Concluindo a série Bad Trip Simulator, iniciada em 2010, o brasiliense Satanique Samba Trio demonstra que pretende resistir dentro de uma proposta estética que dificilmente se pode comparar a de qualquer outro grupo brasileiro. No terceiro volume da série Bad Trip Simulator, o Satanique persevera na combinação prodigiosa de música instrumental com forte influência da música nordestina (Hermeto falando alto!), com interferências alienígenas tais como ruídos, efeitos, ironia cruel, nonsense, palavrões, berros. A intenção é evidente e enunciada claramente por Munha, baixista e idealizador da zorra toda: trazer para o centro da música instrumental brasileira todos os elementos que foram expurgados de sua estrutura — sobretudo se tomarmos como referência a tendência yuppie que caracterizou parte da música produzida na década de 80. Deste modo, a iconoclastia é a senha para adentrar no estranho mundo do Satanique Samba Trio.
A começar pelo fato de que não são propriamente um trio, mas um quinteto. Formado por Munha no baixo, RC na viola caipira, Etos Jerônimo no clarinete, Jota Dale no cavaco, Lupa na bateria, André Togni na percussao, o Satanique lançou o EP Misantropicália em 2004, o álbum Sangrou em 2007, Bad Trip Simulator #2 em 2010 e Bad Trip Simulator #1 em 2012. A sequência desordenada não nos deixa mentir: após o Bad Trip Simulator #2 (2010) e o #1 (2012), só poderia aparecer o volume 3, a pseudo-conclusão da série de faixas que pretendem alçar o ouvinte a uma sensação de “onda errada”.
Ora, a “onda errada” nada mais é do que a junção, no mesmo contexto, dos temas e batuques do baião jazzístico com os elementos alienígenas que são introduzidos no corpus sagrado da “música instrumental”. Ocorre que, aparentemente, neste terceiro volume, o foco incide mais sobre os ritmos propriamente “brasileiros” do que nas fraturas que possibilitam a “onda errada”, isto é, os ruídos e intervenções irônicas. Eu disse “aparentemente”, pois a audição revela outras possibilidades de interpretação.
Ora, a “onda errada” nada mais é do que a junção, no mesmo contexto, dos temas e batuques do baião jazzístico com os elementos alienígenas que são introduzidos no corpus sagrado da “música instrumental”. Ocorre que, aparentemente, neste terceiro volume, o foco incide mais sobre os ritmos propriamente “brasileiros” do que nas fraturas que possibilitam a “onda errada”, isto é, os ruídos e intervenções irônicas. Eu disse “aparentemente”, pois a audição revela outras possibilidades de interpretação.
Talvez o maior mistério do Satanique seja o seguinte: trata-se de uma música aparentemente disciplinada, resultante de um disciplinado processo de composição, mas que exala festa, euforia e, eventualmente, o caos. Como? É evidente que Munha, enquanto compositor, investe no equilíbrio entre o aspecto harmônico e melódico, mas parece que essas duas instâncias são como que absorvidas pelo ritmo. E esta "percussividade" fundamental se reflete de forma evidente no caráter festeiro das onze faixas.
Por exemplo, em “Imoboi”, o boi é desempenhado pelo saxofone barítono de Zé Castello, numa sequência de notas graves; novamente uma melodia em loop descreve sua rota rítmica em conformidade com as dinâmicas da percussão, tornando percussiva sua própria a intervenção. Guitarra, pífanos, viola capipira sobrepondo-se nas modulações sucessivas, a todo momento uma ciranda de texturas e temas, mediadas pelo mesmo aspecto percussivo.
Por exemplo, em “Imoboi”, o boi é desempenhado pelo saxofone barítono de Zé Castello, numa sequência de notas graves; novamente uma melodia em loop descreve sua rota rítmica em conformidade com as dinâmicas da percussão, tornando percussiva sua própria a intervenção. Guitarra, pífanos, viola capipira sobrepondo-se nas modulações sucessivas, a todo momento uma ciranda de texturas e temas, mediadas pelo mesmo aspecto percussivo.
Na abertura, com a festiva “Pipocalipse”, modulações e convenções em modo frenético; efeitos sonoros súbitos, sopros pontuais, micro-interlúdios dentro das próprias composições: um grau de excitação que indica um diálogo essencial com o frevo de Recife. Já em “Badtriptronics #3”, a alternância de andamentos simultaneamente singela e cavernosa, no qual se pode escutar duas melodia em contraponto, reforçando o ritmo, timbres de guitarra, cavaquinho, percussões e demais efeitos sonoros.
A prioridade da composição sobre a instrumentação, ao transformar os instrumentos em agentes do ritmo, reforça o clima de festa. É o que se observa nas pausas nervosas e nas alternâncias de clima e modulações que atravessam as concepções de faixas como “Forró mata” e “Sodoma & Gonzaga”, mas também nas justaposições de frases melódicas em ostinato, como no caso de “Hematuria of the gods” (logo na abertura, com rabeca, guitarra, sopro, efeitos), ou nas pequenas células que se repetem em “Hellcife Blues”. Nota também para a estrutura progressiva de “Auto da Maldita”, cujo tema se repete em função de um clima de anunciação, até eclodir em uma conclusão súbita sob o efeito da guitarra distorcida.
Bad Trip Simulator #3 reproduz constantemente a figura da anomalia através de uma viagem por dentro do corpo moribundo que pretende expor e ressucitar. Se os investimentos anteriores depunham em favor de uma certa má vontade para com os rigorosos ditames rítmicos do baião, desta vez é se valendo das quebradas e engenhos típicos desta linguagem misteriosa que a iconoclastia do grupo se mantém intacta. E duradoura, espero.
Bernardo Oliveira
4 comentários:
Porra, que pedrada de texto! Parabens à banda, ao escritor e todos os envolvidos.
Bernardo Oliveira, um punheteiro sagaz e de ouvidos aguçados. Excelente texto à altura do disco.
Essa galera (tanto a banda quanto o blog) não dá ponto sem nó.
Musée de Quai Branly, à Paris...
L´état, le lieux et le temp à vôtres pieds ...
Avant, Monsieurs et Dammes!
Le jour de glorie est arrivé!...
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