quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

DERIVAS: NOTAS SOBRE EDUCACÃO E EXPERIMENTAÇÃO




A provocação inicial parte do poeta Décio Pignatari: “Por que não se formam escritores nas faculdades de Letras?”

Uma primeira resposta, parcial e fragmentária, pode começar com algumas ideias sobre as relações entre vida e saber, vida e conhecimento.

Para o filósofo holandês Baruch de Espinosa (1632-1677), o conhecimento é "o mais potente dos afetos". O tradicionalista malinês Tierno Bokar (1875-1939) afirma que o saber é "uma luz que existe no homem" e “a escrita é a fotografia do saber, não o saber mesmo". Para o filósofo napolitano Giambattista Vico (1668-1744), assim como para Friedrich Nietzsche (1844-1900), “conhecer é criar”. Alfred Whitehead (1861-1947), pragmatista inglês, escreve que “desde os primeiros passos de sua educação, a criança deveria experimentar a alegria da descoberta” (alegria em Espinosa corresponde ao “aumento da potência de agir e pensar no mundo”). A escritora e ativista norte-americana Bell Hooks (1952- ) acredita que “quando os alunos se vêem mutuamente responsáveis pelo desenvolvimento de uma comunidade de aprendizado, oferecem contribuições construtivas.”

“Por que não se formam escritores nas faculdades de Letras?”

Uma segunda resposta, atravessada: para formar seres capazes de CRIAR, o horizonte da educação deveria ir além do díptico instrução-formação assumindo a alegria da descoberta (o aumento da potência de agir e pensar) e o registro da educação como o espaço-tempo de experimentação-criação.

Experimentação-criação são características inegociáveis dos processos de aquisição-criação de
conhecimentos
saberes
experiências
conexões
convergências

Educar não corresponde necessariamente a um processo de formatação do comportamento, de formação instrutiva contínua e habilitação para o trabalho e a sociabilidade. Educar não diz respeito somente aos estabelecimentos, instituições de ensino, seus métodos, modelos e modos de "ensignagem". Educar não é produzir competências nem adestrar para a assimilação eficaz das palavras de ordem. Crítica ao oportunismo obsoleto e elitista impresso nos modelos educacionais vigentes, modelos caucados na autoridade e no díptico instrução-formação.

Educar consiste em uma prática vital e contínua de trocas e convergências articuladas entre vontades, experiências e saberes, dentro e fora dos estabelecimentos de ensino.

Educar: invocar a potência de agir e pensar:

a potência dos afetos
a potência de criação
a potência de ser ativo e receptivo
a potência de ser em ato (essência/existência)

Educação é um processo complexo que envolve pelo menos três dimensões vitais, não necessariamente atreladas aos estabelecimentos de ensino:

o sistema/indivíduo
o ambiente/meio
as conexões/relações

Nos três registros, sublinham-se coordenadas relacionais e potenciais capazes de transformar não somente os educandos, como também o professor e todo o aparato multifário que envolve as relações comunitárias.

Para isso, algumas propostas efetivas para abolir o muro coercitivo que separa o aluno da instituição-conhecimento, propostas capazes de liberar linhas dinâmicas entre as três coordenadas fundamentais: o sistema/indivíduo; o ambiente/meio; as conexões/relações.

ALTERAR OS PARADIGMAS na EDUCAÇÃO BRASILEIRA

— Remediar o abismo entre ensino superior/técnico (federal) e escolas do ensino fundamental e médio (municipal e estadual). Criar condições para fluxo entre formações para além da escola.

— A escola e a universidade podem alterar o foco: a formação e a instrução são parte de um processo mais amplo, que é “produzir, simultaneamente, o ensino e a coisa ensinada”: foco na pesquisa (experimentação e Invenção: McLuhan).

— As salas de aula serão convertidas em laboratórios; as turmas serão transformadas em equipes de trabalho e pesquisa: fim da periodização e dos créditos (a turma precisa conhecer a si mesma e aos outros); fim do inchaço curricular (a turma precisa de tempo para trabalhar); o professor abre mão de controlar o aluno com sua meticulosa economia da presença e do tempo; cinco períodos de um ano formando cinco anos de graduação; menos matérias (redução de 60%).

— Exercícios práticos: produzir levantamento de dados, articulação de experiências, discussões em sala de aula para avaliação conjunta das atividades, trabalhos de campo, a própria universidade convertida em "campo".

— Laboratórios multimídia, encontros combinados (não-obrigatoriedade de cumprir escala). Maior eficiência quanto maior o interesse autêntico. Especialização mediada pelo equilíbrio entre verticalidade (profundidade) e horizontalidade (relação).

— Derrubar o muro policial, disciplinar e coercitivo que separa o professor do estudante, o próprio professor convertendo-se em estudante. Relações autênticas de amizade e parceria.

— O muro coercitivo é constituído:

pelo "grande outro" institucional, que transforma a escola em instituição disciplinar — oportunismo do capital sustentado pelo estado;
pelo aparato de vigilância e correção;
pelo aparato de exame e avaliação;
pela geopolitica da sala de aula e as relações de poder expressas pela arquitetura e a ambiência (o tapume das glórias acadêmicas, as carteiras enfileiradas, a mudez envergonhada, isto é, as marcas de uma impotência imposta desde os primeiros anos da educação oportunista).

— Fim da prova e do exame. Avaliações e auto-avaliações constantes dirigidas por todos os envolvidos, com o objetivo de submeter ideias e experiências a novos testes e possibilidades.

— Saber conversar é fundamental. Em que consiste esse "saber”? Capacidade de fomentar trocas de experiências e relações em grupo.

— Entregar-se ao trabalho pesado, contínuo, objetivo e interessado é tão importante quanto saber “fazer nada”, conhecer os benefícios infundamentais do ócio (e você sabe porque…)

Retomando a questão inicial: “Por que não se formam escritores nas faculdades de Letras?”

A educação é campo de disputa política por definição: toda a energia que circula nos ambientes escolares, por mais ousados que possam parecer, ressoam o peso da

autoridade
desigualdade
impotência

Ainda não sabemos que pode a Educação; sob que circunstâncias ela se exprime enquanto potência de transformação; quem pode exprimir a Educação como potência? Qual a potência própria dos muitos modos de educar? Ainda não sabemos. Porém, sobre a educação que temos à disposição hoje, sabemos muito, pois há toda uma ciência edificada para estudá-la, metrificá-la, avaliá-la e, por fim, reificá-la…

Derivas: educar é dotar os indivíduos de uma consciência da sua própria potência de ser em ato e ser em grupo: “reconciliar os indivíduos com sua solidão” para reforçar os laços comunitários: a educação amplifica. Deslocar expectativas reforçadas pela escravidão que atravessa as relações sociais no Brasil. Assumir que todos, absolutamente todos, podem preparar e esculpir o novo.

(o quadro é do Carlos Antônio, o Tantão)

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