Retornar ao passado é sempre um gesto presente. Valores como “ruptura”, as virtudes do falso, dos clichês, dos múltiplos diálogos no âmago do cosmos urbano, levaram os artistas a se posicionarem de muitas formas sobre a cultura que lhes é legada. Entretanto, não basta limitar a análise às inclinações nostálgicas, pois nas mãos do roqueiro que ama as sonoridades dos anos 60, o amplificador valvulado será apenas um amplificador valvulado, e não uma garantia de conexão, reconstituição, “revivência”.
O apego “antiquário” pela história — cujo exemplo mais evidente é o último álbum do Daft Punk — configura-se como uma tendência perceptível desde que existe indústria cultural e além, mas que se desfaz em contato com a experiência criativa propriamente dita. É possível, assim, detectar níveis de singularidade no que diz respeito a uma aproximação com a matéria do passado: se por um lado ela nos parece incontornável, por outro é possível distinguir temas e intenções.
É o caso de se avaliar The 20/20 Experience, último trabalho de Justin Timberlake, nesses termos? Penso que sim, e mais: atribuindo-lhe algumas características claramente posicionadas entre a inovação e a conservação. Construindo seu pop futurista turbinado pelos tratamentos preciosos da black music de Timbaland, Timberlake condensou no mesmo caldeirão o pré-R&B do New Edition, algo das temátics caras a seu passado boy band e, acima de todos, Michael Jackson. De Michael, Timberlake toma emprestadas as formações vocais sinuosas, lapidadas a partir do legado do spirituals norte-americano; das boy bands, o universo romântico juvenil esfacelado pelas experiências amorosas da maturidade. Mas com uma concepção de arranjo e instrumentação que leva esse legado adiante.
A começar pela construção das faixas, que se reflete na duração: cinco delas ocupam os primeiros trinta e cinco dos oitenta minutos de The 20/20 Experience. Pela ordem: “Pusher Love Girl”, “Suit & Tie”, “Don’t Hold The Wall”, “Strawberry Bubble Gum” e “Tunnel Vision”. Que não se engane o leitor, ao observar que os temas pueris destas canções lembram o passado boy band de seu autor. Pois estamos diante de cinco exemplares dignos de figurarem entre o que há de mais interessante, criativo e renovador do legado soul/R&B pós-Michael. Cada uma dessas faixas foi organizada por blocos ora intercalados, ora justapostos, resultando em uma espécie de serialismo pop que, sim, já fora aplicado por uma pá de autores, do Cluster ao Animal Collective, mas que no contexto R&B adquire outras proporções.
A orquestra do veterano Benjamin Wright (James Brown e Otis Redding contaram com seus arranjos) introduz uma escala ascendente, prenunciando a estrutura doo woop de “Pusher Love Girl”: o sintetizador descreve a melodia, Timberlake dá a largada. A estrutura do ritmo conta com poucos elementos, apenas uma marcação R&B; o coral é suave como nos discos de Michael; no refrão, o falsete adocicado de Timberlake contrasta com a forma precisa do arranjo. Ouvimos uma variação da estrofe após o refrão, que é retomada, desta vez com o acréscmo da orquestra. Timberlake eleva o tom e pede: “one more time!” E então surge a primeira reviravolta: silêncio, a orquestra pontua novamente com outra escala ascendente e uma sequência rítmica eletrônica desloca a sensualidade do andamento para uma base fria e robótica. Tudo na faixa se torna repetitivo, automático, desde as vozes de Timberlake e do coro até a batida, os samplers, o grave do baixo. O panorama da canção muda radicalmente por um processo de intercalação das bases e timbres. Timberlake esquece a melodia e interpreta um rap mecânico, quase desprovido de emoção.
O mesmo procedimento ocorre nas quatro faixas seguintes, particularmente em “Suit & Tie”, que se inicia com um coro de metais comprimidos e base eletrônica lentíssima. Timberlake canta o refrão de forma igualmente lenta. Olha o breque! O soul/R&B oitentista irrompe, acelerado. Até o presente momento o disco traz um cantor maduro, apto a explorar com inteligência suas próprias fragilidades. O refrão é pop, grudento; os detalhes de arranjo se multiplicam com a elegência habitual (um naipe de metais, as inserções do coro), até que a faixa retorna à base lenta do início. Jay Z entra, faz seu rap com precisão e reinvidica “green card for the Cuban links”. Timberlake retoma o refrão sobre esta base lenta, fazendo com que, novamente, a intenção inicial da canção seja subvertida a partir da reutilização de elementos oriundos da própria faixa. As longas durações, assim, se justificam por este procedimentos de deslocamento e reinterpretação.
Combinando a típica emoção romântica do R&B com a tonalidade fria e distópica dos arranjos sequenciados, Timberlake obteve um equilíbrio peculiar na seara da black music. E “Don’t Hold The Wall” me parece o momento mais brilhante dessa empreitada, talvez porque não se oriente de forma tão evidente no aspecto emocional, típico do R&B. O ritmo inspirado na tabla que MIA introduziu nos EUA e Diplo consolidou, é reinterpretado com timbres mais discretos. Uma voz sequenciada avisa: “Dance, don’t hold the wall”. E, novamente, a reviravolta: miami bass digital sequenciado corre em paralelo com as inserções de orquestra, samplers e demais miudezas. O mesmo procedimento na faixa seguinte, “Strawberry Bubblegum”, que conta com um vocal grave que remete às canções de Barry White. O que pode parecer óbvio e simplório na melodia se desdobra nos detalhes do arranjo, até que a faixa se torna algo parecido com os sambas-latinos de Stevie Wonder. Mais uma vez, o efeito obtido é de se chamar a atenção.
O leitor há de se perguntar: o disco tem uma hora e vinte, doze faixas, e o crítico aborda apenas as cinco primeiras? Sim e não. Sim, porque julgo que o melhor do disco está na coragem de Justin ao apostar em procedimentos e tendências estranhas aos códigos vigentes do R&B. E “não” porque o restante do disco é igualmente arrojado, embora nem sempre siga os mesmos parâmetros de produção. Dos momentos menos interessantes, as baladas como “That Girl”, “Spaceship Coupe” e “Mirrors” figuram ao lado de releituras fortes de tendências presentes na carreira de Michael — basta escutar “Let The Groove Get In”, com samplers do funk de Burkina Faso, para sacar a o que me refiro —, e de outras duas baladas bastante interessantes: a silenciosa “Blue Ocean Floor” e “Dress On”, que segue em parte o serialismo pop das primeiras faixas. O violão suingado confere um aspecto latino estranho a “Body Count”, faixa bônus na versão digital.
Em suma: revisitar o consolidado, lançar-se sobre um passado distante, deixar-se tomar por um sentimento nostálgico em relação àquilo que não vivenciamos: afetos que, supõe-se, experimenta-se sempre de forma análoga e correspondente, mas que por obra da imaginação, acaba resultando em descontrole e imprevisibilidade. Nas mãos da dupla Timberlake/Timbaland , este passado é como que desfeito em favor, não de uma reabilitação, mas da renovação pelo procedimento. Dessa forma, os procedimentos de arranjo e concepção constituem o grande trunfo de The 20/20 Experience.
Bernardo Oliveira
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