quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Chinese Cookie Poets/Nicolau Lafetá – Danza Cava (2013; Mansarda Records, Brasil)

























Em Lacuna (2012), primeiro longa metragem do diretor carioca André Lavaquial, há o registro de alguns diálogos entre os membros do grupo carioca Chinese Cookie Poets. Trata-se aparentemente de um momento em que o trio se esforça para encontrar estratégias de composição e arranjo — a bem da verdade, isto eu pude presumir, pois eles conversavam utilizando uma linguagem hermética o suficiente para que algumas frases se fizessem absolutamente incompreensíveis. É possível distinguir cada palavra dessas estranhas conversas, mas o sentido de cada uma delas parece interditado. 

Sobre o que falavam? Provavelmente sobre notas, acordes, timbres, dinâmicas. Será que estão em busca de uma correspondência secreta, forçando a palavra a exprimir-se tanto no plano da comunicação verbal, como na expressão sonora? Restou, enfim, a certeza de que, para além da vocação para o improviso e das habilidades evidentes de cada um dos instrumentistas, o método e os procedimentos de composição e arranjo, constituem o centro nervoso da música do Chinese Cookie Poets. 

Em seus trabalhos anteriores, destacava-se a combinação prodigiosa de improviso livre com a gana tribal e dissonante da no-wave — tendo o DNA de Arto Lindsay como referência —, além de ecos evidentes da combinação de jazz, rock e funk destilado por Miles Davis em On The Corner e em outros discos da fase setenta. Porém, a cada novo trabalho esses elementos são recombinados sob a influência de procedimentos específicos, comportando inclusive contribuições de tendências abstratas, como o noise e o minimalismo. Uma mescla de improvisação livre e temas compostos filtrados por severas edições digitais, no primeiro EP, 2010; Dragonfly Catchers and Yellow Dog, em 2011, registro de uma apresentação na Audio Rebel; Worm Love, de 2012, combinação de improvisação livre e edição criativa a posteriori, resultando nas dinâmicas nervosas de “En La Mano del Payaso” e da suíte “Three Worms”; e no último single, Viva La Raza, composição rigorosa, com baixos teores de improvisação. Em se tratando de Chinese Cookie Poets, sempre há que se perguntar pelo que virá em termos estéticos, técnicos e até mesmo visuais — a julgar pelo clipe prodigioso de “En La Mano del Payaso”.

Gravado em 2011, Danza Cava registra uma sessão com o trumpetista brasiliense Nicolau Lafetá, radicado em Amsterdã. Sob a influência do sopro lírico e preciso de Bill Dixon, Lafetá trouxe um outro temperamento para a sonoridade do Chinese. Abrindo mão de habituais tendências próximas à estridência do punk e da radicalidade do free jazz, o quarteto investiu dessa vez em estruturas concentradas nos baixos volumes, o que favoreceu a composição de ambientes permeados por pausas e silêncios. Como se observa logo nos primeiros minutos, com “Ojos de ceniza”: viradas discretas da bateria pontuam os acordes soltos do baixo e da guitarra, pavimentando o caminho para a melodia melancólica desenvolvida por Lafetá. O diálogo da bateria com o timbre rouco do trumpete abre “Lapetus l’uccello”, até que a linha de baixo se impõe como o guia do andamento. Em crescendo, o quarteto desemboca nos segundos finais em uma investida agressiva em síncopes características do p-funk.

A brevidade da vinheta “Il semi-affetto degli argonauti” tensiona a sequência, conduzindo o ouvinte para a faixa seguinte, “Tiao Yue”, talvez a mais complexa do álbum. Em uma dinâmica de "pergunta e resposta", as intervenções do baixo e da guitarra adquirem intensidade conforme uma certa dialética do improviso: de um lado, os músicos demonstram ter plena consciência de algum método prévio, mas, justamente por terem essa consciência, se permitem produzir pequenas mudanças, fraturas sonoras sobre a textura pré-combinada. “Chang’e III” retoma a pegada nervosa, apostando novamente na conversa entre trumpete e bateria: microfonia, ruídos percussivos do baixo e o trumpete “arranhado”, contribuem para formar um amálgama de timbres. “Passo torvo” encerra o disco de forma silenciosa, com os sons eletrônicos contribuindo para criar um clima de melancolia e desolação.



A capa, assinada pelo pianista e artista plástico Luís Augusto, exibe uma figura soterrada por uma cornucópia de rabiscos negros. “Excesso” talvez seja a qualidade mais evidente na pintura, mas convém observar mais atentamente. O rosto da figura parece propositadamente inexpressivo, como se pouco lhe importasse toda aquela atividade que se desenrola à sua volta. E, no entanto, ele se mantém sério, postura reta, indiferente. Somente a audição do disco pôde atestar se, na música do Chinese, as qualidades abstratas do silêncio poderiam substituir, ainda que provisoriamente, as evidências contundentes do excesso. Contrapondo-se à noção de ritmo e regularidade, a “dança oca” a que se refere o título, remete à geografia acidentada e detalhista das composições, contrária à vivacidade quase brutal dos trabalhos anteriores. Sim, o ambiente de Danza Cava é sombrio, por vezes melancólico. Com Lafetá, Felipe Zenícola no baixo, Renato Godoy na bateria e Marcos Campello nas guitarras, o Chinese mostrou que também é capaz de se expressar através de um alto nível de controle, e, ainda assim, com sua habitual espontaneidade.

Bernardo Oliveira

Nenhum comentário: