Acerca do segundo disco de Lonnie Holley, me referi à metáfora do rio como forma de interpretar os versos elaborados e improvisados pelo artista americano. Este rio metafórico, em referência ao filósofo pré-socrático Heráclito, corre incessantemente e sem interrupções, servindo de imagem didática para que o célebre pensador afirme a realidade enquanto devir, isto é, mudança constante, “movimento”. Retomo a metáfora para abordar o primeiro disco do Dawn of Midi, Dysnomia. Pois enquanto no disco de Holley a metáfora reproduz a noção de que o impulso ao passado pode assegurar o presente (“o rio correu por seu bisavô…”, Holley canta em uma das faixas), em Dysnomia o rio corre desembestado para frente, arrastando aqueles que topam seguir o fluxo.
Já nos primeiros minutos revela-se o estranho enredo: músicos de jazz, munidos de seus instrumentos tradicionais, compõem a partir da emulação e síntese de células rítmicas do techno e demais tendências da eletrônica de pista. A premissa é dura, sufocante e, aparentemente, deixa pouco espaço para a espontaneidade do instrumentista. Aos poucos o trabalho revela uma fluência particular, trilhando seu percurso sobre estruturas repetitivas que se alteram sutilmente, explorando durações e criando articulações rítmicas entre as células.
Formado por Aakaash Israni no baixo, Amino Belyamani no piano e Qasim Naqvi na bateria, o Dawn of Midi vive e ensaia em Nova Iorque. Imigrantes do Marrocos, Paquistão e Índia respectivamente, encontram-se regularmente na parte gentrificada do Brooklyn para realizar um trabalho conceitualmente amarrado, apelidado por uma alcunha estranha: “minimalismo acústico”. Em pouco mais de quarenta e cinco minutos contínuos, o trio transnovaiorquino consegue, com precisão rigorosa, criar uma ambivalência entre repetição e alteração simultâneas, que se não conduz ao mantra, convoca o ouvinte a comprar uma experiência catártica.
Dysnomia, que segundo Hesíodo era filha de Éris, deusa da discórdia, representa a “desordem”. Mas o que teria a desordem a ver com um projeto tão ambiciosamente programado, tão meticulosamente composto e ensaiado como Dysnomia? Caldeamento cultural, mestiçagem, deslocamentos imprevistos: noções comuns no discurso contemporâneo das ciências sociais e, em termos de crítica de arte, de uma certa tendência “culturalista” a cada dia mais comum em na Europa e nos EUA, uma tendências teórica que abriga não a dúvida, mas a experiência. Nesse sentido, a proposta do Dawn of Midi concilia conceito tirânico e fluência expressiva, somada à execução milimetricamente ensaiada que, no entanto, nunca soa “estudada”. E, no fim das contas, pouco importa se a música é “acústica” ou “eletrônica”, pois estamos no terreno da indeterminação, da insegurança. E estamos bem.
Bernardo Oliveira
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