a massa de informações torna-se outra coisa. Os harmônicos do som, os harmônicos da visão são constantemente multiplicados até que a ILUMINAÇÃO assume, formando os seus próprios estalagmites alados de uma brilhante revelação.
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Entrevista realizada e traduzida por Bernardo Oliveira (via email), para o blog Matéria.
Agradecimentos ao Fred (Submarine/Norópolis), Tiago Campante, Antonio Marcos Pereira e Mariana Mansur
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