Contribuição inestimável para uma conversa sobre cinema e ideologia, a troca de mensagens entre Manoel de Oliveira e o historiador Luís Felipe de Alencastro é o tipo de diálogo onde a polidez e a admiração mútua não interditam a rispidez dos argumentos e o aprofundamento dos descompassos evidentes entre a pena dos vencidos e a dos vencedores, entre o discurso triunfalista pós-colonial e a raiva justa e represada dos colonizados. Alencastro se vê forçado a lembrar ao "prezado mestre" o passivo colonial e toda violência que este fez alastrar pela África e a América lusitanas. Lembra ainda o entusiasmo com que Vieira, às voltas com a empresa jesuítica em São Luís do Maranhão, defendia a ideia de que a escravidão dos africanos devia servir de garantia à liberdade dos índios. Oliveira responde de forma obscura, em defesa do "humanismo" do padre, filósofo e escritor português: "O que diz o Padre Vieira nem sempre é aquilo que ele próprio desejaria."
A tensão nunca explode, mas está ali, clara e cristalina, impondo ao olhar descolonizado o peso de uma argumentação: evitar ao máximo a defesa dos escravocratas, mesmo que, a contrapelo, estejam as colônias de pé e em condições de tornarem-se nações, como observa um dos soldados mais conservadores durante o filme.
Diante das objeções de Alencastro, Oliveira, em sua resposta, assume, para nossa surpresa, toda a argumentação canhestra do racismo histórico pós-colonial: de que não seriam somente os portugueses e seus financiadores majoritários, os norte-americanos (cf. G. Horne, "O sul mais distante") os responsáveis pela empresa colonial e, por conseguinte, pela escravidão, mas também os próprios africanos, as "tribos" (SIC) mais fortes escravizando as mais fracas "para as venderem aos brancos, aos europeus holandeses, ingleses, italianos, espanhóis, franceses, eu sei lá..."
Alencastro: "Sou um fã de sua obra cinematográfica. Depois de ver o seu filme "Francisca", que me encantou, consegui entender o miguelismo, coisa estranha a nós outros da ex-América portuguesa, engendrados por uma cultura pós-escravista. Cultura que jamais respeitou quem trabalha aterra e, por isso mesmo, é incapaz de compreender a mistura de conservadorismo e fidelidade unindo proprietários e camponeses do Minho oitocentista — lugar onde rolou o miguelismo e se passa o filme — em torno de D. Miguel contra nosso D. Pedro 1º, o vosso D. Pedro 4º.
Anos mais tarde, assisti a "Non ou a Vã Glória de Mandar", sobre o colonialismo português. Ai, devo confessar que fiquei intrigado. Seu filme, que evoca Alcácer-Quibir (1578) e retrata a guerra recente nas ex-colônias africanas de Portugal (1965-1974), fazendo um balanço da presença portuguesa na África, continha algo bizarro: os soldados portugueses cruzando o sertão angolano ou moçambicano dos anos 1970 pareciam os soldados franceses atravessando um "bled" da Argélia dos anos 1960. Semelhança indevida, pois, como se sabe, a presença portuguesa antecedeu de três séculos e meio a presença francesa — e européia em geral — na África. Durante esse tempo todo, a empreitada principal dos portugueses no Continente Negro foi o comércio de escravos. Empreitada nem sequer mencionada em "Non ou a Vã Glória de Mandar". Nem mesmo pelo jovem tenente português que profere no filme um severo requisitório contra o colonialismo lusitano na África. Brasileiro, filho de um país que também fez comércio negreiro, sei que esta história é difícil de ser assumida.
Sucede, caro mestre, que o desconhecimento da violência praticada pelos portugueses (e brasileiros) na época do tráfico negreiro tem consequências amplas, gerando, por exemplo, um certo desconforto diante das manifestações portuguesas em favor de Timor Leste. (...)
Não estaria havendo, na circunstância, um barateamento do passivo colonial? (...)
Desse modo, "Non ou a Vã Glória de Mandar" é um grande filme, uma das melhores reflexões sobre o colonialismo europeu. Mas não dá conta da complexidade da presença portuguesa na África."
Sobre o "afrancesamento" do destino lusitano: "Trata-se, muito mais, de uma corrente em prol da europeização do destino lusitano, como se a história portuguesa fosse, desde o tempo dos romanos, uma preparação para entrar na União Européia e aderir ao euro. Idéia que atravessa os volumes da "História de Portugal" (8 volumes, Lisboa, 1994), de José Mattoso, cujo feitio abusivamente continentalista Francisco Bethencourt e Kirti Chaudhuri tentam agora reequilibrar com a sua "História da Expansão Portuguesa" (5 volumes, Lisboa, 1998). Idéia presente nos pontos cardeais dos pesquisadores que desembarcam em Lisboa. Assim, o Arquivo da Torre do Tombo, que concentra a documentação da história continental portuguesa, dispõe de um novo edifício, imponente, quase faraônico, de carpete macio e ar condicionado. Enquanto o Arquivo Ultramarino, com a documentação portuguesa sobre o Brasil, a África e a Ásia, continua enfiado num edifício mal-ajambrado, onde funcionários dedicados tentam instalar os pesquisadores em torno de uma única mesa cercada de fios com tomadas elétricas esparramadas pelo chão."
Oliveira: "A idéia que põe o padre Vieira por ter dito que "a escravidão dos africanos devia servir de garantia à liberdade dos índios" (perdoe-me, mas gozaram eles dessa liberdade neste final de século?). É preciso não esquecer que os índios são os únicos nativos de alto a baixo das Américas onde os negreiros despejaram os africanos da Etiópia, de Angola e de outras partes da África, e não apenas no Brasil. O Brasil pensa que isso foi obra exclusiva do português a quem chama de colono. Ora, os africanos despejados no Brasil e noutras partes das Américas eram um caso bem diferente dos índios, pois estavam criminosamente desenraizados e perdidos da sua identidade. Quem o fazia? Portugueses, sim, em boa parte e relativamente ao Brasil. Mas só portugueses? Não, bem nítido que não. Os próprios africanos, as tribos mais fortes, aprisionavam as mais fracas para as venderem aos brancos, aos europeus holandeses, ingleses, italianos, espanhóis, franceses, eu sei lá. E a primeira revolta ligada a Tiradentes, no Brasil não se levantou para eliminar a escravatura, mas tão só para transferir o poder, libertando o território da tutela de Portugal, o que veio a acontecer, mais tarde, voluntária e pacificamente por vontade de d. Pedro 4º de Portugal."
De resto, convém notar: "jamais houve ideologia", "jamais fomos modernos”, etc.
Os papos:
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1212199914.htm
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1601200007.htm
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