A gravadora inglesa Soundway segue firme na missão de resgatar o “elo perdido” da música africana dos anos 1960, 70 e 80. Agora, a sua série Special, que já rendeu coletâneas dedicadas a Gana e Nigéria, desloca-se longitudinalmente no mapa: a bola da vez é a costa oriental do continente, mais precisamente o Quênia, no recém-lançado, nos formatos CD duplo e vinil triplo, Kenya Special – Selected East African Recordings From The 1970’s & 80’s. Logo na primeira audição, a impressão é a de que se está diante de uma cultura musical inesgotável. O contato prévio com os seis volumes da coleção Kenya Partout!, das compilações Kenya Hit-Parade e Kenya Dance Mania, dentre tantas, já confirmava este juízo. Até o momento, a África Oriental segue sendo menos prestigiada pelos selos – principalmente europeus – nessa tendência atual de resgate. Exceção feita à Etiópia, tendo como carro chefe o ethio jazz, rótulo criado por Mulatu Astatke para o seu estilo pessoal e muitas vezes erroneamente atribuído pela crítica à música feita no país no mesmo período. Um repertório que se pode ouvir reunido, em parte, numa série como a Éthiopiques, que, atualmente, já conta com quase 30 volumes.
A música de nações como as citadas Gana e Nigéria, mais Costa do Marfim, Benim, Mali, Senegal, Serra Leoa, Burkina Faso e Togo, tem sido mais contemplada pela prória Soundway, pela também inglesa Strut, pelas norte-americanas Daptone e Thrill Jockey, e pelos selos Analog Africa, da Alemanha, e o espanhol Vampisoul, por exemplo. Talvez signifique, segundo as projeções destas gravadoras, que na costa ocidental do continente haja uma sonoridade mais potencialmente consumível pelo seu público-alvo. Tanto que o afrobeat e as variantes étnicas do afro soul e do afro funk costumam ser a tônica das compilações que focam essa região, habitada pelos povos iorubá, fon e igbo, dentre tantos outros.
O gênero musical mais popular do Quênia, a benga, estilo peculiar de “guitarrada”, sempre acompanhada pela marcação nervosa do contratempo da bateria, e suas variantes, de uma forma ou de outra, amarram muitas das faixas do álbum, em sua grande maioria, originalmente gravadas como singles de 45 RPM. A benga é considerada parente da “rumba congolesa”, como também é conhecido o soukous, estilo de “guitarrada” do então Zaire (como se denominou o Congo sob o ditador Mobutu entre 1971 e 97). Ou, ainda, a derivação pop mais contemporânea deste, o ndombolo, com a mesma estrutura dividida entre a parte cantada em coro sobre as camadas de dedilhados nas cordas, e a outra, mais acelerada, com os vocais quase ausentes, e na qual o solo de guitarra passa ao comando rítmico.
Cercado por Etiópia, Somália, Tanzânia Uganda e Sudão, o Quênia sinaliza nessa condição cartográfica a sua formação sonora. (O universo musical do Congo e da Zâmbia também têm a sua influência nesse processo.) De resto, é sabido o quanto é complexa a questão das fronteiras nacionais africanas; do quanto, historicamente, pouco ou nada significam do ponto de vista nativo. As trocas culturais entre etnias como kikuyu, suaíli, kamba, luo, ngoni ou gogo produziram ao longo do tempo uma variedade rítmica que acabaram por gerar a benga. É o que prova, por exemplo, uma coletânea como Before Benga, lançada nos anos 1980 e dividida em dois volumes (Kenya Dry e Nairobi Sound), que reflete a evolução da singular vocação para as cordas da música desenvolvida no Quênia. Uma tradição que, pelo intercâmbio espontâneo que marca o seu ambiente cultural, é fatalmente muito similar a dos países vizinhos, cujos artistas frequentemente gravavam na “cosmopolita” Nairobi, o multiétnico centro nervoso agregador e irradiador dessa produção. E é justamente esse o critério da seleção do repertório da presente compilação. Não é difícil concluir que, para fazer jus ao título de Kenya Special, levou-se em conta que a capital do país, principal sede dos estúdios de gravação do leste africano, concentra tanto os maiores talentos musicais locais como os das cidades e nações circundantes.
Kenya Special – Selected East African Recordings From The 1970’s & 80’s conta com 32 faixas, ao todo. Abre com um único “hit”: “Ware Wa”, da The Loi Toki Tok, de 1972, que foi regravado dois anos depois pela banda de afro rock Cobra, também do Quênia. Os Rift Valley Brothers são uma grata revelação tardia até mesmo para quem se julga familiarizado com a música africana (a rigor, nunca se é familiarizado o suficiente com tradição musical alguma). “Mu Africa”, um soulfunky contido, e “Tiga Kurira”, com sua linha de baixo ondulante e meio elíptica, são, realmente, dois achados. E esta último, se não se soubesse improvável o seu conhecimento por David Byrne antes de Kenya Special, poderia ter servido de referência para o som de guitarra e baixo que os Talking Heads passaram a perseguir a partir de Fear Of Music, de 1979, seu terceiro LP. (“Tiga Kurira” foi composta justamente por essa época: é de 1977 ou 78, como informa o encarte.)
“Mama Matotoya”, dos The Mombasa Vikings, é o único afrobeat em Kenya Special; singularidade que tanto ajuda a comprovar a autossuficiência da música queniana quanto não deixa de revelar que outras culturas de fora do círculo iorubá do oeste africano não ficaram alheias ao impacto do ritmo criado pelos nigerianos Fela Kuti e Tony Allen. “Ngwndeire Guita” e “Mutumia Muriu”, da The Lulus Band, e “Ndiri Ndanogio Niwe”, dos Mbiri Young Stars, têm na sua estrutura rítmica algo das composições da beninense Orchestre Poly-Rythmo de Cotonou. Uma possível afinidade musical entre os povos fon, da costa ocidental do continente, e os kikuyu, da costa oriental. (A Lulus Band também marca presença com a levemente funkeada “Nana”. Uma curiosidade: é o seu frontman, D.K. Mwai, quem ilustra a capa do álbum.)
A benga, o ritmo mais consagrado do país, dá as caras em sua versão supostamente mais “pura” em algumas das faixas, como “Wendo Ti Mbia”, da Gatanga Boys Band, e “H.O. Ongili”, de D.O. 7 Band – esta última, ripada do primeiro volume da citada Kenya Partout!. D.O. são as iniciais do consagrado Daniel Owino Misiani, tanzaniano responsável pelo clássico formato da benga que fez história no Quênia, e que aqui canta em luo. Owino, falecido em 2006, deveria figurar em pelo mais de uma faixa, como sucede com tantos artistas e bandas do álbum.
Já a tradicionalíssima Orchestre Vévé Star – projeto do saxofonista Verckys –, em “Nitarudia”, de cadência mais lenta, traz no arranjo um piano meio jazzístico e o célebre timbre dos metais das orquestras de soukous do Zaire. Os congoleses descendem, em parte, do mesmo tronco étnico-linguístico bantu que os suaílis, e é neste idioma, e não em linguta, predominante no gênero, que cantam “Nitarudia”. Sem querer precisar onde se originou essa ou aquela forma de se cantar ou tocar, o rascante naipe de metais da tanzaniana Orchestre Super Volcano, em “Mngeni Mali Yare Yore”, trai a sonoridade das orquestras da Guiné e do Senegal em atividade na mesma época. “Sina Raha”, de Hafusa Abasi & Slim, acompanhada da The Yahoos Band, “Thoni Na Caki”, da New Gatanga Sound, e “Mwendwa”, dos The Famous Nyahururu Boys, são as que, no repertório, têm mais destacada a modulação islamizada no vocal, como se pode esperar, por exemplo, dos suaílis, por tradição, sincreticamente fiéis a Alá.
“Sweet Sweet Mbombo”, da Orchestre Baba National, evoca o highlife de Gana e Nigéria, indicando os rumos heterogêneos da verve musical queniana para o espanto da fidelidade ao rigor das classificações. Efeito semelhante produz o canto que sugere a influência da cultura sul-africana da pennywhistle jive music (mais conhecida como kwela) em “Cha-Umheja”, de outra banda tanzaniana presente no álbum, a Afro 70 – assim batizada, como parece óbvio, em alusão à Africa 70, banda de Fela Kuti na fase mais criativa da sua carreira. (Curiosamente, o encarte afirma que a composição em questão é como uma versão afro pop da tradição rítmica dos wagogo, que ocupam a região central do país – o amigo antropólogo Robson Cruz me explica, entre outras revisões, que o “wagogo” é plural de “gogo”.) “Nzaumi”, dos Ndalani 77 Brothers, soa como uma benga em versão discofunky.
Em suma: infelizmente, tudo o mais que se possa dizer aqui não consegue dar conta de que Kenya Special é das maiores coletâneas de música africana já lançadas. É preciso ouvi-la com a atenção devida a uma peça que carrega inegável valor arqueológico de pesquisa e, ao mesmo tempo, aponta para um amplo horizonte de potencial de renovação da música na atualidade.
Lucio Branco
PS: Esta resenha para a seção “Afrika Pedra 90”, do blog Matéria, foi finalizada na circunstância dos sabidos últimos dias de Nelson Mandela... A Eternidade nem precisará festejá-lo: – o monumental Madiba já é eterno desde 1918.
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