terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Música que veio da África em 2014, por Lúcio Branco

Aby Ngana Diop


































Antes de tudo, peço perdão pelo considerável espaçamento entre as minhas contribuições ao Matéria. Não fugindo à pauta das minhas resenhas publicadas no blog, vou tentar, de algum modo, compensar essa longa ausência com uma lista dos melhores lançamentos do ano no segmento da música africana. Um ponto que salta à vista nesta seleção é a presença de artistas nigerianos, dado nada surpreendente para quem é minimamente familiarizado com o universo em questão.

2014 segue a tendência recente de valorização da música produzida no Continente-Mãe desde a década de 1960. Coletâneas de raridades vintage e lançamentos de veteranos que entenderam que manter a integridade artística, para além dos padrões ditados pelo famigerado escaninho da “world music” no mercado, é a senha. (Um parêntese: talvez falte uma discussão mais a sério sobre os efeitos disfuncionais que arranjos equivocados e outros procedimentos infelizes produziram à música africana justamente no primeiro “surto” da sua maior popularidade, nos 1980; e não só nesse filão musical, me parece – seria um Mal da Década?) Resumindo: essa integridade atende à demanda de uma geração que aprendeu a se relacionar com música graças à internet, que lhe permitiu o acesso a uma produção anteriormente restrita ao circuito africano e, a posteriori, praticamente ao público europeu, em excursões eventuais.

Comecemos pelos majoritários nigerianos...

O documentário Finding Fela, até o momento apenas exibido na programação de festivais de cinema no Brasil, rendeu uma trilha sonora que reúne faixas que comumente não figuram nas coletâneas de Fela Kuti. E o mérito dos responsáveis pela seleção não é pequeno. É uma amostragem que introduz bem ao universo do músico, o que aponta para a abrangência criativa e numérica do seu repertório. Talvez o mesmo não se possa dizer com relação ao filme, cuja linha narrativa é muito calcada no musical da Broadway que acabou por dar maior projeção ao nome e à lenda do síndico da Kalakuta Republic nos últimos anos. Uma “estratégia de propaganda” que muito provavelmente não seria aprovada pelo próprio. É preciso dizer que a condição de existência da produção do documentário foi ditada pelo êxito do musical, daí a sua inevitável narrativa metalinguística.




E por falar em afrobeat e “cinebiografia”, Tony Allen, com seu Film of life, faz mais do mesmo, o que significa, nos seus termos, nunca ser o mesmo. Aquele que é tido – e não por poucos – como o maior baterista em atividade no planeta, dá provas, mais uma vez, de que o seu compromisso é com a inovação contínua nas 13 faixas do álbum. Falamos em afrobeat e já nos corrigimos: com as suas baquetas, Tony Allen ainda toca afrobeat, mas, desde que se evadiu do Africa 70, em 1978, não é mais dentro das fronteiras do gênero que concebeu com Fela, nove anos antes, que ele assina as composições dos seus trabalhos recentes – talvez apenas os seus primeiros álbuns possam ser enquadrados no afrobeat. A lista de convidados de Film of life tem uma dupla de nomes de peso: Manu Dibango e Damon Albarn. Ambos são responsáveis pelos melhores momentos de um álbum que é dançante da primeira à última faixa.



Ainda no domínio dos veteranos nigerianos, o clássico Orlando Julius lançou, este ano, Jayiede Afro. Ele faz, agora, o mesmo que Mulatu Astatke fez há alguns anos atrás: juntou-se aos ingleses Heliocentrics para lançar um álbum só de faixas inéditas. Absolutamente fiel ao estilo que o consagrou como um dos grandes da fusão do highlife com o soulfunky na Nigéria, Orlando surpreende com o fôlego que apresenta aos 71 anos. A típica percussão iorubá que faz a base para o seu canto e o seu sax em Jayiede Afro, por mais que inevitavelmente ainda se relacione com a cultura rítmica que gestou o afrobeat, não faz dele um nome na linhagem musical criada por Fela Kuti e Tony Allen. O jazz, gênero que, juntamente ao highlife e ao soulfunky formam o tripé do afrobeat, não é o elemento estruturante das composições repetitivas de Orlando Julius. (Isso é a constatação necessária da marca do seu estilo, e não uma restrição a ele – muito pelo contrário.) Boa parte de Jayiede Afro é instrumental, o que dá prova da competência dos Heliocentrics como banda de apoio de veteranos da relevância dos mencionados.




O mestre Peter King teve o seu magistral Omo Lewa, de 1976, relançado este ano. Fontes internas nos informam que o ainda vivo (embora bem doente) King é dos poucos músicos nigerianos que não celebram a memória de Fela Kuti. Peter King cultiva o ressentimento por ter sido ofuscado pelo criador do afrobeat que, após atingir o status de lenda já em vida, conseguiu colocar todos os seus concorrentes em segundo plano. A indústria e o público perderam a oportunidade de conhecer, mais a fundo, a obra de um mestre que também soube fundir soulfunky e jazz como ninguém. A ausência do viés político e a presença tímida do highlife, talvez tenham comprometido, em algum grau, o apelo da música de Peter King junto a uma faixa mais extensa de apreciadores. Uma injustiça que o relançamento tardio de Omo Lewa, esperamos, repare.




Hungry Man, do Keyboard, dueto nigeriano Keyboard formado por Broderick Majwua e Isaac Digha, pelo que se levantou em pesquisas, foi lançado em 1978. Que se diga logo: é uma obra-prima. Fazendo jus ao nome da banda, os teclados são o mote das seis composições desta raridade felizmente relançada na íntegra. E os arranjos de guitarra e metais só fazem o conjunto da obra ir além, itinerário e destino certos de toda música que é crucial. A sonoridade é muito similar à de gravações de artistas locais como Tony Shorby, C.S. Crew e Pazy & the Black Hippies, ou de um ganês como Gyedu Blay Ambolley. Repito: Hungry Man é um monumento.




Atendendo pela mesma dimensão criativa, e vinda da safra dos 1980, temos a nigeriana Aby Ngana Diop com o seu Liital, um ataque polirrítmico em grande parte orientado por djembes em ponto de tensão máxima. Caso a conheça (e muito provavelmente a conhece), David Byrne deve tê-la na galeria dos seus músicos africanos prediletos. Talvez o PIL, de John Lydon, possa ser apontado da mesma maneira, caso levarmos em conta o uso de sintetizadores, aqui. O rótulo fajuto de “world music” é nocauteado em cada nota/batida/modulação vocal de Liital. O canto de Diop e o coral que a acompanha complementam a complexidade rítmica dos djembes numa trama indiferente à noção ocidental de diálogo harmônico entre vocal e instrumentação.



E o que dizer do recém-descoberto William Onyeabor? Em 2014, este artista adotado pela crítica e por aficionados em música africana foi contemplado com duas compilações que revisitam a apresentam, num espectro mais amplo, a sua obra agora saída de vez da sombra: CD Box Set e Boxset 1. O mestre nigeriano da eletrônica virou até tema de documentário que explora a faceta do seu relativo ostracismo artístico no passado e o seu atual e voluntário ostracismo pessoal no presente. O artista, encontrado após intensa investigação do manager da Luaka Bop, selo que tem lançado sua obra, não quer dar entrevistas sobre nenhum desses dois momentos da sua vida. Sua trajetória tão genial como obscura rendeu o documentário Fantastic Man.




Voltando ao afrobeat, tratemos de Seun Kuti, que, neste 2014 que se encerra, apresentou-se mais uma vez em solo brasileiro por ocasião da turnê de um novo álbum que, talvez, destoe dos anteriores em alguns aspectos. Porém, não se deixe enganar: é um trabalho, em grande medida, fiel ao estilo consagrado pelo seu pai. A adoção de um gênero como o rap em duas faixas tem o dedo do produtor Robert Glasper – que é, também, pianista de jazz. Para os puristas, talvez o músico de 31 anos brilhe menos em A Long Way to the Beginning. Longe de ter fugido do ritmo que é a razão de ser da sua carreira (este é, sem dúvida, um álbum de afrobeat), Seun deixa claro desta vez que conhece e quer explorar outras searas musicais. Fã declarado da cultura hip hop, ele já parecia indicar, há tempos, impaciência por abraçá-la de algum modo. Mas não o faz ele mesmo. “IMF” tem a participação do rapper M1, da dupla americana Dead Prez. Em “African Smoke”, Seun cede a vez para o MC ganês Blitz The Ambassador, com quem, em troca, colaborou na gravação de “Make You No Forget” de seu álbum Afropolitan Dreams, lançado simultaneamente com Long Way. “Ohun Aiye” é mesmo highlife, só que num compasso mais acelerado que o usual, como é do feitio da Egypt 80. Dispensável dizer que “Kalakuta Boy” é autobiográfica – porém, não que é uma das melhores faixas do álbum. A Kalakuta Republic, a comuna autônoma fundada por Fela Kuti no coração de Lagos, foi o lar de Seun desde o nascimento até poucos anos atrás. A força dos metais da Egypt 80 faz voarem alto “African Airways” e “Higher Consciousness”. A cantora germano-nigeriana Nneka faz intervenções em “Black Woman”, a faixa mais lenta das sete do álbum. Só muita má vontade poderia acusar essa presença pop de “concessão” a algo que pudesse merecer o rótulo de “world music” – como, de fato, tantas vezes já fez o seu irmão mais velho, Femi, ao longo da carreira. Em suma: pode-se dizer que, em 2014, o afrobeat ganhou mais um trabalho à altura das aspirações do seu criador.



Agora, saindo do terreno nigeriano...

Apiafo, da Vaudou Game, para um crítico mais movido pela má vontade do que qualquer outro critério mais proveitoso de avaliação é de um oportunismo autoevidente. A audição rápida do álbum remete automaticamente às coletâneas recentes da Orchestre Poly-Rythmo de Cotonou, ou, ainda, à magistral African Scream Contest, do selo alemão Analog Africa, lançada em 2008 e que colige algum afrobeat e, principalmente, a (re)apropriação do soulfunky produzido no Togo e no mesmo país de origem da Poly-Rythmo: Benim. (Inclusive, é mais do que esperado o lançamento do prometido segundo volume de African Scream Contest.) Não há mistério mesmo quanto às fontes sonoras dessa banda que segue a tendência da Owiny Sigoma Band, ao reunir músicos africanos e europeus. O que surpreende é que o espectro da Vaudou Game é mais amplo: cabe nele, também, referências explícitas ao ethio jazz e, ainda no registro do soulfunky, à queniana Matata, referência de peso para qualquer interessado pelo resgate do “elo perdido” da produção africana dos 1960/70/80. O que reforçaria as restrições àquilo que apontamos como suposto oportunismo no atual momento de valorização dessa produção. Mas que se ache o que quiser. O fato é que Apiafo é mais que digno de menção. Os cacoetes podem ser por vezes até óbvios (no vídeo de “Pas Contente”, até o uniforme de palco com o qual a Poly-Rythmo se apresentava nos 1960/70 é emulado), mas se trata de um trabalho que reúne 12 faixas que só atestam o talento dos seus criadores em reeditar um som ao qual tiveram acesso graças à atual voga de valorização dos sons afro. Fenômeno – supõe-se – curiosamente extensivo até mesmo aos músicos nativos da nova geração. O crítico mais implacável não poderá deixar de concluir que essa geração intercontinental está mesmo antenada com uma tradição cultural que, agora, pode ser avaliada com um senso de medida mais proporcional ao que merece a sua envergadura.




O desert blues, ou tuareg blues, comparece na nossa lista com três títulos: Akal Warled, de Irmarhan Timbuktu, The Tapsit Years, de Terakaft, e Emmaar, do mais popular Tinariwen. Diversa nas suas semelhanças, a abordagem contemplativa sobre o Saara está no trio de álbuns com mais ênfase ora na marcação rítmica das palmas, ora nos solos de guitarra. Arranjos acústicos também compõem a fórmula – no caso do Tinariwen, é mais frequente que nos seus trabalhos anteriores.




O Zamrock, gênero genuinamente zambiano, é representado por dois relançamentos: Day of Judgment, original de 1976, é o primeiro álbum da Ngozi Family, banda liderada pelo guitarrista e vocalista Paul Ngozi, falecido ano retrasado, e Give Love To Your Children, de Musi-O-Tunia. Rikki Ililonga, talvez o mais célebre representante do Zamrock, é o segundo homem no disco. Ao contrário de Paul Ngozi, Ililonga está vivo e em plena atividade.




Da Etiópia, temos um relançamento de 1977, o quase integralmente instrumental (há um discreto coro feminino numa das faixas) Tche Belew, de Hailu Mergia & The Walias. A Walias Band, aqui no apoio a Hailu Mergia, contava entre seus integrantes com nada menos do que Mulatu Astatke e Mahmoud Ahmed. Mas os serviços vocais do genial Ahmed não foram escalados nas 10 faixas de Tche Belew. Neste álbum está a clássica “Musicawi Silt”, regravada pela norte-americana Antibalas Afrobeat Orchestra quando ainda atendia pelo nome de Daktaris, no seu único álbum, Soul Explosion, de 1998. A série Éthiopiques, em seu nº 29, traz Kassa Tèssèma num apanhado de treze faixas do seu som introspectivo, feito de uma só trama soturna de voz e poucas cordas.



O Congo é representado especialmente na nossa lista pelo álbum novo dos Kasai Allstars. O seu título é um aviso dos mais necessários e eloquentes contra qualquer inclinação a folclorismos e culturalismos com os quais se costuma enquadrar, entre nós, a cultura africana: Beware the Fetish. A rigor, é uma lição de casa ainda não feita por nossa tradição crítica na área musical. Não temos dúvidas de que, quando ela finalmente se iniciar, as kalimbas eletrônicas dos Kasai Allstars soarão gratas. Beware the Fetish é um álbum que se encaixa na categoria de melhores do ano, independente de gênero. Os destaques ficam por conta de “He Who Makes Bush Fires for Others”, sua quinta faixa, cuja linha repetitiva de guitarra hipnotiza, e a última, “The Ploughman (Le Laboureour)”, que dá a impressão de que a caixa de som pode estourar a qualquer momento.


Mas saiba o leitor que há mais, tanto nesta lista, como para além dela. Nela, propriamente, comparece o que mais sobressaiu conforme o meu gosto – o que é, de todo, uma limitação. Espero que ele esteja, até onde alcança, conforme o seu.

Aqui vai a lista, em ordem alfabética:

Aby Ngana Diop – Liital (2014)

African Gems (2014)

Beyond Addis: Contemporary Jazz & Funk Inspired by Ethiopian Sounds from the 70′s (2014)

Dexter Johnson & Le Super Star de Dakar – Live à l’Étoile (2014)

Fela Kuti – Finding Fela: Original Motion Picture Soundtrack (2014)

Francis Bebey – Psychedelic Sanza 1982-1984 (2014)

Hailu Mergia & The Walias – Tche Belew (1977, Reissue 2014)

Imarhan Timbuktu – Akal Warled (2014)

Kasai Allstars – Beware the Fetish (2014)

Kassa Tèssèma – Éthiopiques 29: Mastawesha (2014)

Kassé Mady Diabaté – Kiriké (2014)

Keyboard – Hungry Man (2014)

King Ayisoba – Wicked Leaders (2014)

Les Ambassadeurs du Motel de Bamako – Les Ambassadeurs du Motel de Bamako (2014)

Malawi Mouse Boys - Dirt is Good (2014)

Mamadou Diabaté – Griot Classique (2014)

Musi-O-Tunya – Give Love to Your Children (2014)

Muyei Power – Sierra Leone in 1970s USA (2014)

Ngozi Family – Day of Judgement (1976, Reissue 2014)

Noura Mint Seymali – Tzenni (2014)

Orlando Julius & The Heliocentrics – Jaiyede Afro (2014)

Peter King - Omo Lewa (1976, Reissue 2014)

Riverboat Records: Music from the Source (2014)

Seun Kuti & Fela’s Egypt 80 – A Long Way to the Beginning (2014)

Sidiki Diabaté & Toumani Diabaté – Toumani & Sidiki (2014)

Sierra Leone’s Refugee All Stars – Libation (2014)

Survival - Simmer Down (1977, Reissue 2014)

Terakaft – The Tapsit Years (2014)

The Funk Ark – Man is a Monster (2014)

The Rough Guide to African Blues: Third Edition (2014)

The Rough Guide to the Music of Mali (2014)

The Souljazz Orchestra - Inner Fire (2014)

Tinariwen - Emmaar (2014)

Tony Allen – Film of Life [Deluxe Edition] (2014)

Vaudou Game – Apiafo (2014)

Verckys et l´Orchestre Vévé – Congolese Funk, Afrobeat & Psychedelic Rumba 1969​-​1978 (2014)

William Onyeabor – Boxset 1 (2014)

William Onyeabor – CD Box Set (2014)

Woima Collective – Frou Frou Rokko (2014)



2 comentários:

Unknown disse...

Excelente lista, excelente matéria! Muito boa mesmo, agradeço de coração! Passei o fim de ano mais feliz escutando as músicas da lista.
Fiquei muito impressionado com a Aby Ngana Diop. Coisa incrível mesmo!
A coletânea African Gems é demais também.
Valeu! Essa lista encheu meu coração de alegria :)

Lucio Branco disse...

Valeu, Rodrigo! Aby Ngana Diop é um monstro rítmico
!