O novo trabalho do grupo Passo Torto é escuro. Brilha de forma intensa, mas se mostra um brilho opaco, que rompe a noite mas faz parte dela. Passo Elétrico é um disco em que o frio que cruza as cidades nesses dias de julho fazem sentido sonoro. Escrevo esse texto por acaso de São Paulo e ao andar pela Avenida Paulista todo o som desses dias se encaixam na cornucópia de riffs, distorções e cordas percussivas que atravessam suas composições. As quedas em buracos, os silêncios, as tempestades, os desencontros dos narradores de cada composição (“eu vim determinado a lhe dizer adeus”) ganha massa sonora e poética que incendeia, taca fogo. Mas, mesmo assim, faz escuro nesse novo passo.
Os prédios dessa cidade-mundo que é o centro do cerco morrem, escarram, têm varizes. A cidade te engole, devora o que você tem. Não há meio termo e, em “O Buraco”, o tom profético sobre nosso tempos de convulsão é certeiro: “te avisei, nada vai parar”. A São Paulo pujante do progresso sem fim ganha o contra-discurso tenso, duro e malicioso da banda. Composta por quatro nomes ativos da atual cena musical paulista, Rodrigo Campos, Romulo Fróes, Kiko Dinucci e Marcelo Cabral se desdobram em diversos projetos solos (Rodrigo e Romulo) e trabalhos paralelos que expandem uma rede intensa de produção. Uma rede que vai do rap de Criolo ao experimentalismo dos MarginalS, incluindo no percurso a pedrada musical do Metá Metá.
É importante notar que o samba, algo central nas carreiras de Rodrigo, Romulo e Kiko, principalmente, tem um lugar discreto porém fundamental na sonoridade tensa do Passo Elétrico. Se nos discos dos três a percussão é elemento fundamental para um novo caminho do velho estilo tradicional brasileiro, aqui são as guitarras, contrabaixos e violões que dão o tom percussivo. Faixas com duas três guitarras, em polifonias de efeitos e riscos, reinventam o instrumento dentro da nossa música recente. Apenas na sensacional “Rárárá” é que temos a escola mais clássica do samba. Mesmo assim, é um samba sinistro, em que a pegada sagaz do cavaco em contraponto à guitarra rascante são amarrados por uma melodia sinuosa e uma história de sexo, morte e gargalhada. Malandragem pura na beira do desbunde cachaceiro e da marofa impregnando o ar. Um samba que nos leva a outra dimensão.
Mas a escuridão do Passo Elétrico é também uma escuridão do segredo, da conversa muda pós-sexo, como em “O símbolo”, diálogo interno do amante sobre o x da questão, parte feminina que nos encara logo de manhã e põe em um plano surreal essa conversa que todos nós já tivemos. Se bato de frente, provoca fadiga. Como o som deles, o símbolo é raivoso, é faminto, é incisivo. São esses pontos escuros de nossa existência que, faixa a faixa, vão constituindo um mosaico de insanidades, de agonias, seguindo uma escola lírica rara entre nós. Não há concessões nem quando se declara amor, como em “Helena”, “A não se que me ame” ou “Isaurinha. São canções que transtornam lugares-comuns do amor no cancioneiro brasileiro. Em “Isaurinha”(que me lembra “Isaura”, composição de Herivelto Martins e Roberto Roberti, gravada por João Gilberto), chega-se a cantar que “tenho vergonha do amor”. Quem tem coragem de afirmar isso nesses tempos? São quatro homens/quatro vozes/quatro narradores que se colocam em um espaço de desconfiança, de putaria, de dissimulação do amor. Caso raro que dá beleza — e desconforto — ao disco.
Já foram muitas as ótimas resenhas sobre Passo Elétrico. Essa aqui é apenas um convite ao show deles que acontecerá no Rio nos dias 28 e 29 de julho, para deleite dos cariocas. As cordas elétricas e acústicas que eles cruzarão no palco da Audio Rebel precisam ser vistas ao vivo, em ação, para que suas sutilezas e seus arranjos minimalistas, complexos e belíssimos sejam confirmados por nossos olhos.
Escolho para fechar esse texto um faixa em especial do disco. É “Passarinho Esquisito”. Subvertendo um tema clássico da MPB, esse passarinho é estuprador. Ele não é o “Sabiá” que me levará de volta do exílio, como a ave que só gorjeia “lá”. Nem será o “Passarim” que quis pousar, não deu, voou. Esse “passarinho esquisito” é um animal transtornado, que tenta se enfiar na vida do narrador da canção, come pelos do nariz, finge que é o outro. Tenta ser irmão, pai, mãe, espírito santo, mas, segundo a frase genial “não é bastante estrangeiro” para tanto. Não ser bastante estrangeiro resume bem o sentimento que surge das minhas audições do Passo Elétrico. Que lugar é esse que a banda se instalou para olhar para todos nós? Que cidades, que pessoas são essas que caem no buraco do mundo para, através do escuro, acharem a luz? Somos todos passarinhos esquisitos, em pleno vôo, sem saber onde iremos parar. Para os tempos atuais, Passo Elétrico é a trilha sonora essencial.
Fred Coelho
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Passo Torto: antes de tudo, trata-se de um modo. Antes de qualquer ruído, um aviso de rota, uma indicação de maneira, um sinal de forma: o caminho aqui não é reto, é irregular. Ao mesmo tempo em que o passo é a unidade e a medida é compartilhada (tradição da canção), a qualificação aponta para um modo desviante. Uma postura crítica a priori, nessa nomeação que narra uma espécie de conceito, de marca de nascença. Passo Torto nasce dessa doce condenação: atuar dentro de um espaço excessivamente marcado e dentro dele seguir um caminho próprio. Em Passo Elétrico, se não há a aguda contradição do disco anterior entre uma estética sonora do “bom gosto acústico” e uma abordagem violenta desse material, assim como a constituição de seu imaginário poético, há agora um aprofundamento na criação de um espaço absolutamente próprio e novo, gravando à força seu nome na acidentada calçada da canção brasileira.
Essa “autoconsciência” não ameaça a construção de um universo estanque na medida em que cada canção exala a energia necessária para tal, mas por dentro. O caminho não é, no corpo das canções, da teoria, ou melhor, do exterior, caso fossem canções limpas, estáveis, que são envenenadas por ruídos, distorções e dissonâncias. Não. Talvez seja justamente o contrário: o coração das faixas é impuro. Pode ser um grito, um respiro, uma quase sirene, uma conversa de guitarra. Mesmo a voz sendo o único elemento que parece conseguir se safar da torrente sonora que arrasta e debate as cordas, é difícil localizar-lhes um centro (apesar da recorrente circularidade): o refrão de "Isaurinha", o “ê” de "Tempestade", os nomes próprios. São canções que constituem uma massa. Matéria essa que cultiva os contornos e os estende, investigando-lhe os limites. Não raro há uma espécie de sensação de combate (marcadamente nos duelos das cordas em estéreo). Cada timbre ameaça. A morte toma várias formas: sumir, adeus, cair, definhar, naufragar, entre muitas outras. E o som é também todo esse flerte com um desparecimento, por subtração (a maior, da percussão, abrindo uma espécie de “deficiência” fundadora e também libertadora) e excesso ou confusão (no final de "Banquete", ou mesmo de "Helena"). O flerte é com esse ponto onde a forma se desfaz: seja no universo poético atipicamente sólido para um grupo de compositores (dificilmente se adivinha de quem é a letra ou música) ou nos arranjos e (des)organização de sons.
"Tempestade" começa: “Quem ouve essa voz/ diante dessa voz/ parada entre nós/ reconhece/ o som/ Permanece/ som/afogado/antes de virar/felicidade/prende todo ar”. Esse recado direto que dá início a que me parece a faixa central de Passo Elétrico, revela uma segurança incomum que marca todo o trabalho, no sentido de um saber sobre onde se está pisando (ou caindo) e que efeitos isso tem. Essa manobra que poderia cair facilmente num pedantismo, na verdade revela uma postura aberta com a qual esse conjunto de canções nos encara. Por mais que a opacidade esteja sempre rondando, que os anteparos se coloquem nas ligações entre os materiais e os personagens (explorando os limites de um reconhecimento de um campo comum), não há segredos, não há truques. Se não abundam adjetivos ou digressões sonoras é porque o universo aqui é claramente da ordem do concreto. Cada elemento significa ele mesmo.
Nos momentos de representação ou mesmo de “encenação”, onde letra e música convergem numa imagem única (a explosão de "Banquete", o tic tac de "O Buraco") essa inventividade da paisagem sonora torna essa passagem de operação de sentido fluida. A máquina não para pra fazer uma imagem. Cada nascimento de um movimento novo nas canções, amparadas pelo notável trabalho de sustentação e propulsão de Marcelo Cabral, parece vir dessa magma, desse borbulhar de cimento ainda quente, ainda em movimento, como na segunda parte de "Passarinho Esquisito" e nas cordas que dividem "A Não ser que Ame" no meio. O peso conceitual não se transforma em arbitrariedade afinal.
Nos momentos de representação ou mesmo de “encenação”, onde letra e música convergem numa imagem única (a explosão de "Banquete", o tic tac de "O Buraco") essa inventividade da paisagem sonora torna essa passagem de operação de sentido fluida. A máquina não para pra fazer uma imagem. Cada nascimento de um movimento novo nas canções, amparadas pelo notável trabalho de sustentação e propulsão de Marcelo Cabral, parece vir dessa magma, desse borbulhar de cimento ainda quente, ainda em movimento, como na segunda parte de "Passarinho Esquisito" e nas cordas que dividem "A Não ser que Ame" no meio. O peso conceitual não se transforma em arbitrariedade afinal.
Dois lugares inescapáveis são traçados em Passo Elétrico. Primeiro: a circularidade, a impressão de uma dificuldade de progressão. O tempo é então de suspensão, de rodear um centro, de variar sobre uma área específica, e à cada volta, adicionar ou subtrair. A linha evolutiva, mesmo com as eventuais variações e divisões clássicas de A e B, parte maior, parte menor, a sensação é sempre de permanência (não por acaso o signo da sirene me é sugerido diversas vezes). Um desvio no tempo afinal, que dá solidez a esse universo igualmente coerente e fugidio, violento e suave. Tudo se impõe com a mesma força de infiltração, como quando desaparece . Essa "deslocalização" hipnótica da forma circular, essa insistência gera isso.
Em segundo lugar, o ausência de percussão. Por todo o disco, o incômodo permanece, pulsa o tempo todo uma falta, na medida em que o ritmo está ali, ensejado, os pulsos aceleram, mas o ponto do passo, a marca, é uma ausência, um corte mesmo. De alguma maneira esse fantasma nos acompanha durante toda a audição. É como que a forma dessa figura de morte tanto perseguida, como que um rock que perdeu a perna, manco e desfalecido, mas obstinado. Esse vazio abre espaço pro protagonismo das cordas, e pra sua função rítmica. Mas é algo que nunca se naturaliza. Aliás, se o primeiro disco dava entender que o horizonte era dessa ordem, o possível equívoco se soterra completamente no Elétrico. O domínio aqui é o do artifício, do inorgânico, que por final se mistura, se dilui, e constitui essa nova ordem, essa matéria rara que constitui esse capítulo decisivo na música brasileira hoje, esse doce impasse.
Em segundo lugar, o ausência de percussão. Por todo o disco, o incômodo permanece, pulsa o tempo todo uma falta, na medida em que o ritmo está ali, ensejado, os pulsos aceleram, mas o ponto do passo, a marca, é uma ausência, um corte mesmo. De alguma maneira esse fantasma nos acompanha durante toda a audição. É como que a forma dessa figura de morte tanto perseguida, como que um rock que perdeu a perna, manco e desfalecido, mas obstinado. Esse vazio abre espaço pro protagonismo das cordas, e pra sua função rítmica. Mas é algo que nunca se naturaliza. Aliás, se o primeiro disco dava entender que o horizonte era dessa ordem, o possível equívoco se soterra completamente no Elétrico. O domínio aqui é o do artifício, do inorgânico, que por final se mistura, se dilui, e constitui essa nova ordem, essa matéria rara que constitui esse capítulo decisivo na música brasileira hoje, esse doce impasse.
Se a “canção morreu” é precisa habitar o mundo dos mortos. E nesse mundo, Kiko Dinucci, Marcelo Cabral, Rodrigo Campos e Romulo Fróes, parecem completamente à vontade. Ficamos então à espera de sua volta de lá. Ansiosos.
Juliano Gomes
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