Para uma abordagem adequada da chamada “música brasileira” na atualidade — isto é, na possibilidade de se pensar uma “música nacional”, definida a partir dos limites territoriais do estado brasileiro — convém expandir as fronteiras em todos os sentidos possíveis, sejam territoriais, morais, culturais ou estéticos. Hoje a “música brasileira” se reproduz pelas inflexões fragmentárias de um contexto radicalmente plural, em franco estado de conflito e mutação, o que impossibilita — ou, pelo menos, dificulta — a adoção de uma perspectiva hegemônica. Do ponto de vista de quem mora no Rio de Janeiro (ou em São Paulo), esta percepção cria outras exigências, reivindica não só o alargamento dos interesses, mas a busca por aquilo que de fato se fragmentou: o próprio interesse. Hoje a arte no Brasil é “interessada” em escala de radicalização da singularidade, não apenas em relação às noções modernas de invenção e ruptura, mas, sobretudo, como perspectiva. Não há como pôr em dúvida o valor do núcleo duro da MPB — seja a MPB histórica dos anos 60, a que se consolidou comercial e artisticamente nos 70, ou a que se diluiu nos 80 e 90 —, mas o fato é que esta estrutura de poder já não responde pela totalidade da “música brasileira”.
Nesse panorama amplo e imprevisto, um selo do Rio Grande do Sul se destaca por investir majoritariamente na música de improviso, abraçando as premissas do jazz, mas com abertura para experimentações com eletrônica, entre outros bichos. Em que “música brasileira” se encaixam? Capitaneada pelo saxofonista Diego Dias e pelo improvisador Gustavo Bode, dois músicos improvisadores residentes em Porto Alegre, a Mansarda Records (http://mansardarecords.wordpress.com/) completa pouco mais de um ano com uma dinâmica de lançamentos que impressiona pela quantidade, a eloquência e a personalidade. Em abril de 2012, o selo editou seu primeiro lançamento, Culto Primitivo ao Tamanduá, com as participações de Bode, Dias e do guitarrista Moisés Rodrigues. Desde então, lançou cerca de 40 trabalhos exclusivamente dedicados à improvisação, com diversos artistas e sob muitas formas possíveis: solos, duos, trios, projetos efêmeros, música eletroacústica, improvisação eletrônica, hibridismos, ruídos, silêncios e ampla influência de muitas vertentes experimentais, como as preconizadas por Evan Parker, Ornette Coleman, Peter Brötzmann, Throbbing Gristle, Coil, entre outros.
A maioria dos artistas são do Sul, com algumas exceções: o português Paulo Chagas, Chinese Cookie Poets, do Rio, e músicos paulistas como Jóbson Phelps, os presentes na coletânea de sopros Arfante — Música para Instrumento de Sopro Solo e no grupo Spimpro. Gravam praticamente no mesmo lugar, um estúdio profissional em Porto Alegre chamado Musitek; Diego cuida dos textos, Bode das imagens. Disponibilizam seu trabalho gratuitamente no link http://archive.org/details/mansarda-records e ainda tocam um site informativo a respeito da cena de improviso local e nacional, o Improviso Livre. Percebe-se uma intenção em manter os processos de forma a mais simples possível, “rústica”, punk, do it yourself, no sentido de impregnar o som por uma energia cega, uma vontade urgente de concretização que se observa em muitos de seus lançamentos.
O selo também conta com projetos experimentais ao estilo guarda-chuva como o desativado Projeto Berros, que abrigou varias formações. Outros nomes e projetos cujos trabalhos chamam a atenção são o Jamais Fomos Modernos — primeira banda que uniu Dias e Bode —, Guilherme Darisbo, Peter Gossweiler, Leonardo Estêvão, Duo Hoffparú, o trio Dias/Rieger/Armani, o duo Dias/Parú, Tormenta Free (que gravou com Jóbson Phelps), entre muitos outros.
A entrevista que se segue foi realizada por internet e buscou atender às questões mais básicas: formação individual dos fundadores, a construção do selo, bem como as formas de produção e divulgação do grupo. Ao fim da entrevista, Minicrônicas Discográficas com cinco lançamentos da Mansarda, com destaque para o último lançamento do selo, Honorável Harakiri (link abaixo)
Bernardo Oliveira
Leia as Minicrônicas Discográficas, com destaque para a crítica de Honorável Harakiri, do trio Diego Dias, Marcio Moraes, Michel Munhoz.
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Entrevista: DIEGO DIAS e GUSTAVO BODE
Diego Dias |
Poderíamos começar falando um pouco a respeito da formação musical de vocês? Tanto em termos de educação formal, como em relação às influências musicais e estéticas?
Diego: Não tenho formação musical nenhuma. Não sei ler partituras, nada. Apenas aprendi com professores as mecânicas mais básicas dos instrumentos (sax e clarinete) e depois parti na busca dos sons que queria obter deles. Em relação às influências, estou há 15 anos mergulhado no jazz, desde que ouvi Coltrane pela primeira vez. Com a Internet, ficou mais fácil obter materiais de músicos até então impossíveis de serem conhecidos para um jovem comum e sem dinheiro no Brasil, como Evan Parker, Peter Brötzmann, estes nomes todos. Tenho colecionado os discos destes e de muitos outros artistas, como Anthony Braxton, John Butcher, Steve Lacy... a lista é grande. Tenho me dedicado à música mais quieta ultimamente, aquela lançada pelo selo Potlatch, por exemplo... Gosto muito de Morton Feldman e seus silêncios e repetições, o que não me impede de ter uma prateleira cheia de Borbetomagus!
Bode: Já tive aula de violão e guitarra na infância e adolescência, mas digamos que o que eu faço hoje tem muito pouco do que aprendi naquele tempo. Curto fazer som desde criança, com instrumentos de brinquedo, mas sempre tive interesse no fazer sem saber ou seguir regras de conduta. Adoro composição instantânea e odeio pensar no que eu vou fazer antes de tocar. Ouvi muito pop nos anos 80, depois passei para o progressivo, metal, hardcore, rock psicodélico, industrial, noise, ambient, drone, IDM, etc...
Contem um pouco do que vocês faziam antes de começar a Mansarda? Existia uma cena de improvisação em Porto Alegre?
Diego: Eu não tocava com ninguém. Tinha apenas um clarinete e ficava em casa fazendo alguns ruídos. Quando conheci o Bode, surgiu a idéia de fazermos algumas experimentações. Não posso falar da cena antes, apenas que cresceu nos últimos anos.
Bode: Tive umas bandas de rock instrumental nos anos 90, mas nunca saíram da garagem e, não, não tem nada gravado. Lá por 2000 comecei a fazer noise sozinho em casa com meu PC. Fiz uns shows em Porto Alegre com o coletivo Antena. Então fiquei parado de 2008 a 2010, quando conheci o Diego.
E o Jamais Fomos Modernos, como começou? Quais eram as propostas do trabalho?
Diego: A JFM começou quando apresentei ao Bode dois amigos meus — Bruno e CP — que também curtiam free jazz, foi durante o show do Ken Vandermark aqui em Porto Alegre, no final de 2010. Foi algo bem cru, do tipo: “ei, temos baixo, bateria, sopros e eletrônicos! Vamos para o estúdio para ver o que sai!” Era bem divertido, as idéias nasciam na hora, não havia muita preparação.
Como, do JFM, surge a Mansarda?
Diego: Estávamos lançando alguns trabalhos pela Boolean Records do nosso amigo de Joinville, Leonardo Estevão, que participava do hoje extinto Projeto BERROS, e que nos deu carta branca para nosso lançamentos. Entretanto, queríamos autonomia total para nossos discos em todas as esferas. Além disto, eu e o Bode residimos em Porto Alegre, o que facilitava muito as reuniões ao vivo para discussões de projetos, rumos, etc. O Bode já tinha farta experiência no mundo das netlabels com o N0_age, então foi natural iniciarmos a MSR, como chamamos.
Por que Mansarda, um termo que alude à arquitetura? Lê-se no site de vocês: “música quase sem teto”. Mas há também uma relação com portas e janelas que se abrem…
Diego: O nome surgiu de um brainstorm que eu e o Bode fazíamos enquanto comíamos um de nossos tradicionais churrascos. Muitas e muitas sugestões, até que surgiu Mansarda no sentido de uma casa pequena, velha, despedaçada, porque é com muito esforço e sem nenhum apoio que fazemos toda a correria para o lançamento dos discos, as gravações são todas lo-fi e eventualmente até precárias, mas não por desleixo e sim para evitar toda uma parafernália obsessiva de dezenas de masterizações, propostas e mais propostas de capas, diatribes sobre nomes de músicas, estas coisas que cercam a produção de muitos discos.
Tem também o fato de que gravações profissionais são bem caras, e não podemos pagar. A ideia sempre foi divulgar os resultados, não fazer lançamentos suntuosos. “Música quase sem teto” foi um insight que eu tive após o batismo da gravadora, aludindo ao tipo de moradia, aludindo à nosso “desamparo” em relação a qualquer financiamento ou ajuda externa mas também marcando esta posição de uma gravadora de música livre e experimental que transita por vários lugares deste amplo espectro.
O conceito de “música sem teto” remete simplesmente à independência do coletivo? Vocês se consideram um coletivo, buscando reunir propostas semelhantes, ou um selo que catalisa uma série de possibilidades diferentes?
Diego: A MSR é gerida apenas por mim e o Bode, então não podemos falar aí de um coletivo. A idéia da gravadora é lançar os nossos trabalhos. Como a cena tem crescido nestes últimos tempos, recebemos propostas de amigos, que são avaliadas, mas a verdade é que os discos em que pelo menos um de nós dois não participamos ocorrem somente por convite. Isto evita também dissabores de ter que recusar trabalhos de amigos, ou então de interferir na produção dos artistas. Posso não gostar de uma capa, por exemplo, ou achar que o nome de uma faixa é ofensivo e daí, para evitar embates e explicações, mantemos nossos lançamentos “em casa”, por assim dizer. Contudo, é preciso notar que trabalhamos em parceria com o selo físico 1TAKE de Marcelo Armani — grande amigo com o qual formo o trio Dias/Rieger/Armani — disponibilizando-os para download. Entretanto, até o momento, se formos analisar os discos, vamos acabar notando que somente um deles não tem a participação minha ou do Bode!
Na medida em que vocês não encaram a Mansarda como negócio (pois nem cobram), como funciona o cotidiano de uma empreitada como esta?
Diego: Quem acompanha a MSR sabe que nosso ritmo de lançamentos é bem intenso. Em 2012, em 8 meses de existência, lançamos 25 discos. Este anos estamos mais calmos e em 6 meses lançamos “apenas” 10. Havia muita produção em 2012, eram gravações semanais praticamente, e esta música precisava ser ouvida, precisava ser divulgada e precisávamos também firmar a MSR como uma gravadora sólida, com lançamentos consistentes e com boa frequiência. Jamais pensamos a MSR para ser algo que funcionasse com intermitência ou sazonalidade.
Como os contatos são feitos, como se concebe a distribuição, como se controla o conceito e quais os principais objetivos? Existem critérios de seleção?
Diego: Bem, como disse, procuramos manter os lançamentos “em casa”. A MSR não é aberta a propostas, entretanto quando elas ocorrem, ouvimos e, em casos especiais, lançamos. Isto aconteceu com o disco do Chinese Cookie Poets, lançado agora em junho (MSRCD035) ou o SPIMPRO ao Vivo no Cidadão do Mundo (MSRCD015) e Tormenta Free + Jóbson Phelps (MSRCD031), estes dois últimos de amigos muito queridos que fizemos em nossas idas a São Paulo.
O objetivo é mostrar a música livremente improvisada produzida aqui. Há uma tendência de privilegiar a música que não é somente feita por computadores e pedais, ou então música que é pós-produzida, repensada, com adições, overdubs, etc. A idéia é a de capturar o momento da improvisação, não tratar a música depois, o que não impede discos como o recente Hexagotrópicos (MSRCD034), totalmente feito em laptop — cito também Contumácia (MSRCD030) — e dois discos futuros que trarão o resultado de uma seção sopros+violão+objetos como ocorreu e depois totalmente retrabalhado por um dos participantes. Mesmo assim, fica claro pelo nosso catálogo o direcionamento para esse lado da música improvisada como “aconteceu” naquela hora, seja ela com eletrônicos ou não e também nossa preferência por criações coletivas e não discos solo, embora estejamos planejando para futuramente termos uma série de discos assim.
Para finalizar, contem um pouco sobre os próximos projetos e lançamentos:
Bode: Tocaremos dia 26 na mesma noite que o Fernando Perales, um amigo argentino que faz improvisação eletroacústica. Eu com a Circuitaria Apoteótica e o Diego com o Honorável Harakiri. Sobre lançamentos, tenho algumas gravações com a Circuitaria Apoteótica, com o Renato Rieger e a Sabrina López. Tem também a segunda parte dos Hexagotrópicos, que ainda estão no forno. O resto que eu lembre são sobras que a gente já ouviu e algum de nós não gostou e por isso não vai para a Mansarda. Quero fazer algo com o pessoal da Scafandro, uma banda muito legal aqui de POA que toca improvisação livre com guitarras e sampler. E, claro, tem também o que pretendo gravar ainda este ano, mas ainda não pensei bem sobre como vai ser.
Diego: Estou gravando uma série de 3 discos em duo com 3 grandes bateristas: Peter Gossweiler, Marcelo Armani e Michel Munhoz, que deve começar a sair em agosto. Em breve também deve sair o Musikatenta 2. Shows tem acontecido, mas só posso garantir os discos. A meta é fechar o ano com o lançamento de número 50. SIM, TRABALHAMOS MUITO!
Leia as Minicrônicas Discográficas, com destaque para a crítica de Honorável Harakiri, do trio Diego Dias, Marcio Moraes, Michel Munhoz.
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