quarta-feira, 25 de abril de 2012

(crítica – disco) THEESatisfaction – Awe Naturale (2012; Sub Pop Records, EUA)

























Em uma época em que o hip hop parece ter se desdobrado não só na diversidade de manifestações do rap americano, como também na auspiciosa proliferação ao redor do mundo (sobretudo na África e na América Latina), é no mínimo curioso que este disco apareça justamente pelas vias acinzentadas da Sub Pop. Parceiras de Sa-Ra Creative Partners e do Shabazz Palaces (que contaram com os backing vocals das moças no incensado Black Up, também editado pela Sub Pop), Stasia Irons e Catherine Harris-White compartilham o gosto por uma certa inflexão da cultura negra norte-americana, expressa no visual andrógino, colorido e elegante, como se a dupla figurasse na capa de 3 Feet High and Rising. Mas nem tudo é cor e glamour em Awe Naturale, primeiro disco da dupla THEESatisfaction. 



Como 3 Feet… e The Low End Theory, Awe Naturale sobressai pela harmoniosa combinação de muitos elementos: melodias simples convivem com harmonias incomuns, tapeçaria de vozes se sobrepõe à sutileza das percussões, a doçura dos vocais contrastam com as referências bem dosadas à luxúria soul de Marvin Gaye e às experiências antiquárias de Madlib. Mas esse aparente imbroglio, por incrível que pareça, resulta em um trabalho coeso, através de composições que sintetizam a candura easy listening do cool jazz, a pegada firme do rap e o minimalismo caro ao espírito da época. Repetições, timbres suaves (porém estranhos), dissonâncias discretas, quase imperceptíveis: Awe Naturale reivindica dois espaços incomuns no hip hop, entre a melodia pop e um grau de abstração entre o rap e suas fronteiras.

Da vinheta festiva “Awe” até a “impostura” de “naturalE”, Awe Naturale se mantém dentro de um equilíbrio difícil de sustentar: é jazzy sem ser Berkley (como na incrível “Existinct”); é arriscado sem ser pretensioso (como em “Crash”); se utiliza dos sons com propriedade, mesmo quando parece que vai desandar – como na gratuidade de “Enchantruss”, ou na vibe disco de “QueenS”

Pergunta-se: na última década, à exceção de Madlib e Georgia Anne Muldrow, quais os artistas do gênero que retomaram, inesperada e criativamente, a infusão jazzy que caracterizou o rap inovador de Tribe Called Quest e do De La Soul? Não posso garantir que os trinta minutos de Awe Naturale constituam uma resposta, mas que ela tenha vindo de Seattle já é motivo suficiente para surpresa. Porém, antes de mais nada, Awe Naturale é uma audição prazerosa e altamente viciante, que enfileira pequenos clássicos (refinados, discretos), como “Sweat” (Theo Parrish?), “God”, “Bitch” (matador!), “Deeper” (me lembrou Janelle Monáe), “Juiced”, et cetera. 

Bernardo Oliveira

quinta-feira, 12 de abril de 2012

(crítica – disco) Sidi Touré – Koïma (2012; Thrill Jockey, EUA [Mali])

























No último dia 06, o Mali foi palco de um golpe militar, poucos dias antes do lançamento de Koïma. Consta que um motim no quartel central do país, depôs o presidente Amadou Toumani Touré, enquanto o movimento separatista tuaregue MNLA tomava parte de Gao com ajuda de islamistas radicais, reivindicando seu estado independente, chamado “Azawad”. Temo não possuir estofo suficiente para discorrer com precisão sobre o tema, de modo que, para evitar equívocos, cito o historiador Gregory Mann, especializado em história da África francófona.

“Seria difícil exagerar a bagunça que foi feita do Mali na última quinzena. Um golpe de surpresa, uma rebelião acelerada que dividiu o país em dois, e um embargo econômico perpetrado por vizinhos do país sem litoral, têm castigado o que teria sido, até recentemente, uma história de sucesso no Oeste Africano. Acrescente-se a isso uma crise alimentar iminente na região nordeste, e temos uma bela bagunça! Mas o mundo não pode voltar atrás: o Mali é muito importante para amortizar os 20 anos de democracia no país como uma experiência fracassada.”

Os tuaregues, os mesmos que foram massacrados por forças militares francesas em meados da década de 40, reivindicam seu estado independente, dividindo o país, multiplicando conflitos, fragmentando histórias… Características comuns a estados unificados à forceps pela violência colonialista e federalista. Talvez por isso, e não pelo golpe de estado, que o lançamento de Koïma adquire um significado especial. Sua música testemunha que há nesta “bagunça”, localizada em um pedaço de terra ficticiamente delimitado, uma cultura viva e intercambiante,apesar das intempéries históricas. Esta cultura se exprime de forma brilhante nas canções, arranjos e sonoridades de Koïma.

A beleza do trabalho se deve à contribuição direta da cultura songhäi e da habilidade específica de Touré de conduzir seu ensemble e as canções. Acompanhado por um quarteto formado por violão, calabash, soukou (o violino malinês) e uma cantora, Touré apresenta uma outra faceta de sua música. Koïma difere bastante da beleza intimista e espontânea de Sahel Folk, lançado ano passado, soando como um passeio pelas ruas de Gao, através do entrelaçamento de arabescos do soukou e do violão e da percussão extremamente bem marcada. Pode ser encarado também como um songbook, uma seleção de canções arranjadas com sobriedade, sem prejuízo para a beleza idiossincrática de cada composição. Destaco “Ni see ay ga done”, “Woy tiladio” (em 3/4) e “Chacun Sa Chance” e “Tondi Karaa” como as que melhor representam a contribuição de Touré à apresentação e desenvolvimento da tradição songhäi.


Sidi Touré - Ni See Ay Ga Done from Thrill Jockey Records on Vimeo.

Sidi Touré e sua música nada podem contra a “bagunça” em seu país, assim como Fela Kuti não pôde sustentar sua luta contra a ditadura nigeriana, nem Bob Marley converter sua música “revolucionária” (com aspas, por favor) em melhorias efetivas para os jamaicanos. Mas, ao mesmo tempo, somente através da arte e dos artistas, tomados como grandes tipos culturais, se pode consolidar exemplos de que a dinâmica da concórdia e da criação podem servir de exemplo para todo um povo.

Bernardo Oliveira

segunda-feira, 26 de março de 2012

(crítica - disco) Gal Costa – Recanto (2011; Universal Music, Brasil)
























“Viver é um desastre que sucede a alguns.” Tomo o verso escrito por Caetano Veloso como um elogio ao amor fati, um canto de júbilo pela existência, pela singularidade da arte, pela vida em seu caráter multiforme. Ora, em que consiste o “desastre” se não na própria incongruência entre o caos e a forma, restando somente o ímpeto de conferir sentido a um turbilhão que nos é, antes de mais nada, indiferente? Neste caso, o desastre não possui o significado de “catástrofe”, mas de algo que irrompe inevitavelmente, de um acontecimento inexorável. Aqui, Recanto quer dizer "re-cantar", refazer, recompor...

O primeiro álbum que Caetano Veloso produziu para Gal Costa, Cantar (1974), com Perinho Albuquerque, se inscrevia no refluxo londrino, a partir do qual ele e Gilberto Gil reconfiguraram suas posições no cenário da música brasileira. Lá se pode escutar a mistura de estilos (bossa, rock, soul, fado…) que caracterizou o Tropicalismo, bem como os compositores afinados com o mesmo legado (Donato, Jobim, Péricles Cavalcanti, Carlos Lyra, Mautner). Porém, percebe-se uma diferença importante. Nos primeiros discos, Gal experimentava consideráveis variações de registro, ora investindo na economia singela de Domingo (com Caetano, 67), ora esbanjando vigor e uma certa ironia, como nos dois discos homônimos de 69 e Le Gal, de 70. A pluralidade de interesses cara ao Tropicalismo contaminou seu canto até explodir no verdadeiro acontecimento que foi Gal a Todo Vapor, disco e show.

Ocorre que em Índia e, adiante, Cantar, estas variações deram lugar a uma estabilidade estilística, que conjugava seu timbre melífluo com energia e força de expressão. Pode-se dizer que até início da década de 90, o canto de Gal Costa manteve-se nesse registro, sem prejuízo para bons álbuns como Gal Canta Caymmi (1976) e Água Viva (1978). Desenho essa genealogia de seu canto para sublinhar algo que parece ter passado desapercebido em relação a Recanto. Muitos foram seus produtores, de Manoel Barenbein a Arto Lindsay, de Mazolla a Morelembaum, de Perinho Albuquerque a Waly Salomão, entre outros. Mas o canto de Gal Costa, me parece, sempre foi e ainda é um assunto para uma única pessoa: Gal Costa. 

Desta lista de produtores, o mais ousado e criativo é, sem dúvida, Caetano Veloso, que até por conta do laço de amizade, conhece sua biografia, compreende seu pensamento musical, o estágio no qual se encontra sua voz e, sobretudo, aquilo que Gal Costa de fato quer cantar. Em entrevistas, ambos manifestaram receio em relação à proposta de Recanto, cuja sonoridade se encontraria em sintonia com duas importantes cenas contemporâneas: a produção eletrônica e o improviso instrumental. Pela primeira vez em muitos anos, um trabalho de Gal Costa retoma o espírito experimental comum aos discos dos 60 e 70. Mesmo em relação a seu último disco digno de nota, O Sorriso do Gato de Alice (1993), produzido por Arto Lindsay, Recanto sobressai, pois trata-se não só de uma investida em outras sonoridades, mas na própria concepção estética de intérprete.  

As programações eletrônicas enxutas, contribuição fundamental de Kassin, casam perfeitamente com seu timbre grave e metálico, qualidade perceptível nas duas mais belas faixas do disco, “Recanto Escuro” e “Tudo Dói”. Além da presença de instrumentistas do calibre de Donatinho (teclado), Alberto Continentino (contrabaixo), Pedro Sá (guitarra) e Luis Filipe de Lima (violão de 7 cordas), Recanto conta com duas bandas cariocas especializadas em improvisação: o Rabotnik, no blues anômalo “O Menino”, e o Dupplex de Bartolo e Léo Monteiro na melancolia visceral de “Madre Deus”. Há que se notar também a inserção bossanovista da sugestiva “Mansidão”, com Morelembaum e Daniel Jobim. Recanto se afirma na harmonização entre universos aparentemente  distantes, mas que são singularmente unificados pelo canto de Gal.

Em termos temáticos, tal qual o último disco de Chico Buarque, o momento pessoal forneceu a matéria-prima a partir da qual Caetano elaborou as letras, misturando olhares e perspectivas: Caetano olhando para Gal em “O menino”, Gal respondendo a Caetano em “Recanto Escuro”, os dois se entreolham em “Mansidão” (que retoma a prática do canto como tema, tal qual em Cantar) e riem juntos no suingue sagaz de “Miami Maculelê” – cujo pulo do gato é o prato do samba de roda se fazendo de hi-hat do funk. 

Por fim, a visão segundo a qual Recanto é um disco “eletrônico” é evidentemente equívoca, mero subproduto do jornalismo e do marketing. Em Recanto, sobressai a forma do canto de Gal, criativamente adaptado a um cenário tomado por uma certa melancolia, pela batucada robótica e um conjunto de canções perceptivelmente esgarçadas pela intenção de dialogar com a aridez dos arranjos – às vezes nos lembramos de Third, do Portishead, outras da “cristaleira digital” de Björk...

Explorando nuances, alturas e possibilidades no registro mais grave, no sussurro, na exploração simbólica dos efeitos (como em "Autotune Autoerótico"), ou nas entonações minimalistas de “Neguinho” e da soturna “Sexo e Dinheiro”, Gal, mais uma vez, reinventou-se a si mesma. Sim, viver é um “desastre” que nos leva a experimentar encontros, máscaras e identidades. “Só deus sabe o duro que eu dei”, ela canta pelas palavras de Caetano. Ou seria Caetano poetizando, “palavreando” o canto expressivo e inigualável de Gal Costa? 

Bernardo Oliveira

sexta-feira, 23 de março de 2012

Minicrônicas Discográficas #15






















Negro Leo – The Newspeak (2012; s/g, Brasil)
Na primeira ocorrência no Matéria do nome de Leonardo Campelo, mais conhecido como Negro Leo, recorri a exemplos de performers espasmódicos, agitados: James Brown, Iggy Pop, Fela Kuti foram os nomes que me ocorreram, não propriamente pela música, mas, sobretudo, pelo grito estilizado e a performance enérgica. Isso foi no ano passado, mais precisamente no mês de outubro e Léo se apresentava ao lado do Chinese Cookie Poets. Recentemente tomei conhecimento do seu primeiro trabalho solo, um EP com seis músicas batizado como The Newspeak. A conjunção dos fatores me levou a crer que poderia se tratar de um disco de spoken word, aditivado com o mesmo vigor daquele outubro distante… Lêdo engano! Ao invés de suingue e energia, Negro Léo apostou num caminho menos óbvio. Suas referências não se constituem a partir do legado “funk brother soul”, nem do samba, mas da perspectiva de canções, cujo caráter mais evidente é a conjunção de sofisticação harmônica e letras simultanemente naïves e perturbadoras. A banda, formada por Pedro Dantas (baixo), Daniel Fernandes (bateria) e Vitor Barros (guitarra), lembrando o trio Lanny Gordin, Moacir Albuquerque e Tutti Moreno, entra na onda com instrumentações soltas, como se pode observar na beleza bruta de “A Moda e Novo Homem” e “Patrya”. Com seu canto meio bossanovista, meio irônico, ressalta o nonsense romântico na intimista “Autoestudo 2” (“Saímos ela, eu e Satanás / Pacifistas/ Para orgulho do Deus do Big Bang/Lindos, usamos mais drogas que soldados no front…”) e a conjunção aleatória da letra e da melodia de “Cry Us River” (“E curto a pedra lascada/Vou ficar por aqui e rezar por você/Porque não haverá salvação/Para as almas refugiadas em astronaves/nem presente algum no Olorum”). Solapando a base harmônica de suas canções e alvejando-a com acordes dissonantes, improvisos e escalas pouco ortodoxas, Leo evoca o jazz dos anos 50 (em “Jovem-Tirano-Príncipe-Besta” e “The Newspeak”), a espontaneidade da instrumentação tropicalista pós-70 e o blues truncado e expressivo de Captain Beefheart. Mas aponta, antes de mais nada, para a possibilidade promissora de firmar-se como um “cantautor” singular, na linhagem de Itamar Assumpção e Jards Macalé, descartando os ecletismos vazios de uma "emepebê” moribunda e engrossando os argumentos contrários a um suposto “fim da canção”. Em suma: não é música para boi dormir.


Keiji Haino, Jim O'Rourke, Oren Ambarchi – いみくずし Imikuzushi (Black Truffle/Medama Records, Austrália [EUA/Japão])
O trio em questão chega a seu terceiro álbum, após duas incursões ao universo da “improvisação com acabamento sonoro”, Tima Formosa e In a Flash Everything Comes Together As One There is No Need For a Subject, respectivamente de 2010 e 2011. Nestes casos, ainda que conte com os habituais títulos enormes, as faixas se iniciam com volumes mais baixos e desembocam em longas sessões de depredação sonora. Mesmo nos momentos carregados pelo timbre feminino de Haino, o clima é de tensão durante todo o tempo, seja porque a barulheira está para começar, seja porque os trechos climáticos excedam a mera introdução e funcionem como uma espécie de prenúncio do caos. Dos três álbuns, ainda prefiro a variedade e a delicadeza de Tima Formosa, até porque, do ponto de vista formal, In a Flash… e Imikuzushi são bastante parecidos. Mas não há como negar o prazer de escutar o que três músicos do calibre de Haino, Ambarchi e O’Rourke ainda podem fazer com nossos ouvidos.


Bellows – Reelin' (2012; Entr'acte, Reino Unido [Itália])
Apesar da obra aqui em casa, pude escutar com muito prazer esta bela parceria entre os italianos Nicola Ratti e Giuseppe Ielasi. O duo Bellows opera com ênfase sobre o campo de interesses de Ratti, mas por redução de elementos e a partir de um trabalho admirável com volumes. Trata-se de um trabalho lento, silencioso, mas animado por uma série de detalhes. Não que Ielasi também não seja dado às abstrações quase visuais de Reelin’, mas em seus álbuns podemos adquirir um referencial mais consistente para entender as tramas particulares tecidas por uma combinação esdrúxula de field recordings, sintetizdores e instrumentos "mascarados" – isto é, que parecem, por exemplo, uma percussão, mas pode perfeitamente ser um som sintetizado. Disco repleto de minúcias, recomendado para quem gosta de ouvir música nos fones. 

Ouça "05".

Bernardo Oliveira


Moskra – Moskra EP  (2012; IDM Netlabel, EUA)
O autointitulado primeiro EP do artista Moskra traz doses maciças de peso e escuridão para a IDM Netlabel. Trata-se de um álbum bem mais soturno do que os demais artistas do catálogo da IDM, portanto, esteja preparado para o uso intenso de sub graves e batidas que privilegiam o kick com uma forte inspiração no 2step. Apesar do jeitão truculento e da cara de poucos amigos, trata-se de um disco cheio de ritmo e altamente dançante, que pode agradar aos fãs do selo Hyperdub e post-dubstep em geral.

Baixe o EP em formato MP3 ou FLAC, direto da página da IDM Netlabel.


Total Abuse – Prison Sweat  (2012 [2011]; Calico Grounds, EUA)
O Total Abuse é uma das bandas responsáveis por trazer de volta à tona a influência da velha escola do hardcore oitentista, acompanhado por uma muralha de feedback e intensas (e raras) performances ao vivo. Prison Sweat é o terceiro álbum da banda, alternando entre curtas faixas punks e faixas que beiram o experimentalismo sludge, bebendo da fonte do Black Flag da fase "My War", do scum punk proposto por GG Allin e do cenário noise estadunidense. Versão em formato cassette para o LP lançado originalmente em 2011 e atualmente fora de catálogo, foi relançado pelo selo Calico Grounds em formato cassette, limitado a 500 cópias. 





Dylan Ettinger - Lifetime of Romance (2012; Not Not Fun, EUA)
O novo disco de Dylan Ettinger, Lifetime of Romance, já se encontra disponível para compra no site do selo Not Not Fun (http://notnotfun.com/now.html). O artista já havia disponibilizado o single "Wintermute", faixa que flerta com o synth-pop e a minimal wave, influências adaptadas ao estilo próprio desenvolvido por Dylan ao longo de sua carreira. Compre o cd e, enquanto ele não chega, ouça "Wintermute" na página da FACT Magazine.




Thiago Miazzo

quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

(ensaio) A Ofensiva Cultural: Compartilhamento de Arquivos, Audiofilia e Capitalismo (parte II)






















I. Crise do Formato

Na primeira parte busquei identificar a modulação do valor da mercadoria, particularmente no que diz respeito ao compartilhamento online de arquivos digitais, que se apresenta sob o seguinte paradoxo: a mercadoria “tornou-se maleável em relação à cultura local, em desacordo com regras impostas pela linguagem universalizante do mercado.” A fricção entre universalidade abstrata do deusmercado (com a moral em baixa…) e o turbilhão libidinal proveniente das diversas culturas, implodiu a própria noção de mercadoria. EMI? Som Livre? Contrato? “Advanced”? Charts, jabáculês e demais dispositivos de manipulação? E o que restou disso tudo, se não a própria música

Otimismo? Talvez. No entanto, não importa que você seja um otimista ou um pessimista, um cínico ou um militante, pois com relação a esse assunto estamos implicados em um futuro que coabita o presente e se debate com o passado, para o qual se buscam respostas que nunca virão de forma ampla e definitiva. A respeito de um tema que anda em voga, a autoria, percebe-se que um campo de batalha marcado por questões insolúveis e disputas vacilantes, alvejado  diariamente de forma implacável por situações com um alto grau de ineditismo. Neste contexto, alguns veem um prejuízo irreversível para as noções de obra e autoria, com o agravante de que, para o autor propriamente dito (o compositor, o escritor, o roteirista), a vida nunca foi fácil...

Não obstante, a defesa da autoria aderiu ao liberalismo como mais uma tentativa de naturalização do capitalismo, devidamente acompanhada pela força policial e o serviço secreto. Porém, dificilmente se pode ignorar as objeções pertinentes de Bernardo Carvalho, um dos poucos a fazer um defesa da autoria de forma a extrair consequências plausíveis de um futuro que já está aqui, mas que não equacionamos devidamente. E, em sentido oposto, Hermano Vianna contribuiu para desconstruir a universalidade aparente do direito autoral, descentralizando o sentido vigente da expressão, citando um ensaio do antropólogo Alexandre Nodari, que expõe a relação conflituosa entre a posse e propriedade.

Nesse debate, porém, a discussão acerca da relação ambígua do autor com o valor-mercadoria ficou de fora. Flexibilizando ou conservando os direitos autorais, ainda assim conserva-se, de ambos os lados, uma forma de se escutar a música gravada. Assim, convém sublinhar a aderência imediata do autor à mercadoria universal, sob a forma de um modelo específico de apresentação: o formato, não o contrato. Independente da internet e do "contrato", o autor pereceria no sistema montado pelas grandes empresas na medida em que a petrificação do formato já lhe prejudicaria – antes da internet, compactos, singles e outros formatos menores, adequados para autores menos conhecidos, já eram coisa rara no Brasil... Portanto, não é a ausência de leis ou o seu descumprimento que prejudica os autores e a indústria, muito menos a flexibilização das relações comerciais, mas a cumplicidade cínica entre autores, indústria e uma noção comum do que vem a ser a “forma-mercadoria”. É o apego oportunista à mercadoria clássica, fundada sobre a noção de propriedade e apresentação material, o elemento cambiante que joga todo esse universo em uma crise sem precedentes.


II. Autoria/Audiofilias

Em contraponto a esta guerra, um grupo de jornalistas e pensadores insistem em defender o legado histórico e político do capitalismo anglo-saxão sob a perspectiva de elementos que são mais produto de um desenvolvimento ulterior do que propriamente o centro do universo. Me refiro à cultura audiófila anglo-saxã, que submete a vivacidade desses conflitos à prerrogativas técnicas e culturais, sedimentadas sobre o termo "audiofilia". Por isso gostaria de me ater a um exemplo determinado, no sentido de demonstrar ao leitor de que forma a maleabilidade dos formatos, da estética, das trocas culturais, políticas e econômicas, pode criar as condições para que eclodam soluções singulares, de maneira a repercutir no modo como as pessoas avaliam sua relação com a arte e seus respectivos suportes.

No caso da música, essa questão ressoa de forma particular, mais do que no cinema e nas demais artes. Não só porque os sons estranhos, ocasionados por dificuldades técnicas de amplificação e reprodução, podem ser incorporadas à concepção musical, como no caso do Konono N.1 – na medida em que o timbre estridente das kalimbas do grupo congolês é resultado da experiência "mal-sucedida" de amplificação. Mas porque indica que o contexo audiófilo comporta toda sorte de experiências, respaldando-se nas respectivas formas de se escutar e reproduzir a música.

Muitas vezes os processos de registro e reprodução são marcados pelo desequilíbrio, reproduzindo sonoridades sujas, fora de rotação, degeneradas, mixadas em tecnologias arcaicas, marcadas pela vulnerabilidade material do suporte diante dos maus tratos, entre outras características. Mas, ao mesmo tempo, encerram valores específicos que indicam outros modos de escuta. De tal forma que vale perguntar: diante da desconfiguração do formato na interação entre cultura digital e cultura online (pois elas não são correspondentes!), é possível cogitar a audiofilia como um campo de disputa? O que pode a apropriação criativa da tecnologia intermediária contra a grande indústria que sustenta a cultura audiófila ocidental, responsável pela aceleração do processo de produção tecnológica?




III. Encontrar uma arma...


No final do ano passado, correu à boca pequena o primeiro volume de uma compilação chamada Music from Saharan Cellphones Vol. 1, editado através do blog Sahelsounds. O americano Christopher Kirkley, responsável pelo blog, viajou para a Mauritânia e coletou MP3 extraídos de cartões de memória de telefones celulares, vendidos e trocados em feiras populares. Nessas localidades, na falta de computadores pessoais e internet banda larga, os celulares servem como suporte para armazenamento de dados e troca de informação digital. Através de conexões bluetooth, a troca de MP3 é intensa, o que incrementa a divulgação de um farto e precioso material musical oriundo da África Ocidental, como também nos traz mais um contra-exemplo de como a necessidade – a “escassez”, como escreveu Mark Richardson em artigo para a Pitchfork – pode fundar formas pregnantes de relação com a mercadoria. Este contexto propicia o amplo e irrestrito intercâmbio sonoro, fundado sobre outras bases de negociação política, estética e comercial.

Estética porque essa música, anteriormente escondida em condições extremas em lojas e espaços de armazenamento “presencial”, retornou à circulação com um raio de alcance bem maior, que extrapola o contexto africano. Os resultados da confluência de ritmos e estilos ainda serão medidos conforme a música influenciar o resto do mundo, tal como ocorreu com artistas americanos e ingleses, como Vampire Weekend, Franz Ferdinand ou Damon Albarn. Music from Saharan Cellphones Vol. 2 trouxe mais uma seleção de faixas da Mauritânia, a leste de Shinqit, mas não se sabia ao certo se havia uma procedência musical determinada, falha agravada pela ausência de informação nos pentes de memória, mas suprida parcialmente por trocas de informação pelo Facebook entre Kirkley e amigos.




O evento aparente traz consigo um conjunto de situações peculiares, comparado ao tipo de relação que o mundo ocidental desenvolvido mantém com a mercadoria. Alguns elementos que constituem o fenômeno são:
a) troca de arquivos sonoros através de conexão bluetooth, armazenados em cartões de memória para celulares;
b) conteúdo diversificado, na maioria contendo música da África Ocidental – afrobeat, salsa de Dakar, Highlife, Funana do Cabo Verde, Mbalax do Senegal, blues tamasheq, sintetizadores africanos como na excelente “Autotune”, do Níger, etc.
c) Faixas sem nome; disposição das faixas desvinculadas de álbuns e demais formatos consolidados nos grandes mercados;
d) resolução sonora relativa, embora muitas vezes haja uma variação considerável no resultado da digitalização de fitas cassetes e elepês.

Christopher Kirkley


Em cada um dos cartões de memória trocado nas feiras da Mauritânia e do Mali, podemos acessar uma avalanche sonora, mas Kirkley fez uma seleção particular para os dois volumes de Music from Saharan Cellphones. Para cada uma das faixas que integram a coletânea, pode-se supor uma imensa e longeva cadeia produtiva que perfaz este processo:

a) Os músicos e técnicos que realizaram a gravação;
b) Os profissionais que fizeram a arte gráfica, prensagem e distribuição;
c) A venda, a loja, os funcionários;
d) A sucessão de percalços que levam os álbuns a percorrerem um verdadeiro calvário até parar em alguma coleção europeia ou em um cartão de memória, tal como o balão vermelho de Hou Hsiao-hsien (para uma história dos objetos…) – ou, ainda, na coleção empoeirada de Ahmed Vall, dono da loja Saphire D'Or.
e) Convém destacar o trabalho de Kirkley, que viaja para os países da África Ocidental compilando músicas e registrando práticas artísticas e comerciais.
f) O Megaupload demais serviços de armazenamento de dados, que possibilitam a disseminação dos arquivos.
g) E os serviços de internet pelo mundo inteiro – o que em certa medida decide pela economia de downloads em cada região do planeta.


















Pois, seguindo essas pistas, evitando situá-las à contraluz do valor-mercadoria, chegamos a uma cultura audiófila diferente em relação a que é preconizada pela perspectiva anglo-saxã. Não somente uma outra perspectiva “musical” (melômana), mas uma outra perspectiva “audiófila”. Nem uma perspectiva evolutiva, nem uma perspectiva exótica, mas a própria perspectiva, imanente e insubstituível. O prazer, a fruição, a religiosidade, o mercado, a miséria, e uma tradição musical antiga e multifacetada, somadas às condições políticas, técno-tecnológicas e históricas, resultam em uma fragmentação radical da perspectiva audiófila, compartilhada por uma variedade de segmentos.

Esta fragmentação contrasta com a submissão ao valor-mercadoria convencional, prescrita pelos ideólogos do desenvolvimento, a respeito dos quais os povos africanos devem ter as piores opiniões. Se por um lado, o colonialismo ressoa na cultura africana sob a forma do ressentimento e do prejuízo psicológico ("O mais grave é que a miséria material se transformou em miséria afetiva e psicológica", como afirma Célestin Monga), não se pode negar a forma extremamente criativa com que a África Ocidental vem criando suas "linhas de fuga".

Com este argumento, não pretendo desvalorizar a reflexão a respeito das perdas de frequências, fidelidade, etc, ocasionadas pelo hábito de se escutar música no computador. Mas existem ganhos que não são passíveis de uma avaliação puramente técnica. Por este motivo a audiofilia não deve ser abordada como um conceito absoluto, meramente técnico ou histórico, uma tendência geek que valeria por si só. Antes, convém apreciá-la como uma noção antropológica, que comporta muitas possibilidades de relação com a escuta. É uma tendência da escuta – das muitas escutas possíveis – ambientar-se no seu universo sonoro específico e contingente, tanto no que diz respeito às demandas estéticas, quanto nas relações possíveis com o formato, o suporte, a resolução e o tipo de aparelho que opera a execução das faixas. A virtude aqui consiste em encontrar um conjunto de soluções culturais e ambientar-se nele de forma positiva, a despeito da precariedade técnica e da miséria. 

A "burguesia assalariada" não compreendeu que no capitalismo contemporâneo, o “lucro virou renda”, ocasionando a sobrecodificação desproporcional da mercadoria. E, no entanto, há uma contrapartida evidente em relação a esse tipo de apropriação, mesmo que ainda emerja sob o signo de uma nova hegemonia da comunicação, capitaneada pelo Google e o Facebook. A despeito de toda a polêmica a respeito da política de privacidade duvidosa dessas empresas, há que se reconhecer que ao menos promovem uma dinâmica cognitiva mais estimulante e abertas às linhas de fuga. Traçar uma linha de fuga corresponde a “produzir algo real, criar vida, encontrar uma arma”, e não se perder no imaginário... São exemplos de como a própria ausência de uma regulação mais rígida pode gerar situações alternativas (e factíveis) às que são hoje oferecidas pela grande indústria.

Bernardo Oliveira

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

(crítica – disco) Eliane Radigue – Transamorem–Transmortem (2011 [1973]; Important, EUA [França])




























1.
Parece consensual a percepção de que algumas obras e artistas demandam um tempo determinado para germinar na consciência da época, em virtude de uma série de fatores, técnicos, estéticos, filosóficos. Richard Wagner costumava lidar com o fracasso, tantas foram as vezes que, em busca de “obra de arte total”, esbarrava em dificuldades técnicas ou financeiras. Há também os entraves contextuais, em relação aos quais algumas obras descansam por anos, décadas e até séculos para encontrar seus interlocutores — ainda que nos dias de hoje, diante do volume monumental de produção, não se possa prever como se darão esses reajustes no futuro. Assim, vale sublinhar uma modalidade de reajuste técnico e estético que emergiu nos últimos anos a reboque da fragmentação da reprodução e do formato: a transliteração técnica do conceito de uma obra em outros modos de exposição, influindo decisivamente sobre o seu significado. 

2.
Desde 2004, o músico e pesquisador Emmanuel Holterbach organiza os arquivos da compositora francesa Eliane Radigue. Há mais de 40 anos, Radigue experimenta na seara da música eletrônica e eletroacústica, aprendiz e parceira de Pierre Schaeffer e Pierre Henry, e é uma dos grandes nomes a emergir do interesse arqueológico que reabilitou os pioneiros da produção musical eletro-eletrônica, como Catherine Christer Hennix, Daphne Oram, entre outros. O reconhecimento de seu pioneirismo lhe rendeu uma ampla retrospectiva em Londres, no ano passado. 

Concebida em 1973, “Transamorem-Transmortem” foi apresentada uma única vez por Eliane Radigue em Nova Iorque, no ano de 1974. Acompanhando as instruções referentes à execução da peça, composta no sintetizador ARP 2500, uma digressão acerca da abertura de um “espaço interior”.

“Esta fita monofônica deve ser executada em 4 alto-falantes dispostos nos quatro cantos de uma sala vazia. Tapete no chão. A impressão de diferentes pontos de origem do som é produzido pela localização das várias zonas de frequências, e pelos deslocamentos produzidos por movimentos simples da cabeça dentro do espaço acústico da sala. Um baixo ponto de luz no teto, no centro da sala, produzido pela iluminação indireta. Vários projetores de luz branca de intensidade muito fraca cujos raios, vindo de ângulos diferentes, se encontram em um único ponto.” (Eliane Radigue, 1973)














3.
Trata-se, portanto, de uma peça que explora a espacialidade em dois níveis. Primeiro, a espacialidade objetiva através da qual o som se propaga e cuja modulação propicia formas variadas de emissão das frequências. Mas também o “espaço interior”, que diz respeito não somente às alterações decorrentes dos deslocamentos do indivíduo no ambiente, como também aos efeitos subjetivos desses mesmos deslocamentos. A partir do release editado pelo site da Important Records, podemos perguntar: como escutar de forma remota uma obra composta para a apreciação in loco, constrangendo o ouvinte a seguir os limites impostos pelo formato-disco? Em outras palavras, como escutar uma obra com alto teor sinestésico como “Transamorem-Transmortem”, que implica em uma série de cuidados e prescrições, mas que se apresenta agora comprimida no formato-CD? Quando, em suma, uma obra elaborada para manifestar-se através de uma relevo sonoro acidentado e minuciosamente programado, além de portar uma grande abertura para o acaso, é transposta para o território limitado e aplainado do CD?

4. 
A transliteração – ou, em outros termos, a “licença poética” – que permite levar os pressupostos de “Transamorem-Transmortem” para o CD, diz respeito mais ao seu aspecto conceitual do que ao substrato propriamente sonoro. Não se pode acessar a mesma experiência através do CD, de modo que só podemos apreendê-la como uma outra experiência, que ainda assim, permanece batizada como “Transamorem–Transmortem”. E como se pode resumi-la, mesmo sem acessar suas prescrições primordiais? A julgar pela audição da peça, realizada com fone de ouvidos, arriscaria a hipótese de que a espacialidade subjetiva da obra “original” é ampliada pela compressão do formato-CD. Por mais que se perca o jogo com as frequências, produto do deslocamento do ouvinte no espaço, sublinha-se o caráter harmônico e letárgico da composição. Em uma hora e sete minutos de duração, Radigue explora a continuidade subjetiva mais do que o espaço objetivo, ainda que com pequenos movimentos de corpo – ou com o fone – sobressaiam as frequências mais agudas – experimente, por exemplo, levantar uma das abas do fone ou comprimi-lo contra o ouvido.

Vale ressaltar que apenas com o advento do CD, que comporta longas durações de forma contínua, a obra de Eliane Radigue pôde ser devidamente registrada e editada para lançamento. Esta possibilidade nos revela o talento de uma artista que sabe manipular o conceito e a técnica no mesmo passo, além de revelar um talento poético e abstrato para talhar as sonoridades com talento de escultora. Mas, acima de tudo, “Transamorem–Transmortem” é uma experiência atordoante, testemunha do talento inominável de uma artista que chegou a hesitar em utilizar a palavra “música” para definir seu trabalho.



quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

(crítica – disco) Siba – Avante (2012; s/g, Brasil)
























São muitas as virtudes que fazem o grande artista, e muitas são as perspectivas quando se trata de arte. Porém, pelo menos em nossa era, o grande artista é aquele que consegue, a partir de um material dado, dar à luz um recorte singular, seja referindo-se, seja desprendendo-se daquilo que lhe é legado. O debate acerca da possibilidade de emergência do “novo”, que se arrasta durante todo o século XX e invade o XXI sem pedir licença, resta carente de argumentos, pois não existe outra possibilidade para definir a criação humana que não se dê a partir de uma tensão entre o que já se passou e o que virá:

“Na descompressão do grito
De liberdade e revolta
Se abriram os portões pesados
Um touro bravo se solta
Quem parte berrando: avante!
Pode cair mas não voltar” (“Avante”)

Em Avante, Siba fornece mais argumentos para se inscrever com folga no rol dos artistas que conseguem parir o “novo”. Como no trabalho anterior, Toda vez que eu dou um passo o mundo sai do lugar (sem contar a parceria com Roberto Corrêa), o “cantautor” se destaca por obter conceitos e sonoridades próprios, sobretudo em relação ao substrato de suas canções, referente a gêneros nordestinos como a toada, o coco, o maracatu, o galope, entre outros. E o que é então esse “novo”? Ele se resume ao grito de “avante!” que batiza o álbum? Ou se refere à reabilitação dos gêneros abordados, prescritos aos guetos folcloristas? Trata-se portanto de uma motivação? De uma pesquisa? De uma inspiração sem maiores consequências? Reflexo de uma história pessoal? Todos os itens acima? A resposta vem sob a forma de poesia: o turbilhão dos acontecimentos pode ser representado pela imagem de um touro que se desprende, e a criação humana como esses indivíduos que partem berrando “avante!”, e que podem cair, mas não voltam…

Conceitualmente, seu trabalho se constitui a partir de dois movimentos, e isto se pode afirmar tanto de Avante, como dos discos anteriores. Primeiro, apropriar-se dos gêneros listados acima com naturalidade, tal como se trabalha com o rock, o samba e o reggae, compondo canções com temáticas variadas. Em segundo, experimentar na roupagem sonora, modificando-a conforme o conceito do álbum. Se no disco anterior, o grupo regional se mostrava adequado, desta vez Siba escalou Leo Gervázio, integrante da Fuloresta, na tuba, Samuel Fraga na bateria e Antônio Loureiro no vibrafone e teclados, além de tocar guitarra e viola. Produzido por pelo compositor, instrumentista e produtor Fernando Catatau (Cidadão Instigado), Avante se destaca pela inserção de vibrafone, tuba e guitarra nos arranjos, que resulta em uma sonoridade coesa, porém multifacetada. Tal combinação suscita nexos com a música pernambucana dos anos 70, o rock’n’roll dos 60, a jovem guarda, Cidadão Instigado e até mesmo hardcore (em "Canoa Furada"), mas guarda também a singularidade do diálogo instrumental, como se pode ouvir na sensacional combinação de guitarra distorcida e vibrafone na faixa-título, e na simbiose de afrobeat e maracatu na lírica de “Qasida”. Destaque para a vinheta “Mute/Um Verso Preso”, cuja textura demonstra as habilidades instrumentais de Siba, capaz de sintetizar rock’n’roll e viola nordestina nas guitarras – habilidade também perceptível nos pontuamentos "guitarrísticos" em “Avante”.



Envolvendo essa dupla característica, a sensibilidade excepcional de poeta, capaz de exprimir humor e plasticidade em versos como os de “Canoa Furada” (“E a canoa velha deixou/Muita água minar/Eu nunca aprendi a nadar/Será que essa água é molhada ?”), melancolia, como em “Brisa” (“A brisa, por ser carinhosa, é quem mais tem castigado”), e delírio, como em “Preparando o Salto”:

“Não vejo nada que não tenha desabado
Nem mesmo entendo como estou de pé
Olhando um outro num espelho estilhaçado
Que reconheço mas não sei quem é”

O exercício original da métrica e da rima, muitas vezes organizadas em formato entrelaçado, como em “Qasida”, “Canto de Ciranda na Beira do Mar” e “Ariana”, reforça a temática cotidiana, reiterando a visão particular do autor. Constituída por imagens oníricas, que contraditoriamente se desprendem do caráter aparentemente coloquial dos versos, a poesia de Siba manifesta a consciência ao mesmo tempo trágica e ferina de poetas nordestinos como Jorge de Lima ou Patativa do Assaré. Mas aqui, o trágico não se configura como sinônimo de tragédia ou mau agouro, mas uma compreensão do infinito, para além do bem e do mal…

“Imagens são balões presos
Por um cordão que se tora
Porque poesia é presença
De um vulto que não demora
O canto espalha no vento
E o tempo desfaz na hora.”

… e que também opera na seara do nonsense, criando impagáveis gags visuais como em “A Bagaceira”:

“No fim da bagaceira
Minha vista escureceu
Se alguém souber meu nome
Diga pra mim quem sou eu
Vou dormir na calçada
Abraçado a um cachorro
Pra uma alma sebosa
Me levar carteira e gorro
E ainda se dá mal
Pois não tem um real
Pode acabar-se o mundo
Vou brincar meu carnaval”



















À vontade entre a previsibilidade e a diferença, Avante confirma o talento de “cantautor”, apto a transfigurar o legado riquíssimo, deixado de lado pelas bandas “sudestinas”. Por fim, vale retomar a questão do primeiro parágrafo: o novo não é algo que irrompeu em tempos imemoriais para nunca mais voltar, mas, consequência inevitável, que surge no trabalho de alguns indivíduos que conseguem enxergar para além do horizonte de expectativa da grande maioria. Um desses indíviduos é Siba e Avante é mais um documento que atesta sua visão privilegiada. 

Bernardo Oliveira

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

(entrevista) Chinese Cookie Poets

Foto: Ervo Perez
O trio carioca Chinese Cookie Poets lança hoje o single En La Mano Del Payaso, como prelúdio para Worm Love, primeiro álbum do grupo. Junto ao single (que você pode escutar no player abaixo), o CCP também disponibiliza o clipe hilário da faixa “En La Mano Del Payaso”. É motivo de júbilo para todos aqueles que admiram o noise-rock-nu-funk-free-improv-no-wave-out-choro-free-jazz-latin-punk-proto-samba com o qual o grupo vem angariando fãs não somente pelas bandas de cá. Além do Rio de Janeiro (capital e Região dos Lagos), São Paulo (capital e inteiror) e Vitória, o CCP fez 5 shows em 3 cidades do Chile. Nada mal para um grupo de música experimental, que iniciou os trabalhos a menos de dois anos em uma cidade inóspita para este tipo de atividade.

Formado por Renato Godoy (bateria), Felipe Zenícola (baixo) e Marcos Campello (guitarra), o Chinese Cookie Poets lançou dois trabalhos até o momento: o EP homônimo de 2010 e o bootleg Dragonfly Catchers and Yellow Dog. Porém, em 2012, o grupo promete pelo menos mais 3 lançamentos até o meio do ano, entre trabalhos de carreira e parcerias. Quem estiver interessado em conferir o som do grupo ao vivo, terá a oportunidade no próximo fim de semana, dia 21 de janeiro, quando o CCP se apresentará na Casa do Mancha, em São Paulo, ao lado de outra boa surpresa carioca de 2011, o Sobre a Máquina – em ambas as apresentações, a participação do saxofonista Alexander Zhemchuzhnikov. Abaixo, um bate papo virtual que tivemos com os integrantes do grupo.

Bernardo Oliveira
Ps.: Na próxima quarta-feira, Thiago Miazzo entrevista o Sobre a Máquina.





Apesar de ter iniciado os trabalhos em 2010, o grupo apresenta um som maduro. Comecemos, então, pelo começo: como surgiu o Chinese Cookie Poets? O que vocês faziam antes de formar a banda?

Renato: Foi um processo de maturação bem natural e lento. Eu e Felipe tocamos desde o colégio, 1998. Tivemos dois projetos com uma direção puxada pro improviso, o Bossal (2000-2005) e o Muwei (2005-2009). O Felipe já conhecia o Marcos (que na época tocava no Fanfarra, depois no Farta Cecília) do estúdio de ensaio onde trabalhava e sempre esbarrávamos os três pelo Plano B na Lapa por volta de 2008. Após o fim do Muwei em 2009, eu e Felipe conversávamos sobre testar umas formações mais enxutas, duos, trios, abordando mais o free jazz, numa onda de fazer mais shows e praticar improvisação. Marcos e Felipe já esboçavam umas idéias, trocavam uns arquivos, marcavam umas sessões de improviso de baixo e guitarra (de onde surgiu “Flat Tire Bikes” do primeiro Ep).

Um dia bebendo uma cerva, Felipe me apresentou umas faixas com umas programações de bateria, pensando em fechar aquele material num EP. Na hora que ouvi gostei muito da proposta, mas achava que o resultado soava muito aquém do que seria se fosse alguém tocando mesmo. Foi quando propus de gravar umas baterias em cima, apenas pra registrar o EP sem intenção de formar uma banda. Em março de 2010 marcamos a sessão de gravação e aproveitamos pra registrar uns takes de improvisos. Os caras editaram tudo e me mandaram o material pronto. Ouvi o resultado, achei excelente e me toquei que precisava seguir com o projeto. Logo depois em julho surgiu a possibilidade de fazer um show na Audio Rebel (estúdio carioca) com o EKE (trio holandês de free jazz).

Foi quando o Felipe, depois de todo o processo de gravação/edição e já com as músicas prontas, me apresentou ao Marcos na véspera do primeiro ensaio pro show. Fizemos uns três ensaios e o show rolou. Aí a banda começou de fato, em agosto de 2010. O Ep mesmo só foi sair em dezembro. 

As influências parecem evidentes: free jazz e demais sonoridades instáveis, de Sun Ra a Otomo Yoshihide. O que vocês costumam escutar hoje? E quais os artistas contemporâneos que mais influenciam o CCP? 

Renato: Otomo é o cara, eu diria. Keiji haino e Tatsuya Yoshida, a cena de free europeia: Peter Brötzmann, Mats Gustafson, Zu, Moonchild do Zorn. A cena de Nova york anos 80 e 90, muito fértil, James Chance, Marc Ribot, DNA e Aggregates (trio do Arto Lindsay em 1995).

Felipe: Otomo é sem dúvida uma grande influência, assim como outros artistas japoneses como Boredoms, Melt Banana, Merzbow... Sobre nosso processo de edição/construção dos arranjos me influencio muito pela linguagem usada pelo duo Haino/Yoshida, mencionado pelo Renato. Fora isso John Zorn, free jazz em geral, Fantômas, Mr. Bungle, a cena No Wave... Também os trios Primus, Zu e Trans AM. “Baixisticamente” é impossível não impregnar o CCP com o som do Les Claypool, do Primus, faz parte da minha (de)formação como instrumentista.

Marcos: Frank Zappa e Alvin Lucier são grandes influências no que diz respeito à composição. Na guitarra, muito Derek Bailey, Marcelo Birck, Raphael Rabello, Brian May, John Russel, Fred Frith, Pepeu, João Bosco, Arto Lindsay. Atualmente tem o Hamilton de Holanda, Alex Macacek, Allan Holdsworth (não tão atual), Scott Henderson.

Como é o processo de composição do CCP? Quais as estratégias que vocês adotam no sentido de gerenciar os momentos de composicão e improviso?

Marcos: Temos dois processos principais de composição: a improvisação, de onde tiramos temas criados coletivamente, e a apresentação de idéias de cada um, que geralmente é feita através da produção de uma gravação tosca para indicar aos outros o caminho imaginado pelo autor.

O primeiro caso subdivide-se em duas frentes, sendo elas a gravação de sessões de improviso para posterior edição (onde surgem as músicas do disco), e a levação de som vendo o que sai, que também é gravada, mas de forma documental pra não perdermos o que acontecer de bom. No segundo caso, da música já imaginada por alguém, lapidamos até ficar decente pra ser tocada ao vivo ou lançada em disco – e geralmente a versão gravada é bem diferente da tocada em shows.

Respondendo a segunda parte da pergunta, nossa forma de conjugar composição/improvisação é mais empírica do que teórica; testamos partes improvisadas em meio a compostas e inserimos partes compostas entre improvisações. Outra situação é quando a música não tem um tema definido (o que geralmente significa que é mais textura sonora, ou então extremamente complexa para ser reproduzida literalmente). Nesse caso ou usamos a idéia geral da coisa como base pra improvisar ou então partimos para algo livre mesmo. 

Foto: Mauro Castro
No Myspace está escrito: “Para os sedentos por comparações, CCP percorre diversos estilos compostos e hypados, como Noise-Rock, Nu-Funk, Free-Prov, No-Wave, Out-Choro, Free-Jazz, Latin-Punk, Proto-Samba...” Classificar o trabalho é realmente importante ou trata-se de uma ironia? Ainda existem “gêneros” hoje em dia?

Felipe: Em um primeiro momento sentimos a necessidade de “classificar” o som da banda no release, pois acabávamos de surgir e ainda apresentávamos uma sonoridade que soaria “estranha” para a grande parte das pessoas que ouvissem. Por isso sentíamos a necessidade de contextualizar nosso som dentro das nossas influências. Mas com certeza, fizemos isso intencionalmente de forma irônica, uma auto-zoação, pois nessa hora é muito fácil acabar com um discurso pedante, excessivamente intelectualizado. E eu pessoalmente vejo todo o “escracho” existente no CCP como uma forma de quebrar esse excesso de pedantismo que permeia o meio “experimental”. 

Falem a respeito das gravações dos dois Eps. Foram retiradas integralmente das apresesentações? Vocês fazem algum tipo de pós-produção?

Renato: Nosso processo de gravação até agora tem sido um exercício interessante, pois trabalhamos muito na pós-produção, construímos e arranjamos muito na edição criativa dos improvisos, que gera resultados sempre improváveis, caminhos que não seguiríamos naturalmente. Depois do disco pronto, tem todo o trabalho de sentar e estudar o que foi criado mecanicamente. Por isso, no show, os arranjos ganham um sabor bem diferente, mais fluido pois usamos o espaço dentro das estruturas para executar tudo mais solto. 

Mas tudo isso depende do conceito inicial que vamos seguir no disco, sempre estamos conversando sobre essas possibilidades se vamos gravar ao vivo, separado, editar, sobreposição, 4tracks… Até agora, em estúdio não gravamos nenhuma música composta previamente, todos os arranjos foram feitos durante a pós, processo que usamos pra fazer o primeiro Ep e o próximo álbum. Já o bootleg Dragonfly catchers and yellow dog (segundo Ep) é um show gravado na Audio Rebel na íntegra. 

De qualquer forma, parece que há uma lacuna entre as gravações dos dois Eps e as apresentações ao vivo, pois percebe-se uma certa dificuldade para levar as nuances para o estúdio e vice-versa. Isto é previsto, ou vocês pretendem criar arranjos específicos para os próximos lançamentos?

Marcos: Na verdade o primeiro Ep foi feito em estúdio, sem sessões em que os três presentes, apenas takes em duplas e solos, com muita edição (onde surgiram os temas), num trabalho sem muita organicidade, mas com o objetivo justamente de criar algo minimamente orgânico – o que consideramos que foi atingido.

O segundo Ep foi o contrário, uma gravação tosca de um show nosso que ao ouvirmos achamos boa pela musicalidade. E nesse sentido ela mostra o fim do caminho de um dos nossos processos de composição, onde improvisamos/editamos em estúdio e depois aprendemos a tocar as músicas.

Com relação à diferença entre o show e os discos, na verdade às vezes temos dificuldade para levar as nuances da música editada para a situação de tempo real, pois o que está nos discos muitas vezes tem um suingue estranho, difícil de ser realizado ao vivo. Além disso, nos shows acontece muita coisa extra-musical que nos levar pra outros lugares aonde uma sessão em estúdio não tem chegar, assim como sessões também levam a lugares por onde os shows não passam. 

E sobre essas duas novas faixas? Serão parte de um EP ou um álbum de formato convencional?

Felipe: Estamos lançando agora o single En la mano del payaso, como uma prévia do disco que lançaremos até final de fevereiro, Worm Love, pelo selo Sinewave. Esse será nosso primeiro álbum, com 10 faixas. Elas foram produzidas de forma similar ao primeiro EP: fizemos uma sessão de improviso no início de 2011 na Audio Rebel, e durante o processo de pós-produção fomos editando, montando os arranjos a partir do material bruto. Ficamos satisfeitos com o resultado, bem cru, visceral, e ao mesmo tempo heterogêneo.

Há duas principais diferenças em relação à produção do primeiro Ep: dessa vez a gravação foi feita com os três tocando juntos, e o processo de edição dos improvisos foi em geral mais radical que o do primeiro EP. Nesse álbum a edição é mais explícita, funcionando como um quarto instrumento mesmo. O disco ainda conta com uma participação especial em uma das faixas. Agora o desafio está sendo em “tirar”os arranjos do disco pra tocar ao vivo… Quem for no show em SP, na Casa do Mancha (no próximo dia 21 de janeiro) já vai ter uma amostra desse material.

Além do single, estamos lançando hoje nosso segundo clipe, da música En la mano del payaso: um clipe pop pra uma música pop, é nossa "Ana Júlia", digamos assim.



O som do Chinese é, evidentemente, direcionado para um público específico, interessado em experiências, noise, e demais sonoridades. Como vocês avaliam as condições atuais de produção, distribuição, consumo e fruição para quem pensa a música fora das grandes estratégias de mercado?

Renato: Acho que nunca rolou tanta liberdade pra produzir. Distribuição é um grande problema, poucos selos especializados, poucos blogs interessados. Acredito que quando o foco é a música, não o mercado e se tem tempo, naturalmente as coisas começam a funcionar. O público vai procurando, umas pessoas passam pra outras. Pessoalmente acho que a divulgação “boca a boca” sempre foi o melhor meio, onde os músicos e projetos se criam, na rua. Apostamos muito na cena experimental do Rio, excelentes músicos, linguagens distintas, público pequeno mas fiel, apesar de micro é única. Começou com o Fernando no PlanoB uns anos atrás (onde participamos com o Bossal e Muwei 2005, no primeiro festival de música experimental carioca, o Outro Rio). Atualmente vem ganhando tentáculos no Quintavant (um coletivo de músicos criado em 2011 que vem organizando shows e sessões de improviso na Audio Rebel). É muito importante a criação de uma cena, um local definido onde músicos e o público troquem ideias regularmente, se criem e registrem projetos. Não somente situações esporádicas de um show ou outro, uma vez por ano, como era um tempo atrás. Com uma cena forte, consequentemente os projetos amadurecem e surge o interesse dos blogs, selos daqui e de fora, estamos caminhando.

Felipe: No âmbito da música experimental, falando em Brasil, há ainda o desafio de consolidar novas estéticas para um público ainda desinformado. Acho que hoje é importante o artista sair do seu nicho, e tocar para públicos diversos. E junto com esse processo, a tríade artista – mídia – público precisa se auto-sustentar/alimentar. Quando tocamos fora do Rio, ocorre um fenômeno interessante. Em todo show, geralmente parte do público acha aquilo tudo sem muito sentido… Mas ao menos uma pessoa nos procura, entusiasmada, dizendo que nunca ouviu nada parecido com aquilo e que o som é “muito doido”! Por isso é importante que todos esses agentes atuem paralelamente, o artista divulgando o som, e a midia contextualizando aquele momento; nós não participamos de  nenhum tipo de revolução musical, existem milhares de artistas, cenas pelo mundo afora nas quais nos espelhamos e é preciso que esse público interessado tome conhecimento do contexto no qual a banda atua. Tanto para poder usufruir de um imenso e interessante universo musical, já que há o interesse, quanto para, a partir disso, poder usufruir mais do que nós estamos fazendo, para além do “muito doido”. Mas para isso, acho que falta um diálogo maior os artistas e o público (maior circulação, viver a música na prática, como disse o Renato) e especialmente maior cobertura (embasada) das mídias alternativas, blogs, etc… Creio que assim teremos uma cena forte, concisa e de melhor qualidade também, porque a formação de um público informado e crítico influenciaria diretamente na produção artística.

Mesmo com todos os problemas e limitações, é evidente que há uma cena experimental se consolidando no Rio. Ela pode ser mínima, parcial, mas é maior que há 10 anos atrás. Claro que o Fernando e o Plano B tem importância fundamental nisso. Mas como vocês avaliam a emergência não só da Audio Rebel e do Quintavant como prepostos criativos, como também o surgimento de bandas e projetos dedicados à música experimental?

Marcos: Não sei se dá pra dizer que há mais atividade experimental hoje do que há dez anos atrás, mas talvez mais contato entre os vários tipos de experimentação, consolidando talvez o que você chama de “cena experimental”. Nesse sentido imagino que os espaços estejam também menos parciais, ortodoxos, podendo-se fazer projetos diferenciados, sem a necessidade de ser seguidor de uma estética específica.

Imagino a Rebel e o Quintavant como decorrências da atividade incessante do Plano B, uma expansão da proposta de apresentação de coisas sonoras quaisquer para um público interessado. E é interessante ver que ainda assim cada lugar tem suas especificidades, o que enriquece ainda mais a experiência de frequentá-los.

Finalmente, acho que muitos contatos são criados nestes lugares, muitos choques estéticos são vividos e muitas questões levantadas, e é isso que coloca o experimentalismo na roda, confrontando opiniões e gerando discussões, levando sempre ao contato com algo desconhecido ou ignorado. Daí surge um novo caminho, geralmente.

O que vocês curtem hoje na música brasileira?

Marcos: Eu ouço Teresa Cristina com grupo Semente, Hamilton de Holanda, João Bosco, Arismar do Espírito Santo, Chico César ...

Felipe: Do que há de novo, Domenico Lancelotti, Bixiga 70, Duplexx, Cidadão Instigado, Kassin, Negro Leo, Abayomy Afrobeat Orquestra, Ava Rocha…

Renato: Hoje em dia Rubinho Jacobina, Negro Leo, Cidadão Instigado, Kassin, Domenico, Ava Rocha, Rumpilezz Orquestra, Alberto Continentino (um dos discos mais clássicos que ouvi em muitos anos, deve sair esse ano), Stephane San Juan, Orquestra Contemporânea de Olinda também... Muita coisa boa acontecendo no Rio!

Fale um pouco a respeito do show do dia 21, na Casa do Mancha, em SP.
Felipe: Esse show vai ser foda! Há algum tempo estamos pra marcar um show com o Sobre a Máquina, que é uma banda bem interessante do Rio, dark/pop/ambient/post/drone! Nosso set será diferente dos últimos shows que fizemos. Voltamos a tocar músicas que havíamos parado de tocar, aproveitaremos a presença do grande saxofonista Russo/carioca Alexander Zhemchuzhnikov no show do SAM e faremos um improviso em algum momento. E, como falei antes, “tiramos” dois arranjos do Worm Love. Vai ser divertido. Levaremos cópias do single pra SP, em mini CD, pra quem quiser.

Depois do Worm Love, quais os próximos passos do CCP?

Marcos: Temos três discos que já estão gravados, em diferentes fases de produção, e pretendemos lançar todos no primeiro semestre de 2012. Os três são parcerias com músicos diferentes, cada um com uma direção bem peculiar. Uma das parcerias foi com o saxofonista argentino Sam Natch, inclusive divulgamos uma das faixas desse disco na ultima sexta-feira (13/01) no podcast do blog A Camarilha dos Quatro. Além disso, faremos uma turnê nacional com o trio instrumental suiço MIR no final de fevereiro/começo de março. Ainda temos um disco conceitualmente amarrado a ser gravado esperamos que em meados desse ano, e vamos tentar lançar até dezembro; e um outro acústico, mas esse ainda está no mundo das idéias. Apesar de tanto material, estamos mais preocupados agora em tocar, rodar por aí fazendo shows e conhecendo quem trabalha com sons mais experimentais, ou pelo menos instrumentais.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

(crítica - disco) Wilson Moreira + Baticun (1991-2011) (2011; Musicazes, Brasil)


Este talvez seja o álbum mais injustiçado nas famigeradas listas de fim de ano. Trata-se do encontro entre Wilson Moreira e o grupo percussivo Baticun, formado por Beto Cazes, Carlos Negreiros, Jovi Joviniano e Marcos Suzano. Sem dúvida, um dos maiores compositores da segunda metade do século XX no Brasil, Wilson Moreira é autor de sucessos como “Goiabada Cascão”, “Gostoso Veneno”, “Senhora Liberdade”, “Judia de Mim” e “Quintal do Céu”, as últimas duas gravadas por Zeca Pagodinho. Acompanhado pelo Baticun, registrou, entre os anos de 1988 e 1991, vozes e bases com a intenção de pleitear o auxílio do produtor e fotógrafo japonês Katsunori Tanaka – que também produziu Nelson Sargento, Velha Guarda da Portela e o próprio Moreira. O projeto não foi adiante e só agora, vinte anos depois, foi editado pelo selo de Cazes, acrescido de violão, cavaquinho, sopros, percussões e coral.

O resultado? Bem, posso afirmar, de saída, que contrasta radicalmente com tudo o que se faz hoje em termos de samba no Brasil. Vale notar como é significativo o fato de que esse contraste seja derivado da personalidade de Wilson Moreira, 75 anos, grande compositor e “solucionador cultural” carioca, que ao lado de Nei Lopes, compôs uma das parcerias mais prolíficas de toda a história do samba carioca. Conservou, porém, sua independência estilística, destilada através de pérolas como Okolofé, Peso na Balança, Entidades, ou nas que participou com o Partido em 5, de Antônio Candeia. Tradição e ousadia sempre caracterizaram seu trabalho.

Que os grandes órgãos de imprensa insistam inexplicavelmente em não lhe prestar a devida atenção, e que ele nunca habite a lista dos “cem mais da música brasileira”, apenas comprova a profunda importância de sua obra. A seu lado, outros grandes compositores como Luiz Carlos da Vila e Beto Sem Braço permaneceram a meio palmo de uma divulgação justa, evidenciando que a questão não passava somente por critérios estéticos… E, no entanto, se tornou habitual considerar a música desses autores sob o guarda-chuva do “samba de raiz”, ou samba “tradicional”. Mas a julgar exclusivamente pela música que emana desta colaboração, nada leva a crer que se pretendam ligados a uma “tradição” pétrea, ou a uma identidade musical limitada a certos procedimentos, timbragens, tipos de composição etc.. Pelo contrário, Wilson Moreira + Baticun evidencia uma tensão constante entre o legado e o futuro, entre o que já é sabido e adquirido e aquilo que é fruto de inesperados lampejos criativos. 

Assim, a faixa de abertura, “Abrindo os Trabalhos”, ouvimos um “aguerê” – ritmo de oxóssi, oriundo do candomblé – com percussões pesadas e um baixo grave que, num primeiro momento confundi com Massive Attack. À moda de um mestre de cerimônias, Moreira dá as boas-vindas ao ouvinte, e com seu sorriso característico,  brinca com a própria ousadia: “hiiiii, agora tá gostando né? Pode sambar, pode sambar, isso…” Na sequência, “Questão de Identidade”, demonstra como um eventual alistamento ideológico não restringe a criatividade de seus agentes. Trata-se de um jongo de refrão em versos brancos (i. é, sem rimas), cuja instrumentação se constitui apenas por instrumentos de percussão: duas práticas incomuns no samba carioca. 

“Só você não entendeu
A história está aí
Seu problema é pessoal
Que não assume onde nasceu”

É lícito considerar que tanto o significado do verso, como o título da canção, apontam para uma perspectiva abstrata acerca do conceito famigerado de “identidade nacional”. Porém, há uma farta literatura sobre o tema, e longas batalhas ideológicas ainda serão travadas a esse respeito – as inclinações didáticas do “cepecismo” não morreram, assim como o deslumbre diante da "diversidade"... Porém, considero uma hipótese discreta, mas válida: de que o mero soar da música incrível presente nesta colaboração possa trazer, com suas ondas invisíveis, mais do que questões, polêmicas e explicações sócio-científicas, mas uma resposta consistente e efetiva em forma de música. Música rica, jovial e festiva.

Um capítulo à parte são os arranjos e a instrumentação compostas pelo Baticun, que, primeiramente, foge à timbragem comuns às concepções padronizadas que marcaram o gênero nesses últimos vinte anos. Em comparação com este trabalho, o samba gravado hoje no Brasil abdicou da pesquisa de timbres. Reparem nas sonoridades pouco usuais em “No Talho da Madeira” ou no bravun “Negro Doce Amor”, atravessado por ataques de guizos e derbak. E mesmo em sambas como “Terreiro Grande”, percebe-se não só a inclusão de instrumentos pouco utilizados, como também empregados de modo atípico. Tal orientação transfigura o clima malemolente de algumas das canções de Moreira, conferindo-lhes um balanço forte e vibrante, reforçado pela jovialidade de sua voz, captada em um momento de grande vigor criativo. Um momento particularmente emocionante do disco é a entrada do deslumbrante naipe de sopros em “Ôloan”, arranjados por Henrique Cazes.

As letras de Moreira percorrem miríades urbanas, suburbanas e rurais, como na parceria com Nei Lopes, “Mulata do Balaio” ou no jongo/reggae “No Arrebol”; antigos hábitos e costumes, como na descrição extemporânea, quase poética, do trabalho madeireiro em “No Talho da Madeira”; a religiosidade afrobrasileira, em “Ôloan” e na corimba “Nanã”. Além de um domínio impressionante dos ritmos afrobrasileiros, que o permite explorar uma ampla variedade de inflexões poéticas e musicais, Moreira é artesão de canções, que sempre revela palavras e ritmos invulgares, para não dizer inusitados. A combinação deste talento com a ousadia dos arranjos do Baticun, portanto, é absolutamente bem-sucedida, uma surpresa em todos os sentidos. Que este projeto tenha ficado tanto tempo engavetado só confirma o que se suspeita desde a primeira audição: de que se trata de um trabalho adiante do seu tempo. 

Bernardo Oliveira