Duas realidades no atual estágio do capitalismo ficam a cada dia mais evidentes. Primeiro, a substituição da linguagem do marketing pela linguagem do design, como a principal depositária das estratégias de comunicação vinculadas à reprodução do capital. Não se concebe mais a relação entre produção e consumo como um fator relativo à libido direcionada, “consumista”, mas à própria libido em si. Assim, o ato de consumir não se resume à mera satisfação de vontades pontuais, mas refere-se à construção de uma identidade clara e distinta, ainda que eventualmente ilusória.[1]
Igualitariamente distribuída entre os indivíduos abstratos que o marketing, assim como a filosofia moderna, se ocuparam em consolidar, a inclinação desenfreada ao consumo passou a se amparar não em necessidades gerais, mas em um território estilhaçado e fragmentário, cujo imaginário refletiria escolhas e processos muito diferentes entre si. Assim, o fetiche da “auto-imagem” se apresentou como uma versão categórica do fetiche da mercadoria.
O efeito imediato deste deslocamento é o gap entre a linguagem universalizante do capital e a construção de particularidades pontuais. Advoga-se em favor de seu próprio raio cultural – costumes, hábitos, gostos, moral, supostamente quantificáveis – lançando mão de uma linguagem capaz somente de expressar-se através de “universais”. Os exemplos mais graves podem ser elencados a título de exemplo: "justiça", "consciência", "sexo". Francamente, quem endossaria hoje uma compreensão unívoca e universal destes termos, a não ser pela mais inconfessável inclinação etnocêntrica?
Por conseguinte, e este é o segundo fator, não interessa mais valorizar a mera universalidade. Antes, é preciso fazer jus a este processo de autoreificação localizada, o que leva o foco do capitalismo não para os consumidores universais, que figuram nas “pesquisas de mercado”, mas para os particularismos de cada tribo, de cada povo, território, enfim, de cada “cultura”.
Enquanto a fragmentação dos mercados serviu aos propósitos da grande indústria, ela se manteve como uma contingência do próprio mercado, na pior das hipóteses, um acidente de percurso. Mas agora, começa a lhe trazer problemas, pois tanto a aceleração da comunicação, como a crise financeira dos grandes centros, ocasionam o fortalecimento de outros centros, costumes, rituais, imagens, palavras e sons. Sua hegemonia não perdeu a validade, mas apresenta claros sinais de desgaste.
Como esta perspectiva pode introduzir uma série de contrasensos no âmago de uma geopolítica instável, trataram de domesticar o assunto. Assim, no início da década passada, vimos emergir o discurso multiculturalista, sob a forma de políticas públicas nos chamados países de primeiro mundo. Um multiculturalismo falso, porém investido de propósitos muito claros: tratava-se de uma última e vã tentativa de apaziguar os conflitos sócio-raciais, nivelando as expectativas em prol de uma “nova ordem mundial”.
Hoje, com a democratização radical da informação, contraditoriamente a “cultura” se tornou o último bastião entre os grupos empresariais hegemônicos, mas também em meio a cultivadas elites intelectuais europeias e americanas. Através de argumentos “culturais”, e não mais financeiros ou morais (“tu deves…”), empresários, políticos, jornalistas, pensadores e cientistas, defendem a restituição, a qualquer custo, do patrimônio cultural e financeiro que a internet solapou.
Bernardo Oliveira
[1] Como na perspectiva ordenadora do jornalista e designer David McCandless, que trabalha com os chamados Dataviz, gráficos multicoloridos nos quais cada cor exprime o resultado de pesquisas e estatísticas. Através desses “mapas”, McCandless tem por objetivo “retirar o véu de algumas conexões que estavam encobertas pelo excesso de informação que às vezes não conseguimos interpretar”, e completa: “mapas nos ajudam a achar caminhos quando estamos perdidos, (..) como um guia que permite navegar através dele. Você acaba engajando as pessoas através de um fascínio visual. E isso é lindo – e muito poderoso”. Assim, o jornalista suprime os conflitos e as nuances do jogo político, para favorecer a produção de um desenho informacional redutor, achatando a realidade complexa das coisas, em favor de maior compreensão. Cf.: http://blogs.estadao.com.br/link/informacao-conceito-desenho/
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