sábado, 25 de agosto de 2012

JJ Doom: "Guv'nor"

Do álbum Key to the Kuffs (Lex Records, 2012)

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Escutar de novo, pela primeira vez



















(A propósito dos shows do trio paulistano Metá Metá no Oi Futuro Ipanema, dias 17 e 18 de agosto de 2012).

Baby, baby, baby, não se assuste, a cidade é iluminada! Mas serena? Tranquila? Não, defintivamente. Como te (en)cantar, São Paulo? Como lançar o feitiço da canção por sobre seu asfalto, cantar o encantamento de seus desencantos, ligado no 220, na “padoca”, nos olhares discretos e garagens infinitas? As respostas possíveis foram dada pelos punks da periferia, pelos rappers, pelos versos tortos da lira — e mesmo teu samba é anômalo! Seu corpo inteiro é vasto e cresce multidirecionado, mas muitos reconhecem em ti uma “periferia”, desencavada do esquecimento estratégico para habitar para sempre nosso imaginário (blame on the boogie, Nelson Triunfo, Racionais…). Seus abismos sociais, interações tímidas e canções paradigmáticas, que entoam a cidade remota, a cidade dos que “moram longe” (longe de quem, de onde?), que padecem da falta de condução, “se eu perder esse trem que sai agora às 11h…” Como cantar esta cidade munido apenas por violão, saxofone e uma voz? Como fugir da maldição da MPB, do “sambinha” e da “mpbezinha”, munidos com as mesmas armas? “Das armas brancas, químicas quentes, música é a preferida…”

A armadura instrumental pode não deixar dúvidas, mas o que fazer diante do fato de que as dúvidas simplesmente desmoronam? Basta assimilarmos uma realidade improvável, segundo a qual teriam marcado encontro na mesma encruzilhada, sob a benção de todos os exus e orixás, o improviso jazzístico de Peter Brötzmann, o peso do Black Sabbath, os afro sambas de Vinícius e Baden Powell, os detritos sonoros do drone, os ruídos no wave, a pegada do punk e do metal, a música litúrgica da umbanda e do candomblé, as dissonâncias de Arrigo e Sonic Youth, a pujança do tambor de mina, da ciranda, da umbigada, o canto das três raças, o cinema falado, a escola de samba e a onipresença de Benedito João dos Santos Silva Beleléu, vulgo Nego Dito, cascavéu, ensinando a bater cabeça no sobressalto do afoxé, e a fazer riff de metal no galope acertado de um “batuque” de cordas e sopros. 

Kiko Dinucci converte seu instrumento em um híbrido de violão e guitarra, mas também assume as formas do atabaque e do agogô. Em “Vale do Jucá”, canção de Siba Veloso, adapta o instrumentos às técnicas do “piano preparado” de John Cage, interpondo um pedaço de plástico entre as cordas e o corpo do violão. Por vezes, emula uma banda inteira através da utilização de pedais de distorção, palhetadas abafadas, linhas de baixo repletas de intervalos menores, acordes dissonantes e dedilhados abertos, suingue e virtuosismo. Os sopros de Thiago França extrapolam o papel de “solistas” geralmente consagrado a este instrumento, e, tal como o violão, se afirmam a partir de uma série de possibilidades imprevistas: percutindo as chaves, criando desenhos rítmico-melódicos para servir como acompanhamentos e usando as ressonâncias da respiração para criar texturas sinistras. Com seu timbre versátil e interpretação precisa, Juçara Marçal é hoje a maior cantora brasileira surgida nos últimos 30 anos. Como nenhuma outra, conjuga força expressiva e espontânea, com versatilidade e, o que mais chama a atenção, dosagem precisa de emoção na emissão e nos floreios, o que a destaca de grande parte das cantoras da atualidade.

Ressalto as qualidades instrumentais do conjunto porque além da concepção, é a execução o grande barato de um concerto do Metá Metá. Faixa introdutória de Metal Metal, o próximo trabalho previsto para outubro, “Laroiêxu” abre-alas: o sax combina ruídos, ambiências e melodias soltas, o violão percussivo se transfigura em um terreiro de umbanda e Marçal solta a voz como quem lança impiedosamente o fio de uma espada sobre os sentidos da plateia. Introdução impactante, seguida pelas canções do primeiro álbum: “Vale do Jucá”, “Umbigada”, “Trovoa” (linda canção lírico-coloquial assinada por Maurício Pereira, com mais um espetáculo à parte protagonizado pela cantora), “Papel Sulfite”, “Samuel” e a evocativa “Vias de fato”. A sessão “Beleléu”, momento em que o trio se esmera em interpretações matadoras para algumas canções do bardo paulistano, traz duas pérolas de Pretobrás II — Maldito Vírgula, “Ir pra Berlim” e “Más línguas” — esta última, com seus versos infames, porém delicados, gerou gargalhadas: “até sessenta, cê tenta, depois dos setenta… sessenta!” “Tristeza não”, faixa que encerra Metal Metal, é uma composição inédita de Itamar com Alice Ruiz, a meio caminho de Black Sabbath e dos Stones de “Can’t You Hear me Knockin’”, um peso descomunal que justifica o título no mínimo curioso do próximo disco.

Composições de Dinucci com Douglas Germano (que lançou em 2010 o ótimo Orí), “Oranian” e “Obá Iná” reforçam uma concepção calcada no punch da execução e nas infusões sonoras inesperadas, executada por três instrumentistas que empunham seus instrumentos como um campo aberto de experiências. Operando por contraste com o discurso dominante da chamada MPB, a música do Metá Metá expõe o ouvinte a uma experiência situada entre a familiaridade e a desorientação — na qual se escuta tudo de novo, pela primeira vez... Recusa-se, ao contrário do que se espera hoje da sigla MPB, a emprestar tons pastéis e execução standard a elementos do rock e da música de todos os santos, extrapolando fronteiras pré-delimitadas pela dinâmica ideológica e mercantil. Não seria o esgarçamento de tendências comuns ao discurso mediano da MPB que confere ao grupo algo para além das siglas e gêneros? Em outras palavras, como cantar São Paulo no século XXI? A resposta não poderia ser mais explosiva e eficiente: conjurando-as com outras armas brancas, outras químicas quentes, curto-circuito.

Bernardo Oliveira

quinta-feira, 26 de julho de 2012

Glenn Branca, badass…





















(sobre o show de Glenn Branca Ensemble no SESC Belenzinho, 25/07/2012)


A julgar pelo modo nada carinhoso com o qual o lendário Glenn Branca se dirige a seus músicos, tal como se comprovou durante a apresentação de ontem, seu concerto conta não com um ensemble, mas com algo próximo de uma "grande família (no pior sentido do termo). "Parente é serpente", diz o ditado. Suado, barba por fazer, metido num terno amarrotado, Branca entra no palco resmungando, entre partituras, garrafas d'água e refrigerantes. O semblante dos músicos não é dos melhores, mas aquilo que parecia concentração se transforma em constrangimento. Branca bate boca com um dos guitarristas, o clima fica tenso ("what do you think I'm talkin' about, my dick!", entredentes). Mexe nas partituras, os músicos se ajeitam e, quando menos se espera, silêncio. Silêncio, olhares atentos e mais silêncio… Então, uma maçaroca sonora toma conta do teatro do Sesc Belenzinho, fazendo com que  a plateia, que até então apenas assistia perplexa as movimentações no palco, seja tomada por um sentimento de apreensão. Os aplausos são relativamente tímidos, ainda contaminados pelos acontecimentos curiosos que marcaram o início da apresentação. Mas a sequência já revela a outra faceta do trato familiar: Branca ensaia com o baterista algo como uma brincadeira ("it's ok, it's ok…), o guitarrista, alvo dos esporros, ajeita o boné e esboça um sorriso. E então, se inicia a segunda peça da noite, "The Tone Row That Ruled The World" (do disco de 2010, The Ascension: The Sequel), que já obtém uma resposta efusiva da plateia. A partir daí, Branca se solta, bem como seus músicos e a plateia. "Lesson N. 03 (Tribute to Steve Reich)", do mesmo álbum, marca esse ponto de virada, com suas reviravoltas rítmicas e harmonias dissonantes. De costas para a plateia, Branca rege sua orquestra ora agarrado à banqueta de partituras, agitando-a de forma insensata, ora contorcendo as pernas e fazendo gestos histriônicos com as mãos. Parece uma mistura de Pierre Boulez com Elvis Presley. "Lost Chords" encerra o concerto e, em um dado momento, Branca vai para o canto do palco e libera os músicos para o improviso. Ele se joga contra a parede e fica lá, de costas, como que delirando com a zoeira produzida por sua "família". E então o concerto acaba. Mas assim que o teatro se esvazia, e restam apenas alguns fãs, ele reaparece, virulento, pedindo "sem fanatismo, por favor!" Neste momento, eu estava do seu lado, ri e perguntei se ele se importava de bater uma foto. Ele disse: "bate logo, ora!" Não bati, mas resolvi encarar a fera. Pensei, "mas esse é o Glenn Branca, o nó cego do No wave, a força cerebral do pós-minimalismo, a referência máxima quando se trata de abordar as influências de bandas como Sonic Youth e The Ex." Comprei um CD e pedi para que ele assinasse. Sorrindo, Branca me pergunta se eu tinha apreciado o show, no que respondi "CLARO, foi incrível!" De repente, aquele monstro tinha se tornado dócil e inseguro, seus gestos se acalmaram, ele baixa a cabeça e assina com a mão trêmula: "Para Bernar...". Subitamente sua mão pára no meio da escrita, ele volta seus olhos para mim com certa violência e solta mais uma ofensa adorável:  "você já pagou por isso!!!?" "Sure Mr. Branca, sure…"


Bernardo Oliveira

terça-feira, 10 de julho de 2012

Metá Metá: “Laroiê Exu”

do álbum que está para chegar, batizado provisoriamente como Metal Metal (via Fita Bruta)

terça-feira, 3 de julho de 2012

Manezinho Araújo, o rei da embolada

"Pra Onde Vai Valente?" Participação do Rei da Embolada Manezinho Araújo no Filme "Amor para três", de 1959, dirigido por Carlos Hugo Christensen.




"Cuma é o nome dele?" (RCA Camden, 1974)

sexta-feira, 29 de junho de 2012

mixhaps, perhaps...























sequência mixada descontínua incompleta extraída do que de melhor rolou nesses últimos 3 (ou 4) meses... (vlw Zahle, pela força)




Eli Keszler: "Drums, Crotales, Installed Motors, Micro-Controller Metal Plates"
Dean Blunt and Inga Copeland: "Venice Dreamway"
Sun Araw, M. Geddes Gengras & The Congos: "Happy Song"
Curumin: "Treme Terra"
THEESatisfaction: "Deeper"
Maga Bo: "O Neguinho" (com Biguli)
Mark Ernestus apresenta Jeri-Jeri com Mbene Diatta Seck: "Xale"
Ben Vida: "Ssseeeeiiiiii"
Killer Mike: "Big Beast" (com Bun B, T.I., Trouble)
Björk: "Crystalline" (Current Value Remix)
DJ Rashad: "Feelin'"
Traxman: "I Need Some Money"
Death Grips: "Hustle Bones"
Frank Bretschneider: "Kippschwingungen part 8"
Actress: "Jardin"
Moritz von Oswald Trio: "Yangissa"
Animal Collective: "Honeycomb"
The Hundred In The Hands: "Keep It Low" (Patten Remix)
Cristian Vogel: "Lucky Connor"
Shackleton: "Seven Present Tenses"
Gaby Amarantos: "Mestiça" (com Dona Onete)
Keith Fullerton Whitman: "Occlusion"

segunda-feira, 18 de junho de 2012

(artigo) O mal-estar na Abundância
















Recentemente, em uma de suas colunas na Pitchfork, Mark Richardson comentava, usando como tema o Music from Saharan Cellphones Vol 1, o papel relativo de escassez e abundância em nossa maneira de fruir música hoje. Mesmo com o boicote de SOPA/ PIPA/ ACTA etc, é muito mais fácil ter acesso: é farta a oferta do próprio material musical, e é farta também a oferta de informação sobre música. Esse nosso site aqui é um dentre zilhões de exemplos: um coletivo de entusiastas se reúne para escrever sobre música e divulgar isso. 

Tenho quarenta anos, e consigo lembrar fácil de ter experimentado a escassez das duas coisas. Li na Bizz sobre o In the court of the Crimson King e se passaram anos até que eu conseguisse que alguém me gravasse uma fita – anos até que eu visse o disco. Vejam que não se tratava de algo particularmente obscuro – era King Crimson, um dinossauro progressivo e, ainda assim, nos anos 80, não estava aí nas quebradas não. Não faz muito tempo, era difícil ter acesso a todos os discos que se queria ouvir.

E pela mesmo via a coisa ocorria com a informação sobre música. Lembro de querer saber mais sobre La Monte Young – coisas simples, do tipo Quem é mesmo esse cara? O que esse cara tem a ver com o Sonic Youth? É boa a música dele? Melhor que a do Sonic Youth? Mas, claro, não encontrava nada – pois, por incrível que pareça para você que tem vinte anos hoje, já existiu um mundo sem internet. A fonte possível de alguma informação eram as revistas de música – coisas como a Bizz – e fanzines maluquete que a gente assinava, e recebia pelo correio. Eventualmente, um amigo mais endinheirado (eu tinha um amigo assim) comprava o New Musical Express, ou o Melody Maker, e isso era lido até gastar.  

Agora que tudo isso não é mais problema, pois contamos tanto com muita disponibilidade de música e de informação sobre música, é claro que os problemas aparecem em outro lugar. Um, fundamental pra mim, é a organização: é saber o que está aonde. Não me adianta ter um HD externo de 3T lotado de mp3 e não saber encontrar as coisas que quero ouvir. Preciso de organização. Por isso, passei os ultimos tres anos organizando cuidadosamente meu iPod. Capas, creditos corretos, playlists: um primor, quase 160G, muita música. O investimento de tempo foi grande, mas tem valor: eu uso muito esse aparelho, muito mesmo – é muito util pra mim. E, agora, tudo se foi, toda essa organização, todo esse investimento: tudo evaporou, pois o iPod morreu.

Meu mundo caiu. E, claro, sei que não é irremediável. Mas também não sei qual a lição que tinha de aprender com o incidente, embora ache que tinha de aprender alguma coisa.

Antonio Marcos Pereira

quinta-feira, 14 de junho de 2012

(crítica – disco) Beto Guedes – A Página do Relâmpago Elétrico (1977; EMI Odeon, Brasil)

























Assim como uma série de artista e compositores que confluíram dos festivais dos anos 60 para a diversidade dos 70, e que de alguma forma ficaram marcados pelo estigma da chamada “música regional”, o nome de Beto Guedes também acabou se restringindo a um contexto inconvenientemente particular. Porém, quem se arriscaria a negar que Lula Côrtes, Zé Ramalho, Alceu Valença, Guilherme Arantes, Flávio Venturini, Kleiton e Kledir, Sá e Guarabyra, entre outros, independente de suas respectivas contribuições estéticas, usufruem hoje de um acréscimo de universalidade, angariando interesse mundo afora justamente por expressarem sotaques próprios e intransferíveis? As reedições inglesas e americanas em vinil de artistas brasileiros desta época apenas atestam que toda a conversa estranha da “música regional” (ora, o sudeste é também uma “região”!) se constituía dentro de um maniqueísmo insustentável em tempos de comunicação acelerada, a saber: entre a classificação imposta pelas gravadoras e sua subsequente adesão por parte do chamado “grande público” — basicamente os consumidores de discos, fitas cassetes e shows. Rompido o estigma, chegou a hora de retomar a escuta desse conjunto de álbuns e artistas fundamentais, cujo brilho fora provisoriamente apagado pela segmentação estratégica da grande indústria.

Mineiro de Montes Claros, nascido há 61 anos, filho do seresteiro e compositor Godofredo Guedes (gravado pela cantora portuguesa Eugênia Melo e Castro), compositor, multiinstrumentista e cantor de timbre singular, Beto Guedes apareceu pela primeira vez no cenário nacional em 1969, ao lado de Fernando Brant, quando veio ao Rio participar do V Festival Internacional da Canção com a canção “Feira Moderna”. Considerado uma espécie de outsider, mesmo durante o período em que se juntou ao Clube da Esquina de Milton Nascimento, Lô Borges, Ronaldo Bastos e companhia (sobretudo no álbum homônimo e em Minas), Guedes foi encarregado de executar diversos instrumentos (violão, guitarra, viola, contrabaixo, bateria, percussão, bandolim), construindo uma reputação ambígua: ora atrelada à sua indubitável competência de instrumentista, ora pelos modos singulares (para não dizer excêntricos) com que entoava suas canções e tocava esses mesmos instrumentos.

Esse conjunto de talentos e características idiossincráticas se catalisaram em seu primeiro álbum de carreira, A Página do Relâmpago Elétrico, cuja canção-título, composta por Guedes e Ronaldo Bastos, fora inspirada no álbum de um colecionador de fotos da 2ª Guerra Mundial, que continha uma imagem do avião “Relâmpago Elétrico”. Nenhuma metáfora seria capaz de reunir tantos elementos pertinentes e interligados: o contraste entre a organicidade da página de um livro com o termo “elétrico”, a remissão à eletricidade, que no entanto advém de uma força da natureza, o relâmpago, e todo o aspecto psicodélico embutido nessa imagem. A instrumentação se destaca pelo entrelaçamento inteligente do bandolim e do violão com o efeito chorus, executados respectivamente por Guedes e Zé Eduardo. A marcação também se destaca, feita a partir de chocalho de sementes e guizos, assim como a letra deste compositor genial que é Ronaldo Bastos, coloquial e delirante como poucos nesta mesma época — num comparação direta nesta mesma seara do “delírio coloquial” dos 70, talvez somente Luiz Melodia e a dupla Mautner/Jacobina estejam à altura. 

A influência do rock progressivo é perceptível, não só pela presença no órgão de Flávio Venturini, que em 75 havia ingressado no grupo O Terço, mas também pela bateria inconfundível de Robertinho Silva, egresso da experiência com o Som Imaginário — que não só havia gravado seus três discos de carreira, mas acompanhado Milton Nascimento na versão ao vivo da obra-prima Milagre dos Peixes. Esta influência pode ser avaliada pelo leitor em faixas como a instrumental “Chapéu de Sol” (Beto Guedes e Flávio Venturini), na qual Guedes toca moog e flauta, e na pegada folk de “Salve Rainha” (Zé Eduardo/Tavinho Moura). Porém, como o Clube da Esquina não se restringia aos maneirismos do rock, abraçando toda espécie de manifestação musical, vale sublinhar a evidente influência deste ambiente sobre o disco, como, por exemplo, no forte sotaque andino de “Maria Solidária”, ou no choro “Belo Horizonte”, que conta com o clarinete luxuoso de Abel Ferreira. Outras presenças que marcam a sonoridade do álbum: Toninho Horta no contrabaixo e na guitarra, e Holy na percussão e na bateria.

Outro destaque do disco é "Nascente", de Bastos e Murilo Antunes, uma canção gravada por muitos artistas, inclusive Milton Nascimento e Flávio Venturini, entre outros. Mas foi através da balada rock-folk “Lumiar”, dedicada a um célebre reduto bicho grilo localizado no interior do Rio de Janeiro, que o disco ganhou alguma projeção, vendendo o triplo do esperado pela gravadora. A guitarra aguda, a as viradas de bateria e pratos estridentes, o piano quase percussivo pontuando a melodia, fazem de “Lumiar” um clássico absoluto dos anos 70, que ainda fascina 35 anos depois. No entanto, a faixa foi injustamente inserida no grupo de canções que obtiveram o excesso do reconhecimento popular e, por conseguinte, uma antipatia semelhante a que sofre a música de Bob Marley e Raul Seixas. Um efeito tão natural quanto previsível, ainda mais se levarmos em conta a situação exposta no início do texto.

Mas que não se engane o leitor, pois Beto Guedes não é apenas um grande instrumentista, muito menos se resume a uma espécie de hitmaker, idolatrado por universitários e hippies de última hora. Estamos a falar, antes de mais nada, de um compositor de harmonias e melodias fortemente evocativas (em “Choveu”, com Ronaldo Bastos, e “Bandolim”), de um artista capaz de usar sua habilidade de arranjador para criar climas simultaneamente bucólicos e solenes, e, sobretudo, de um cantor excepcional. Seu canto anasalado, repleto de falsetes e imprecisões, e que rende comparações inevitáveis com Dylan e Neil Young, se destaca pelo timbre peculiar, de tal forma que podemos remeter a um verso que Bowie dedicou a Dylan: “a voice of sand and glue”.

A Página do Relâmpago Elétrico pode, no fim das contas, dar a impressão de ser um disco que atira para todos os lados, mas talvez seja este o seu maior trunfo. Parece que, ao fazê-lo, Beto Guedes desejou criar para além de uma obra musical, uma espécie de auto-retrato em andamento, como o comprova a combinação ideogrâmica de sua foto (ou de seu pai?) com o símbolo de uma semente, que se repetiria nos álbuns seguintes, Amor de Índio (1978) e Sol de Primavera (1979).  

Bernardo Oliveira