Diante de uma gravação classificada de boa consciência como bootleg, pretendo que os parágrafos abaixo reúnam argumentos não só para destacar o que há de musicalmente relevante nestas sessões de improviso, mas indicar no mesmo passo de que forma o bootleg reaparece hoje completamente renovado por uma série de condições e estratégias. Trata-se portanto de uma abordagem que busca entrelaçar alguns aspectos estéticos desta colaboração com a detecção de práticas renovadas de registro e distribuição.
Formado por Thiago França (Metá Metá, Criolo), Marcelo Cabral (idem) e o baterista Anthony Gordin, o MarginalS, responsável por um dos discos mais interessantes de 2012, convidou alguns músicos para uma residência no Espaço + Soma em SP. Entre 2010 e 2011, o trio recebeu artistas como Guizado, Thomas Rohrer, DJ Marco, Lurdez da Luz, Criolo e Maurício Takara. Consta que todos esses encontros serão editados e lançados em 2013, começando pela participação de Takara e prosseguindo com Thomas Rohrer e a dupla Guizado e DJ Marco. Para além do díptico precariedade/raridade que norteou a história do bootleg até então, Marginals + M. Takara Ao Vivo Espaço + Soma alia a gravação de boa qualidade, com performances de alto nível e distribuição gratuita.
Me explico. A origem do termo bootleg atravessou o século XX à força de deslocamentos semânticos e apropriações políticas que se desdobraram em direções específicas durante o período de ouro do disco: associado primeiramente às práticas de contrabando e falsificação de mercadorias, para posteriormente nomear a prática criminosa dos selos independentes, até, finalmente, tornar-se sinônimo de item raro nas discotecas especializadas. No Brasil, o bootleg aportou sob o signo da precariedade e da raridade do “disco pirata”, que, bem diferente do produto que é vendido hoje nos camelôs, levava aos aficcionados registros de concertos com qualidade duvidosa — entre os mais conhecidos estão o California Jam do Deep Purple e o Live At Last do Black Sabbath.
Evidentemente, não é de hoje que os fãs gravam shows de seus artistas prediletos, nem que os próprios artistas gravam “por esporte”, experimentação, exercício descompromissado, às vezes despojado, às vezes com rigor ímpar — como é o caso das gravações impecáveis legadas por Itamar Assumpção, que se transformaram nas duas sequências do Pretobrás. Alguns fatores, porém, nos levam necessariamente a considerar a emergência de estratégias e práticas que conferem um outro significado ao bootleg, muitas das quais presentes neste trabalho que uniu o improviso do trio MarginalS às intervenções de Maurício Takara. Trata-se de um trabalho que se apresenta simultaneamente como sintoma e ponta-de-lança no contexto de produção paulistano.
Em primeiro lugar, esta modalidade de bootleg herda somente o nome da prática ilegal ou de procedência duvidosa. Ao contrário, geralmente o autor detém os direitos da sua obra, embora neste caso trate-se de um encontro dedicado ao improviso. Ou seja, aqui não se percebe todo o peso da ilegalidade jurídica que reveste o bootleg como um dispositivo “fora da lei”, que jutificaria seu caráter de “raridade”. É perceptível a forma específica através da qual a criatividade, a organização e a articulação dos artistas entra em estado de fusão — forma semelhante se observa nas Duas Sessões lançadas no início do ano por França, Sérgio Machado e Kiko Dinucci, que incluem a Dada Radio Session e as Fun Fun Sessions. (Dinucci, inclusive, é o autor da capa deste bootleg).
Segundo, na medida em não há necessidade de burlar os dispositivos jurídicos que protegem o direito autoral, essas gravações ocorrem com o aval dos músicos envolvidos, o que implica em um cuidado maior até mesmo na hora da mixagem — lembrando que, se muitos bootlegs foram tirados da mesa de som, não esqueçamos dos inúmeros que foram registrados com gravadores de mão. A qualidade do encontro entre Takara e o MarginalS é não só evidente, como também atesta que foi concebido estrategicamente como um produto bem acabado. A distribuição nas redes sociais se encarrega de disseminar o conteúdo, provendo divulgação e incentivando a procura pelos concertos. A qualidade técnica e criativa desta colaboração deriva, assim, de uma prática abundante e atenta.
Com o exercício tornando-se corriqueiro, consolida-se uma cultura da gravação, que em se emancipando dos grandes eventos e dos cronogramas de lançamento das gravadoras (disco de Natal, disco de Páscoa, etc.), libera não só o artista, como também o público, para uma outra relação com a música. Vale notar que mesmo um artista ousado como Caetano Veloso, porque se inscreve em uma dinâmica de produção e divulgação centrada sobre o calendário do grande mercado, acaba por expor seu trabalho de forma desigual, com prejuízos evidentes para a percepção geral da obra. Não foi por mero acaso que a maioria do público do show relativo ao Abraçaço entoou em coro “Um abraçaço” e até mesmo “A bossa nova é foda” (dois dos carros-chefe executados na rádio e distribuídos nas lojas durante o período do Natal), mas demonstrou desconhecer clássicos como “Triste Bahia” e “Escapulário”. À medida em que produção contínua dita a cadência da divulgação, trabalhos como esta colaboração aparecem sem aviso prévio.
Uma quarta qualidade desse "bootleg renovado" é que, na medida em que os antigos se formavam como dispositivo de consolidação do "gosto" — pois se constituiam como material “para fãs” — nesta colaboração a potência criativa dos artistas envolvidos opera no limite. A configuração sonora, portanto, combina as diversas tendências que cada um dos membros carrega como parte de sua formação. Thiago França destila o sopro robusto, com ecos e ressonâncias do timbre de Coltrane e das escalas orientalizadas de Mulatu, não se furta a utilizar a flauta e o EWI, além de recorrer aos efeitos mais diversos no sentido de abrir o leque de timbres e possibilidades. Takara distribui sua participação pelos sintetizadores e o vibrafone, enquanto o baixo acústico de Marcelo Cabral traça um diálogo intermitente com a bateria de Tony Gordin. Estamos no epicentro do mais ousado e exploratório improviso jazzístico brasileiro, turbinado pelo rock, o funk, o ethiojazz, e outras vertentes que alimentam o jazz contemporâneo.
Por fim, vale enaltecer a disposição dos artistas em fundar seu trabalho sob estratégias instáveis e, ao mesmo tempo, aberta a novas possibilidades de interação entre artista e público. Em uma crítica ao primeiro disco do trio, em 2011, busquei ressaltar a produtividade de alguns artistas do contexto paulistano, que não só multiplicavam colaborações, como também perseguiam outro espectro de interesses musicais. Desde então, as tensões permaneceram e se acirraram, tanto no que diz respeito às discussões sobre direito autoral, chegando até mesmo ao questionamento da relevância da “cultura” que é produzida hoje no Brasil. O fato de que muitos desses questionamentos remetem diretamente aos conflitos entre formas consolidadas de formação, produção, controle, crítica e distribuição e a emergência de uma sensibilidade que persegue outras direções, indica que não existem perspectivas pré-definidas nesta questão. A produção musical (e cultural) no Brasil é motivo de uma disputa que pode ser descrita a partir da imensa justaposição de mentalidades, necessidades e privilégios, repleta de vencedores parciais e prêmios relativos.
Além de uma audição formidável, MarginalS + Takara ao vivo é também uma resposta e um movimento — parcial, limitado, contundente — no tabuleiro da música do Brasil.
Além de uma audição formidável, MarginalS + Takara ao vivo é também uma resposta e um movimento — parcial, limitado, contundente — no tabuleiro da música do Brasil.
Bernardo Oliveira
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