Considerado como uma espécie de modo automático e espontâneo, no qual os músicos procuram extrair o máximo de seus instrumentos, o conceito de improviso livre é explorado de muitas formas ao longo de cada um dos trabalhos editados pela Mansarda Records. A diversidade sugere que duas frentes principais operam nas práticas do coletivo: o improviso corre solto, determinado porém pelo conceito previamente definido. Nem tudo se define no “aqui e agora” do improviso, ao contrário. Pode-se observar que boa parte do sucesso da empreitada advém de uma concepção forte que, aliada à espontaneidade e o vigor da execução, constituem as chaves para os lançamentos da Mansarda. Este é, sem dúvida, o caso de Honorável Harakiri, último lançamento do selo.
A cargo do trio Diego Dias (sax alto, tenor e clarinete), Marcio Moraes (guitarra) e Michel Munhoz (bateria), Honorável Harakiri é distribuído em três momentos. Primeiro, as seis partes com os “honoráveis harakiris”, nas quais o trio procura extrair o máximo de volume e inflexões de seus instrumentos. Alternando-se com os “harakiris”, os duos nos quais dois instrumentistas do trio travam conversações ao sabor do improviso. Por fim, os dois takes de “Amanhecer em Shibuya”, que são identificados no release como “a única faixa previamente concebida”. As intervenções ensurdecedoras de Diego Dias, tateando os limites agudos do seu sax alto e do clarinete, especialmente nos “harakiris” I e IV, confluem com o senso rítmico errante de Munhoz e os devaneios harmônicos de Moraes. Mas o resultado parece convergir para uma intenção comum, mesmo quando um deles toma a dianteira e conduz os parceiros. Ou seja, o foco no improviso não prejudica a diversidade de possibilidades e conceitos exploradas pelos músicos envolvidos.
Observam-se, assim, duas vertentes básicas em Honorável Harakiri: de um lado, o improviso coletivo desenfreado, característico do gênio militante de Peter Brötzmann; de outro, o cortejo eloquente de ruídos a partir dos quais os instrumentos se individualizam e partem para uma situação que pode ser descrita como algo entre o diálogo e o duelo. Este ambiente propiciou as condições para a elaboração de uma peça coesa e vigorosa, uma arena impregnada pelo conflito, mas que traduz uma decisão coletiva de manter em alentado desequilíbrio duas tendências sonoras aparentemente antagônicas.
Bernardo Oliveira
Bernardo Oliveira
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Minicrônicas Discográficas: MANSARDA RECORDS
por Bernardo Oliveira
(clique no nome do álbum para baixar)
por Bernardo Oliveira
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Que o ouvinte não se deixe enganar pela aparência mais convencional deste trabalho intitulado Pagodi, lançado no final do ano passado pela Mansarda. Nanã Parú no baixo, Peter Gossweiler na bateria e Diego Dias no saxofone tenor, soprano e no clarinete, obtém êxito na criação de climas e ambientes dentro um vocabulário próximo às aventuras modais de Anthony Braxton e Ornette Coleman. Em alguns momentos, dois instrumentos se calam e escutam o outro. Em outros, dois dialogam, enquanto o terceiro observa. E assim sucessivamente, em uma ciranda rica em monólogos e variações convulsivas. A segunda parte, intitulada Pagodi 2, foi editada três meses depois e tambem saiu pela Mansarda.
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Hexagotrópicos – Improvisação Eletroacústica Vol. 01 (2013)
O Hexagotrópicos é um projeto de improvisação eletroacústica, realizado segundo duas modalidades de colaboração. Em primeiro lugar, trata-se de um trabalho a quatro mãos: de um lado, o improvisador, multi-instrumentista e owner da Mansarda Gustavo Bode; de outro, Leonardo Estevão, artista de Joinville que comanda o Boolean Records e participou do Projeto BERROS. Em segundo lugar, a dupla se reúne geralmente como uma colaboração remota, a partir do encontro virtual de materiais produzidos por dois lap tops. Contudo, neste último trabalho, Bode e Estêvão se encontraram em Porto Alegre e gravaram todo o trabalho junto, o que resultou em uma improvisação orgânica, cujo processo de criação conseguiu manter o compromisso com a improvisação livre e a composição instantânea.
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Um quinteto munido de objetos diversos e eletrodomésticos busca extrair sonoridades estranhas de cada um deles. O procedimento é manual, "experimental" em um sentido amplo, não há máquinas digitais envolvidas, apenas furadeiras e liquidificadores. Mas a prerrogativa equipara-se com o que há de mais caro nas pesquisas sonoras que se valem da eletrônica: a instauração de um território sonoro onde o som natural e o som “musical” — ou, pelo menos, os sons consagrados como tal — perdem espaço para outros planos sonoros, um plano virtual no qual a matéria sonora, longe de ser limitada, adquire contornos inusitados, monstruosos. Durante pouco mais de uma hora de improvisação, o quinteto formado por André Castro, Diego Dias, Guilherme Darisbo, LBR e Sabrina López se vale de técnicas diversas, arranhando, percutindo, batucando em ferros, madeiras, engrenagens e demais objetos, para criar um panorama sonoro surpreendente.
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Chinese Cookie Poets + Nicolau Lafetá – Danza Cava (2013)
Gravado em 2011, Danza Cava registra uma sessão do trio carioca Chinese Cookie Poets com Nicolau Lafetá, trumpetista brasiliense radicado em Amsterdã. Sob a influência do sopro lírico e preciso de Bill Dixon, Lafetá trouxe um outro temperamento para a sonoridade do CCP. Abrindo mão de habituais tendências próximas à estridência radical da no wave, o quarteto investiu em estruturas concentradas nos baixos volumes, o que favoreceu a composição de ambientes permeados por pausas e silêncios. Contrapondo-se à noção de ritmo e regularidade, a “dança oca” a que se refere o título remete à geografia acidentada e detalhista das composições, contrária à vivacidade quase brutal dos trabalhos anteriores.
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Música de Diegeses Sugeridas foi o primeiro trabalho que escutei para valer da Mansarda. Por acaso, conta com três artistas próximos aos dois “capos” do selo. Ao lado de Gustavo Bode (trompete) e Diego Dias (saxofones, percussão), Guilherme Darisbo (objetos, violino, sintetizador), Marcio Moraes (guitarra) e Renato Rieger (baixo) perseguem intervenções conjuntas com estilo e senso de direção. Talvez seja este o elemento que mais me chamou a atenção nos trabalhos do grupo: para além do vigor com que tocam seus instrumentos, o voluntarismo e a força de realização, demonstram uma prolífera capacidade de manter o sentido do improviso em uma pluralidade de direções. Ora, se não é esta a característica que deve nortear a prática do improviso, qual seja, um controle inegociável do tempo e do conceito.
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