sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

Playing the blues: entrevista com Bill Orcutt























Entre 1992 e 1996, Bill Orcutt foi um dos responsáveis por uma das experiências sonoras mais brutais e niilistas da história da música norte-americana. Ao lado de sua mulher, a baterista Adris Hoyos, e do guitarrista Mark Freehan, Orcutt criou o Harry Pussy. Seus discos eram gravados em baixa fidelidade e saturados de guitarras fuzzy e berros alucinados, trazendo à tona uma linguagem visceral, esgarçando o espaço sonoro através de improvisos de curtíssima ou longa duração. Segundo o músico e produtor norueguês Lasse Marhaug, “Harry Pussy deveria ser obrigatório em todas as escolas de música”. 

Com o encerramento dos trabalhos do Pussy, Orcutt se mudou para São Francisco, retornando a música somente em 2009 e chamando a atenção através do álbum solo A new way to pay old debts. Primeira diferença: não mais a guitarra saturada, mas um antigo e surrado violão Kay com apenas quatro cordas (sem as cordas D e A) e um captador DeArmond. Tocando esses instrumento — que requer afinação constante para não quebrar de vez — Orcutt produziu uma sequência de faixas gravadas de forma espontânea, demonstrando uma estilo rebuscado e particular de tocar o violão: dedilhados fortes, pizzicattos (técnica de puxar as cordas), arpeggios acelerados, harmônicos, arabescos, captados sob uma leve poeira cacofônica. A forma de gravação indica uma qualidade imersiva: o telefone toca, o músico resmunga, passa um carro lá fora…

Se por um lado, é nítida a influência de algumas tradições do violão norte-americano — de bluesmans como Son House e Robert Johnson até experimentadores como John Fahey e Robbie Basho — é notável também a influência de músicos como Glenn Gould, que, contrariando as prerrogativas formais da música erudita, costumava falar durante as gravações. Abaixo, conversamos por email sobre alguns desses assuntos. 

---

Entre 1992 e 1996, você foi responsável por uma das experiências sonoras mais brutais e niilistas da história da música norte-americana. Passados tantos anos, você saberia dizer quais os principais elementos por trás da força do Harry Pussy?
O fato é que o Harry Pussy nunca se propôs a ser "brutal" ou "niilista". Curiosamente começamos como uma banda que pretendia tocar mais silenciosa e lentamente, e nosso primeiro disco é de fato bastante silencioso e lento. O que quer que eventualmente tenha se tornado ocorreu porque foi por onde a nossa curiosidade e interesses nos levou. Provavelmente esse é o elemento-chave: sem ideias preconcebidas, apenas seguindo nossa própria lógica interna. Assim, quando lançávamos algum disco ou fazíamos shows sempre foi a expressão autêntica do que estávamos criando naquele momento.

Um das características centrais do grupo era a liberdade extrema com a qual vocês trabalhavam. Havia no Harry Pussy limites pré-determinados entre composição, gravação e apresentação?
Tínhamos liberdade na concepção, mas não muita liberdade na execução. Tocar era diferente de compor, mas a gravação poderia abranger tudo. Gravávamos tudo e lançávamos o que quer que nos tenha parecido interessante, independente de ser ensaio, show ou algum evento incidental.

Você já fazia experiências com afinação? Nos conte um pouco sobre como você lidava com a guitarra durante esse período.
Desde os anos 80 que eu tocava guitarra com quatro cordas, usando o conjunto de cordas padrão e afinando sem as cordas A e D. Ocasionalmente eu afinava a corda E grave até G. E é isso. Até o momento eu brincava com Adris, minha configuração já tinha sido estabelecida, por isso não houve qualquer experimentação com afinação nesse momento, embora houvesse muita experimentação com a forma de jogar com essas quatro cordas.

Uma certa inclinação dadaísta sempre atravessa os trabalhos do Harry Pussy, mas Let’s Build a Pussy essa tendência chega a um minimalismo radical. Conte-nos um pouco sobre a motivação e o conceito por trás do disco.
Tivemos uma oferta de um selo interessado em remixar uma de nossas faixas. Reuni os materiais para o remix, mas por alguma razão, isso nunca aconteceu. Então decidi fazer por conta própria. Isso foi em 1997, exatamente no período em que a banda estava prestes a acabar. Parecia um gesto apropriado para o nosso último lançamento fazer um disco duplo com a simples dilatação de uma única sílaba da voz de Adris. Agora, esse procedimento seria trivial, mas em 97 foi uma provação, exigindo vários dias e diversos discos rígidos.

O que você fez entre o fim do Harry Pussy e o álbum solo A new way to pay old debts? Ouvi dizer que você trabalhou com filmes, é verdade?
Não. Na verdade, a maior parte do meu trabalho com cinema aconteceu antes. Depois que o Harry Pussy se separou, eu me mudei para San Francisco, comecei uma família e ganhava a vida como engenheiro de software. Por cerca de 10 anos depois do fim da banda, eu quase não toquei na guitarra.


















De repente você reaparece tocando um violão completamente original: dedilhados, pizzicattos, arpeggios acelerados, harmônicos, arabescos, timbres saturados. Quando você começa a desenvolver esse conjunto de ideias em torno do violão?
Em 2008, eu montei uma compilação do Harry Pussy para o selo Load e o ouvir a nossa música me fez ficar interessado em tocar novamente. O violão era a opção mais conveniente porque eu poderia tocar em casa sem perturbar ninguém. Coloquei quatro cordas e comecei a desenvolver uma técnica que funcionaria no violão. Em parte, era uma tradução do que eu costumava fazer com a guitarra elétrica, mas em parte também era algo novo. Eu pratiquei por cerca de um ano antes de começar a gravar de novo.

Como se dá a relação entre composição e improviso no seu trabalho?
Normalmente acho que a improvisação é uma espécie de ponto de partida para a composição ou uma forma de reelaborar uma composição já existente. Provavelmente, só cerca de um terço do que eu faço ao vivo é improvisado, embora, geralmente, os ouvintes pensem que a porcentagem seja muito maior.

Em entrevista recente, você disse: “I’m just a guy who is trying to find his own way to playing the blues.” Conte-nos um pouco sobre a concepção de A new way to pay old debts? Quais as referências e influências que determinaram o resultado sonoro do álbum?
Esse foi o primeiro disco solo que fiz e me preparei escutando um monte de instrumentistas solo, especialmente de jazz, pianistas clássicos, bluesmans, guitarristas de flamenco, o Anthony Braxton de "For Alto", etc. Como sempre fiz parte de um grupo, passei boa parte do tempo tentando entender como tocar sem o apoio de ninguém. Essa é provavelmente a principal coisa sobre A New Way to Pay Old Debts: aprender a tocar sozinho.



Por favor, fale um pouco sobre como você encontrou seu instrumento, um violão Kay com apenas quatro cordas (sem as cordas D e A) e um captador DeArmond.
Eu comprei esse violão Kay quando eu era universitário e tive desde que eu era um adolescente. O catador eu comprei no eBay, porque era o mesmo modelo que Elmore James usava em sua guitarra. Eu aposentei o Kay um par de anos atrás, porque ele estava caindo aos pedaços. Por um tempo eu colecionei violões dessa marca, então ainda tenho vários destes Kay de 1950. Ultimamente tenho viajado com uma acústica Guild um pouco entediaste, um instrumento que posso substituir facilmente se as companhias aéreas o perderem ou quebrá-lo...

Em seus discos solo a ambiência fala alto: um telefone toca, o músico resmunga, passa um carro lá fora… A forma como são gravados indica espontaneidade, imersão no ambiente. Ouvi dizer que há a influência de Glenn Gould. Fale um pouco a respeito da espontaneidade e da presença sonora do entorno em suas gravações.
A New Way foi gravado em nosso velho lugar em uma rua comercial muito barulhenta em São Francisco, em um apartamento de esquina onde escutamos um monte de ruídos da rua. O barulho incidental foi inevitável. O telefone tocando aconteceu acidentalmente mas deixei como um tributo a Derek Bailey, que tem um telefone incidental tocando em seus registros. (Bailey também inclui conversas, o que optei por não fazer). Quanto aos meus murmúrios e vários barulhos de boca, eu os deixei por não saber como removê-los. Há um monte de pianistas que fazem algum tipo de som vocal quando estão tocando, talvez seja incomum para um guitarrista, mas não é tão estranho em geral.

Há em seu último trabalho, A History of Every One, um movimento de “limpeza” dos arpeggios e dos timbres, como se você depurasse os elementos mais ruidosos, ressaltando o discurso musical? Se eu estiver certo, este movimento foi proposital?
A History of Every One foi gravado em minha casa atual, que é muito mais silenciosa do que o apartamento onde gravei A New Way. Também usei uma guitarra diferente, afinada um tom acima, e por isso, provavelmente, obtive um som mais claro e mais limpo. Além disso, não usei catadores ou amplificadores, apenas o som do violão acústico. (Isto é válido inclusive para o LP que veio antes How The Thing Sings). Então é verdade que se trata de uma gravação mais limpa, mas, principalmente, é parte da progressão de um disco para o outro, mais do que uma reflexão sobre seu conteúdo.

Nenhum comentário: