Quando se está por fora dos circuitos e curto-circuitos que a rua e seus mitos particulares provocam na criação do som; quando perde-se a dinâmica em rede de grandes iniciativas e pequenos acasos, que edificam pouco a pouco o que nós convencionamos chamar de "gênero" ou "estilo"; e, enfim, quando perdemos o senso de pertinência que só o convívio pode levar à percepção: aí, a crítica pode vir a se tornar uma atividade criativa, voltada para a reinvenção das condições nas quais surgiram as obras e seus enigmas.
No caso do Juke, pelo menos na minha percepção, este lento processo de aproximação e compreensão se deu de forma bastante diferente daquele ocorrido com o jungle/drum’n’bass e o dubstep. Esses vieram sem bula. Somente anos depois vim a compreender os liames que ligavam o Jungle ao UK Garage ou o Dubstep ao 2-Step, e todos eles ao Dub. Diante de “Hatas our motivation”, de DJ Nate, pensei: uns moleques de Chicago teriam escutado demais “Come Out” de Steve Reich e usado repetição das células para criar dinâmicas rítmicas ultra-aceleradas. O termo juke recebia, quase como um complemento, o termo footwork, “trabalho de pés”. Fui averiguar e me deparei com um novo mundo, que se agitava em torno de um sapateado intrincado e veloz, que justificava a aceleração dos BPMs. Alguns anos depois, em entrevista para a revista Wire (nº 334, dezembro de 2011), Rashad e Spinn desfizeram minhas primeiras impressões: não só desconheciam Steve Reich, como também não pareceram se entusiasmar tanto com o que escutaram.
Quem é então Kavain Space, mais conhecido como RP Boo, neste contexto? Nada mais nada menos do que o elo perdido entre a cena Warehouse que desponta no final dos anos 70 e durante todos os anos 80 — a combinação disco/soul eletrônica que dita as regras do House — e o Footwork, talvez o segmento mais radical na seara da eletrônica de pista em Chicago.
Quando tomei contato com o trabalho de DJ Nate, imaginei o reaproveitamento urbano e irreverente do minimalismo, a partir do contraste entre o temperamento descontrolado do ritmo com a regularidade do andamento, causando uma impressão contraditória de stasis sob forte tensão. Na verdade essa estrutura já constituía a evolução do Guetto House (também conhecido como Juke), espécie de House ainda mais acelerado, que tem Kavain Space como um de seus arquitetos primordiais — ao lado de DJ Deeon, DJ Clent e DJ Slugo. Por um equívoco genealógico, tomei o trabalho de Nate como início, quando na verdade operava já uma evolução do trabalho iniciado com as inovações desse pequeno grupo.
Em 1999, ainda em parceria com DJ Slugo, Space produziu “11/47/99”, mais conhecida como “The Godzilla”, sampleando “Simon Says” de Pharoahe Monch. Além de criar as bases para a consolidação do Juke, a faixa é uma boa introdução para alguns dos melhores momentos de seu primeiro e excelente álbum. O título não poderia ser mais sugestivo: Legacy.
Nada mais natural se perguntar por onde andou Kavain Space desde suas primeiras produções a serem classificadas como Guetto House até a gravação de seu primeiro álbum em 2013, pelo selo de Mike Paradinas, o Planet Mu. Só vim a conhecê-lo bem depois de tomar contato com produções de Nate, Roc, Earl, Rashad e Spinn, através da coletânea Bangs & Works (nessa resenha já exprimo a ausência de referências mais concretas para compreender o estilo), e de um documentário para a NPR (National Public Radio) que posicionava RP Boo entre os artífices do juke. Neste mini-documentário, ao ser perguntado quais os sons que mais o inspiraram, ele sublinha: “All sounds, aaallll sounds… there’s no limitations to your ears…”
Em virtude deste interesse amplo e irrestrito, Legacy se caracteriza por um concepção peculiar de timbre, som e ritmo, contrastando, por exemplo, com a sofisticação rude de Da Trak Genious, assinado por DJ Nate, a última grande pérola do footwork. Legacy é produto do reconhecimento tardio de um precursor, que sugere a reconstituição das condições que serviram de base para a criação do Footwork. Trata-se de história com h minúsculo, isto é, contada sem grandes pretensões de verdade, mas do ponto de vista de quem vivenciou a transição do techno para as ramificações atuais.
Uma das características que distingue Legacy de concorrentes como Rollin’ (DH Rashad), Da Mind of Traxman (Traxman), Ambient EP (DJ Earl), entre outros, é seu trabalho com samplers: os recortes soam mais agressivos e eventualmente dramáticos. As sonoridades não se resumem aos timbres dos patterns habituais, mas incorporam elementos de filmes, comerciais de televisão, sons de games, etc. Se prestam a contar uma história sem fim, em franca relação com o sentido de stasis decorrente do techno. Os exemplos estão por todo o álbum, desde a faixa de encerramento, “Area 72”, que conta com o sampler infame de “Easy Lover” de Phil Collins, até irregularidade de “Havoc Devastation”, que cita “Flash Gordon”, do Queen:
Como um subcapítulo da primeira característica, vale destacar o trabalho com as palavras. Ao invés de funcionarem como elemento rítmico somente, produzem nexos ora irônicos, ora remissivos à cultura do videogame, ao jazz, entre milhares de referências: pedaços avulsos de palavras e frases que formam outras palavras e frases. Da mesma forma, os exemplos estão por todo o disco, mas destaco “Speakers R-4” (“Sounds, that’s what speakers are for… what they do?”, e a resposta vem acrescida de um bumbo pesado: “Bang Bang Bang”) e “Steamidity” (“keep it real” em vozes femininas, “I see the smoke comin’” em uma voz masculina declamada):
Outro destaque é a forma singular com que Space trabalha as inserções da percussão, os beats e os andamentos. Por exemplo, contrastando com as tentativas de Rashad em suavizar os timbres e as síncopes em favor de uma regularidade compatível com o balanço do R&B (por exemplo, em “Rollin’”), uma faixa como “Sentimental” opera justamente em sentido oposto:
Ao invés de garantir a estabilidade dançante utilizando timbres amenos, Space toma a textura de base (vocalises, pianos e “I’m sorrys”) como plataforma para incisivos golpes de tambor em 3/4, um dos toques ligeiramente fora do andamento. Na sequência, a caixa e o hi-hat são incluídos no contratempo, outro bumbo mais grave começa a soar, configurando a polirritmia: o 4/4 grave da base (vocais, pianos); o 3/4 moderato dos tambores; e o 3/4 allegro do hi-hat e a caixa no contratempo e o tambor mais grave. Além desse tipo de procedimento por justaposição, o disco também se vale da montagem acelerada de células rítmicas do Footwork, em referência à aceleração do Guetto House, como em “There U’Go Boy” — que sampleia o “Prelúdio” da trilha sonora de Psicose, composta por Bernard Herrmann — e “Red Hot”:
Neste exato momento, quando dois ou três artistas oriundos da cena juke/footwork de Chicago se destacam — a saber, a dupla Rashad & Spinn e Traxman — uma olhada superficial sobre as produções mais recentes demonstram a gradual acomodação do estilo aos compassos marcados do R&B, do hip hop, do techno, o que vem se revertendo em resultados comercialmente positivos para um estilo tão idiossincrático. Por seu turno, Legacy pode se tornar uma audição maçante e repetitiva para algumas pessoas, mas não pela ausência de ideias. Um fio de tensão sem tréguas perpassa todo o álbum, talvez porque RP Boo esteja fortemente apegado a formas muito particulares de concepção e produção. Formas longamente buriladas, repletas de detalhes inegociáveis, que, em contrapartida, o mantiveram longe da "cena". Seu retorno pode ser decisivo para os próximos passos dos produtores do Footwork — afinal, nada como um passo atrás, um olhar sobre o que foi “legado”, para indicar, ou ao menos sugerir os passos seguintes.
Bernardo Oliveira
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