Crítico de música traça um paralelo histórico das últimas mudanças ocorridas na música brasileira. Ele destaca alguns dos motivos e personagens que vêm ajudando a definir o cenário atual
Em "Incidente em Antares", Érico Veríssimo descreve a saga de duas famílias que disputam o poder no Sul do Brasil: dois lados de uma mesma moeda. Trata-se de um dos romances mais sarcásticos da literatura brasileira, que denuncia, entre outras vicissitudes, a tendência nacional em reduzir a pluralidade de conflitos a algumas correntes predominantes, geralmente opostas. De forma semelhante, faz parte do ambiente intelectual brasileiro o hábito de perceber o mundo através da força embriagante das oposições simétricas. Esta tendência migrou para a República, e perdura nos dias de hoje, ainda que mal das pernas. Os desmentidos cotidianos evidenciam que as contradições brasileiras são mais intrincadas do que os "fla-flus" a que estamos habituados, principalmente no plano da cultura.
Foi assim que, durante o Festival da Canção de 1967, criou-se uma divergência entre o grupo tropicalista e os artistas que catalisavam o interesse das correntes nacionalistas de esquerda, simpatizantes do legado da Bossa Nova e do Centro de Cultura Popular da UNE. De um lado, Caetano, Gil, Os Mutantes; do outro, Sérgio Ricardo, Edu Lobo e Chico Buarque.
O filme "Uma Noite em 67" pôs lente de aumento sobre esse evento, trazendo à tona uma perspectiva mais heterodoxa. Ao ser vaiado, o cantor Sérgio Ricardo quebrou seu violão à moda de Pete Townshend, o roqueiro Roberto Carlos cantou um samba ("Maria, Carnaval e Cinzas") e mesmo o jornalista Sérgio Cabral, jurado do concurso e notório defensor das "glórias nacionais", rendeu-se aos encantos da guitarra elétrica…
Contudo, no calor do momento — atiçada pela intervenção da TV Tupi e da conturbada situação política da época -, a expressão "chicolatria" foi criada, se não me engano, pelo poeta Augusto de Campos. É evidente que não se trata de uma crítica à obra de Chico Buarque, mas à sua cooptação pela xenofobia "avant la lettre" que impregnava a mentalidade de setores da esquerda brasileira.
A "chicolatria" não só indicava o caráter do ambiente cultural que elegeu Chico Buarque de Hollanda como o oponente adequado às incursões tropicalistas, como também ressoava um prolongamento do conservadorismo nacionalista, outrora alinhado a correntes políticas em nada progressistas - o Integralismo, por exemplo.
MPB
As décadas seguintes, porém, mostraram que entre Chico Buarque e os tropicalistas não havia exatamente uma distância ideológica. Chico e Caetano gravaram discos e programas de TV, declararam admiração mútua, e seus álbuns, diversos na forma e no conteúdo, foram abrigados sob um rótulo vago, mas apaziguador e comercialmente adequado: MPB.
Há muito que se observa no ambiente intelectual brasileiro, particularmente vinculado aos estudos culturais, a necessidade de um maior enfrentamento das questões que surgem com a velocidade das inovações técnicas e científicas. Ficamos confortavelmente ancorados em um território de temas consolidados, deixando de lado o profundo caráter ideológico de siglas como a MPB e a dinâmica da atualidade.
Não há dúvidas de que os acontecimentos ocorridos durante a década de 60, ainda hoje fornecem as balizas para quem deseja pensar a música no Brasil - quando se fala, por exemplo, em "samba de raiz" em oposição ao "samba paulista", supostamente mais comercial. Algumas vezes, tenho a sensação de que aquela noite de 67 ainda não acabou, mas, ao mesmo tempo, ela parece não só distante, como também desproporcional em relação à música que é composta, gravada, produzida e veiculada hoje no Brasil.
Contexto atual
A última década viu surgir uma série de procedimentos e condições de produção musical, alimentadas pelo vertiginoso desenvolvimento dos programas de gravação e edição digital. Pois este aparato técnico ocasionou um período extremamente fértil e controverso da produção musical brasileira, cujo desenrolar aponta para reconfiguração das relações de poder e da paisagem estética que vigoraram no País até o fim do século passado.
O surgimento dos estúdios caseiros (home studios) permitiu que muitos artistas gravassem seus trabalhos sem, necessariamente, assinar contrato com uma gravadora. Nordestinos e sulistas não são obrigados a migrar para o Sudeste, como nas décadas passadas, mas gravam em seu próprio território, utilizando-se das referências locais.
Pouco depois, veio a internet fechar o ciclo virtuoso: além de produzir, o artista ainda pode negociar seu trabalho diretamente com o público. Parece evidente que esta safra de músicos se desenvolve em uma época tomada pela influência da internet, pela acessibilidade dos equipamentos digitais, e por trocas culturais antes inviabilizadas pela presença massacrante da indústria fonográfica.
Esta estrutura independente, aparentemente idealizada, pode ser verificada não somente no grande número de selos independentes e artistas que administram o próprio trabalho, mas também no leque "geomusical" que se abriu nos últimos dez anos. A música brasileira atual é fragmentária e não comporta as velhas oposições da chamada MPB. Ela ainda é território de conflitos, mas localizados de forma mais democrática e, portanto, mais complexa.
Produções
Surgiram gêneros populares, marcadamente híbridos, como o tecnobrega de Gaby Amarantos e o funk "tamborzão" de MC Catra. Manifestações antes circunscritas a seu local de origem, passaram a aparecer no âmbito nacional, representados pela guitarrada paraense dos Mestres da Guitarrada, o carimbó do saudoso Mestre Verequete e o Jongo da Serrinha, no Rio de Janeiro. Digna de nota a atuação do Circuito Fora do Eixo, rede de trabalho que nasceu da confluência de produtores das cidades de Cuiabá, Rio Branco, Uberlândia e Londrina, cujo maior representante é a banda de rock instrumental cuiabana Macaco Bong.
Como consequência da profusão de fontes sonoras presentes na internet, advindas da Europa, Ásia, América Latina e, sobretudo, da África, não é incomum escutarmos combinações entre o afrobeat nigeriano e o maracatu de pernambuco - como no caso do Nação Zumbi. Ou mesmo uma releitura dos toques de candomblé, com o sotaque eletrônico do baiano Carlinhos Brown e seu álbum Candombless. Ou ainda o avant-rock do paraibano Burro Morto, responsável pelo excelente "Baptista Virou Máquina".
E mesmo no Sudeste, surgiram artistas, grupos e coletivos apresentando propostas diversificadas. Entre eles, Romulo Fróes, os coletivos Hurtmold e Instituto, os rappers independentes como Quinto Andar, Criolo e Emicida, o paulistano Metá Metá e o carioca Do Amor. Note-se que essa geração não carece dos habituais conflitos com a geração anterior, como ocorreu com o "BRock" dos anos 80. Pelo contrário, nomes como Chico Buarque e Caetano permanecem plenamente compatíveis com as propostas estéticas da atualidade.
Pode-se criar objeções quanto à sua amplitude e potencial emancipatório, mas não há como negar que está em curso um processo de descentralização criativa na geopolítica da produção musical brasileira. O eixo produtivo se deslocou do sudeste para privilegiar outros mercados e aportes culturais, configurando o que pode ser chamado de período "pós-industrial" da música brasileira.
Bernardo Oliveira
Em "Incidente em Antares", Érico Veríssimo descreve a saga de duas famílias que disputam o poder no Sul do Brasil: dois lados de uma mesma moeda. Trata-se de um dos romances mais sarcásticos da literatura brasileira, que denuncia, entre outras vicissitudes, a tendência nacional em reduzir a pluralidade de conflitos a algumas correntes predominantes, geralmente opostas. De forma semelhante, faz parte do ambiente intelectual brasileiro o hábito de perceber o mundo através da força embriagante das oposições simétricas. Esta tendência migrou para a República, e perdura nos dias de hoje, ainda que mal das pernas. Os desmentidos cotidianos evidenciam que as contradições brasileiras são mais intrincadas do que os "fla-flus" a que estamos habituados, principalmente no plano da cultura.
Foi assim que, durante o Festival da Canção de 1967, criou-se uma divergência entre o grupo tropicalista e os artistas que catalisavam o interesse das correntes nacionalistas de esquerda, simpatizantes do legado da Bossa Nova e do Centro de Cultura Popular da UNE. De um lado, Caetano, Gil, Os Mutantes; do outro, Sérgio Ricardo, Edu Lobo e Chico Buarque.
O filme "Uma Noite em 67" pôs lente de aumento sobre esse evento, trazendo à tona uma perspectiva mais heterodoxa. Ao ser vaiado, o cantor Sérgio Ricardo quebrou seu violão à moda de Pete Townshend, o roqueiro Roberto Carlos cantou um samba ("Maria, Carnaval e Cinzas") e mesmo o jornalista Sérgio Cabral, jurado do concurso e notório defensor das "glórias nacionais", rendeu-se aos encantos da guitarra elétrica…
Contudo, no calor do momento — atiçada pela intervenção da TV Tupi e da conturbada situação política da época -, a expressão "chicolatria" foi criada, se não me engano, pelo poeta Augusto de Campos. É evidente que não se trata de uma crítica à obra de Chico Buarque, mas à sua cooptação pela xenofobia "avant la lettre" que impregnava a mentalidade de setores da esquerda brasileira.
A "chicolatria" não só indicava o caráter do ambiente cultural que elegeu Chico Buarque de Hollanda como o oponente adequado às incursões tropicalistas, como também ressoava um prolongamento do conservadorismo nacionalista, outrora alinhado a correntes políticas em nada progressistas - o Integralismo, por exemplo.
MPB
As décadas seguintes, porém, mostraram que entre Chico Buarque e os tropicalistas não havia exatamente uma distância ideológica. Chico e Caetano gravaram discos e programas de TV, declararam admiração mútua, e seus álbuns, diversos na forma e no conteúdo, foram abrigados sob um rótulo vago, mas apaziguador e comercialmente adequado: MPB.
Há muito que se observa no ambiente intelectual brasileiro, particularmente vinculado aos estudos culturais, a necessidade de um maior enfrentamento das questões que surgem com a velocidade das inovações técnicas e científicas. Ficamos confortavelmente ancorados em um território de temas consolidados, deixando de lado o profundo caráter ideológico de siglas como a MPB e a dinâmica da atualidade.
Não há dúvidas de que os acontecimentos ocorridos durante a década de 60, ainda hoje fornecem as balizas para quem deseja pensar a música no Brasil - quando se fala, por exemplo, em "samba de raiz" em oposição ao "samba paulista", supostamente mais comercial. Algumas vezes, tenho a sensação de que aquela noite de 67 ainda não acabou, mas, ao mesmo tempo, ela parece não só distante, como também desproporcional em relação à música que é composta, gravada, produzida e veiculada hoje no Brasil.
Contexto atual
A última década viu surgir uma série de procedimentos e condições de produção musical, alimentadas pelo vertiginoso desenvolvimento dos programas de gravação e edição digital. Pois este aparato técnico ocasionou um período extremamente fértil e controverso da produção musical brasileira, cujo desenrolar aponta para reconfiguração das relações de poder e da paisagem estética que vigoraram no País até o fim do século passado.
O surgimento dos estúdios caseiros (home studios) permitiu que muitos artistas gravassem seus trabalhos sem, necessariamente, assinar contrato com uma gravadora. Nordestinos e sulistas não são obrigados a migrar para o Sudeste, como nas décadas passadas, mas gravam em seu próprio território, utilizando-se das referências locais.
Pouco depois, veio a internet fechar o ciclo virtuoso: além de produzir, o artista ainda pode negociar seu trabalho diretamente com o público. Parece evidente que esta safra de músicos se desenvolve em uma época tomada pela influência da internet, pela acessibilidade dos equipamentos digitais, e por trocas culturais antes inviabilizadas pela presença massacrante da indústria fonográfica.
Esta estrutura independente, aparentemente idealizada, pode ser verificada não somente no grande número de selos independentes e artistas que administram o próprio trabalho, mas também no leque "geomusical" que se abriu nos últimos dez anos. A música brasileira atual é fragmentária e não comporta as velhas oposições da chamada MPB. Ela ainda é território de conflitos, mas localizados de forma mais democrática e, portanto, mais complexa.
Produções
Surgiram gêneros populares, marcadamente híbridos, como o tecnobrega de Gaby Amarantos e o funk "tamborzão" de MC Catra. Manifestações antes circunscritas a seu local de origem, passaram a aparecer no âmbito nacional, representados pela guitarrada paraense dos Mestres da Guitarrada, o carimbó do saudoso Mestre Verequete e o Jongo da Serrinha, no Rio de Janeiro. Digna de nota a atuação do Circuito Fora do Eixo, rede de trabalho que nasceu da confluência de produtores das cidades de Cuiabá, Rio Branco, Uberlândia e Londrina, cujo maior representante é a banda de rock instrumental cuiabana Macaco Bong.
Como consequência da profusão de fontes sonoras presentes na internet, advindas da Europa, Ásia, América Latina e, sobretudo, da África, não é incomum escutarmos combinações entre o afrobeat nigeriano e o maracatu de pernambuco - como no caso do Nação Zumbi. Ou mesmo uma releitura dos toques de candomblé, com o sotaque eletrônico do baiano Carlinhos Brown e seu álbum Candombless. Ou ainda o avant-rock do paraibano Burro Morto, responsável pelo excelente "Baptista Virou Máquina".
E mesmo no Sudeste, surgiram artistas, grupos e coletivos apresentando propostas diversificadas. Entre eles, Romulo Fróes, os coletivos Hurtmold e Instituto, os rappers independentes como Quinto Andar, Criolo e Emicida, o paulistano Metá Metá e o carioca Do Amor. Note-se que essa geração não carece dos habituais conflitos com a geração anterior, como ocorreu com o "BRock" dos anos 80. Pelo contrário, nomes como Chico Buarque e Caetano permanecem plenamente compatíveis com as propostas estéticas da atualidade.
Pode-se criar objeções quanto à sua amplitude e potencial emancipatório, mas não há como negar que está em curso um processo de descentralização criativa na geopolítica da produção musical brasileira. O eixo produtivo se deslocou do sudeste para privilegiar outros mercados e aportes culturais, configurando o que pode ser chamado de período "pós-industrial" da música brasileira.
Bernardo Oliveira
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